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Figueira da Foz #3: Consolidação-mutação do pólo turístico

Figueira da Foz #3: Consolidação-mutação do pólo turístico Gonçalo Furtado (para Revista "òbvia", Figueira da Foz, Maio 2023?) Ao longo de mais de um século, a paisagem natural e urbana da Figueira da Foz foi alvo de uma mutação que é visível na frente urbana marítima. Tal fenómeno de mutação, ficou notável e claramente interpretado pelo mundo da arte (pictórica e fotográfica), a qual hoje nos pode fornecer elementos determinantes (para o estudo) da identidade histórica local. A título meramente, exemplificativo, recorde-se eventos como a exposição “Figueira: Um século de pintura” ou a edição de coleção de reproduções fotográficas que Havaneza, que são, neste sentido, interessantes. Tal exposição esteve patente, entre Julho e Agosto de 2000, no Museu Municipal Dr. Santos Rocha (com folheto então por este divulgada e pelo Departamento de cultura da Câmara municipal da Figueira da Foz). Já a coleção de fotografias, foi editada em Agosto de 2000 pela referida casa comercial “Havaneza”, remete para postais da década de 1950s, tendo feito figurar textualmente a expressão “um passado tornado presente”. No primeiro evento, as telas “Aspectos da Figueira da Foz” de Luísa Guedes Machado de Figueiredo, e “Praia da Figueira e enseada de Buarcos” de Fernando Gil (um discípulo de Silva Porto!), datada de 1897, permitem vistas do fim do século sobre a baía oceânica. Vistas onde é visível o recorte de um casario ainda rasteio e fragmentado (constituído pelos núcleos de Buarcos/Redondos, povoação da Praia, e Figueira da Foz), que, meio século depois se densificaria, e competiria em altura na década de 1970s. No segundo caso, salienta-se a “Vista geral sobre a praia” (FG1) que enquadra a frente urbana e outros “retratos” fotográficos (F6 e F8) que “tornam presente o ambiente de veraneio figueirense no início dos anos 50s do século transacto. Como refere Manuel Gauza em “O espaço limite: paisagem no limite” (página 292-299 de “Arquitectura do movimento moderno: Inventário DOCOMOMO Ibérico 1925/1965”), é no Pós-guerra (e mais precisamente na segunda metade da década de 50), que se conformou o fenómeno turístico europeu. Fenómeno proporcionado pela proliferação de bens de consumo, aumento de vias e do transporte individual, e que terá um profundo impacto urbano. Na segunda metade da década de 70s e na passagem para a de 80s, a recessão económica internacional constituiria um abalo ao turismo. Sendo no entanto que, antes da transição entre séculos, e retomando o fôlego, o florescente fenómeno Turístico veio já anunciar uma certa “desterritorialização” ou descontextualização, que caracterizava a exponenciação de uma cultura urbana global. O próprio conceito de Turismo tornou-se, em breve, em algo ambíguo para uma sociedade que desejava “mobilidade” e instaura tematizações urbanas”. Que instaura, diga-se, superficializações do genuíno/histórico/especifico em banalizações homogenizadoras, que parecem querer aproximar as cidades/regiões a algo próximo dos equipamentos ou parques temáticos. “Tematização” estas que foram seminalmente já alvo de análise crítica, por autores que vão de I.Solà-Morales a J.Urry. Quanto à “Rainha das praias”, também essa parecia na transição entre séculos retomar o fôlego que detivera outra hora. Na nossa opinião, parece que a autarquia e os operadores pareceram procurar aproveitá-lo, e milhares de pessoas veraneavam pelo imenso areal repleto de estruturas, pelos eventos da praia e animações do Picadeiro, pelos ocupados estacionamentos e hotéis… O ânimo desenvolvimentista de então (como o actual/futuros) frequentemente elege como redentor o turismo, e conforma a cidade como um pólo turístico (idealmente) de qualidade e apto a ser consumido. E, também por isso, a nível político se programaram, projectaram ou construíram obras. Recorde-se por exemplo um PP do Golf e a realização de infraestruturas de apoio à Lagoa da vela; um Oásis na ponte galante e demais estruturas na praia, a recuperação e prolongamento das Abadias, o Centro de artes e espetáculos, o plano director de Aérodromo municipal, etc. Em paralelo, realizaram-se obras de saneamento, rede viária, iluminação, procedeu-se à reapropriação dos lotes do Parque industrial, aparentemente tentou prever-se um melhoramento da imprescindível acessibilidade através do então QCA III na região centro (conclusão da IP3 e consequente integração na rede nacional de auto-estradas ou a então prevista concessão da auto-estrada do litoral centro), um eventual Projecto hidrográfico da baía do Mondego e (não menos importante pela exponencial afirmação do modelo de uma sociedade da informação) assistiu-se à criação dos primeiros portais do conselho na Internet. Obras, ideias e demais, que procuram afirmar uma imagem urbana lavada, ao mesmo tempo que se melhoram as acessibilidades etc. Por último, vem-nos à memória um postal da Figueira, editada por “Comissão de iniciativa”, e intitulado em rodapé como “Vista da cidade”. Na frente do postal perguntava-se: “Desejais passar uma época balnear divertida? Só na praia da Figueira da Foz”. E, no verso, detalhava-se: “Época balnear de 1 de Julho a 31 de Outubro. Clima privilegiado; higiene absoluta; praia de areia finíssima; banhos de mar, de rio e de sol. Comboios rápidos diários para todo o país, espanha e frança; correio, telégrafo e telefone para todo o país e estrangeiro. Hotéis, pensões, casas de aluguer, cafés, restaurantes, casinos, teatros, cinemas, músicas militares, orquestas e concertos clássicos. Regatas internacionais de motor, vela, remo, tiro aos pombos, concurso hípico, natação, hockey, touradas, aviação, tennis, patinagem, atletismo, football, festas, bailes todas as noites, concursos infantis, parques, jardins. Zona de jogo autorizado. Passeios fluviais em vapor, gasolina e vela, excursões em automóveis, autocars. Panoramas deslumbrantes do alto da Serra da boa viagem e miradouro de santa catarina. Colégio e liceu para ambos os sexos”. O arquitecto figueirense Pedro Maurício Borges, com Nuno Correia, lançaram num pequeno artigo – “Ici, vous êtes dans un hotel Mercure” publicado no número 197 do “Jornal dos Arquitectos”) - notas pertinentes sobre a natureza da nossa urbe. Identificam e referem-se a uma segunda cidade “ilusória” (da aparência cosmopolita, da deambulação desatenta e consumista) resultante da “Tematização” operada pelo veraneio turístico e chegada dos dias longos. O texto aborda também o protagonismo totalitarista transitório da praia (e seus equipamentos) e a ilusão-simulacro imposto por este fragmento (cidade-praia) da experiência e memória urbana. Um fragmento com poder “atractor” cujo desejo se alastra transformando a cidade num negócio para o negócio turístico, uma cidade única virada ao mar e para a maioria da população que habita a praia temporariamente. (Talvez por isso, restos da “memória construída”, dotados de capacidade de evocação, sejam vistos como incómodos ao que denominamos por programa de “tematização” veranil, e justificação para a máscara ao Grande hotel e abandono da Piscina). Alheios à discussão sobre eo que foi feito nos últimos anos, tomamos a liberdade de alertar para a mais valia que resulta de uma concepção de visões integradas que, sendo inovadoras – construtoras de uma imagem de cidade e conscientes das potencialidades culturais e ambientais existentes, não deixe de privilegiar a qualidade urbanística, a produção cultural e a qualidade de vida da população fixa. (Veja-se o “Suplemento Coimbra 2000” do número 630 do Independente; e ainda as revistas “Figueira informa” e “Figueira magazine”, em 2000). Por exemplo do ponto de vista patrimonial, houve então “louváveis” aquisições realizadas por altura da transição para o século recente. Referimo-nos ao Parque de Maiorca (séc. XVIII), Pavilhão do prazo da autoria de Raul Lino (“destruído” pelo incêndio de 1993), o Castelo engenheiro Silva (séc. XIX) e o Mosteiro de Seiça (séc. XVII). Mas apesar dessas ou demais promessas, quiçá nem sempre a atenção conferida ao longo da última década do século XX (bem como anteriormente e provavelmente posteriormente), esteve à altura da dignidade do rico leque existente. Refira-se por exemplo outrora o Convento de santo António (séc. XVI e XVIII), a Igreija de São Julião (séc. XVIII e séc. XIX)a Casa do Paço (séc. XVII), a muralha da Fortaleza de Buarcos e o Forte de santa Catarina (séc. XVIII), os pelourinhos de Buarcos (séc. XVI) e da Figueira (séc. XVIII) que atestam a administração autónoma da justiça, e o Palácio de Sotto Mayor da autoria de Gaston Landeck. Entre o notável património arquitectónico figueirense, encontra-se por exemplo tal caso de sobremaneira interessante. O Palácio de Sotto Mayor, sobre que em 1999 José Pires Lopes de Azevedo publicou “Palácio Sotto Mayor: Extractos da história” (com edição da Sociedade Figueira Praia SA). Gostaríamos de terminar referindo-o, por outro motivo, que é ter um significado histórico que permite constatar uma cultura arquitectónica de “resistência”. Tal edifício é um “neoclássico” construído na década de 20s (portanto contemporâneo às vanguardas modernistas) que, por detrás da sua “pela estilisticamente velha, possui uma sofisticada maquinaria que assegurava a qualidade de “vida moderna”. Prognostica pois uma certa “resistência” do ponto de vista da cultura arquitectónicamente instituída que, pontualmente apenas a singulariedade de obras corajosas ousam superar.

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