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CONVERSA SOBRE ARQUITECTURA E ESCOLA DO PORTO _ MARÇO 2020 (Graça Correia com Gonçalo Furtado).

CONVERSAS SOBRE A ESCOLA DO PORTO_9 Graça Correia (com Gonçalo Furtado) _ MARÇO 2020 I. Gonçalo Furtado [GF] - Graça Correia, gostaria de perguntar se terias disponibilidade para esta entrevista. No domínio ‘pessoal’, a minha primeira ‘questão’ visaria uma ‘nota biográfica (pré-estudos universitários)’. Como ‘sugestão de tópicos a abordar’, eu ‘incluiria primeiras afinidades com a arquitectura e afins’. Graça Correia [GC] - Acredito que as primeiras afinidades com a Arquitectura decorrem do facto de eu ter frequentado a Escola Primária do Cedro, feita pelo Fernando Távora num período em que vivi num perfeito siedlung também construído sob a sua consultoria no recém-criado Gabinete de Urbanização naquela Câmara. Os meus avós viviam numa casa atribuída ao Losa e Cassiano… mas ninguém na minha família – avós ou pais – percebiam o que quer que fosse de Arquitectura ou tinha a noção destas autorias, apenas souberam deste novo Bairro todos feito por arquitectos com casas a estrear e se mudaram do Porto para ali; os meus avós ficaram por lá, nós saímos depois de 75. No Verão também frequentávamos a piscina do João Andresen, na Granja. [GF] - Ah. [GC] - Tive ainda a sorte de ter tido uma excelente professora na Escola Secundária - a Arquitecta Esther Sobral, uma das primeiras a formar-se no Porto – a leccionar Geometria Descritiva e História da Arte e que colocava a tónica sempre na Arquitectura, pelo que quando entrei na Faculdade já conhecia algumas obras de Frank Lloyd Wright, Le Corbusier e fiquei fascinada com a existência de uma cidade inteiramente desenhada por arquitectos, Brasília. / Outra das minhas influências importantes, mas que só mais tarde percebi quanto foi importante, veio do contacto muito directo que tive desde sempre com a Gulbenkian através do lado lisboeta da minha família paterna, através de um primo directo do meu pai que estudou Graphic Design no London College of Printing já que em Portugal não existia o curso e, foi premiado ainda em Londres com o Layton Student Award 1963. A este prémio na época amplamente divulgado, terá-se-á devido o convite para se tornar designer gráfico na Fundação Calouste Gulbenkian e autor da maioria dos belíssimos cartazes das famosas temporadas musicais e do Ballet Gulbenkian onde também a sua filha e minha melhor amiga de infância e juventude, era bailarina. / Depois havia o piano e muitas brincadeiras de bicicleta na casa no campo dos avós paternos, que sempre adorei. Mas os meus pais viajavam muito e apesar de serem poucas as vezes que nos levavam, foi pela mão deles que conheci o Punk em Londres e a piscina de pinguins do Lubetkin, que adorei quando tinha 15 anos, ou a sede da Unesco em Paris, do Marcel Breuer e Nervi que na altura eu não sabia quem eram, apenas que eram muito modernos! [GF] - A minha segunda questão versaria a ‘formação universitária’. Como ‘sugestão de tópicos a abordar’ eu ‘Incluiria Afinidades pessoais, professores, cadeiras e matérias marcantes’. Sobretudo no que tange à arquitectura? [GC] - Na Formação universitária e Afinidades pessoais tudo converge: O António Portugal terá sido o meu primeiro amigo na Escola de Belas Artes – arquitecto excelente sobre o qual se deveria fazer algo porque, infelizmente, morreu prematuramente, mas deixou muita obra e muito boa. E depois muitos outros que, como ele e eu, procuravam "habitar" os escritórios dos professores num trânsito em que a aprendizagem da arquitectura ora se dava nas salas de aula, ora na prática dos seus escritórios. / Experiência que foi fundamental. Creio que é importante, ainda, destacar algo que fiz – ou antes, ajudei a fazer - logo no 1º ano da Faculdade com um pequeno grupo de onde recordo bem que o António Portugal e o Manuel Maria Reis eram os mentores – os mais activos e, creio, os inventores da ideia – de fazermos um livro cuja importância, acredito, seja bem maior do que aquela que se lhe tem dado até hoje: As Páginas Brancas. [GF] - Sim, as “Páginas brancas”, onde se publicaram trabalhos dos professores em 1983/84. [GC] - Na verdade, quando em 1983 entrei nas Belas Artes do Porto para estudar arquitetura encheu-me de confiança o facto de saber já nomear Álvaro Siza, o que pareceu invulgar entre os meus colegas naquele panorama português onde a arquitetura não tinha qualquer visibilidade, algo que hoje parecerá inverosímil a qualquer jovem na mesma situação. Sim, é extraordinário, não havia qualquer livro de Arquitectura em português e sobre as obras dos arquitectos portugueses ou dos nossos professores, muito menos! Também não havia internet nem grande acesso a livros (só estrangeiros, claro e muito caros para nós que éramos estudantes) ou revistas, a não ser a “Arquitectura Portuguesa” (do Sindicato de Arquitectos), mas que pouco acrescentava sobre aquela nossa contemporaneidade e por isso pedimos ao Távora um desenho, fizemos uma serigrafia que vendemos e financiamos, assim, a publicação dos projectos/obras pedidos a todos os professores da ESBAP, curso de Arquitectura, bem como alguns textos. E assim nasceu o livro que foi um sucesso – uma espécie de Inquérito à Arquitectura da Escola do Porto 83/84, hoje esquecido por completo: Páginas brancas (“vá pelos seus dedos”, como escreveu na altura o Souto Moura). / Também fizémos um jornal de parede à entrada do pavilhão de escultura, onde colocámos fotos das obras dos profs, notícias sobre cinema, teatro, música e reclamavamos de tudo! Éramos activistas... [GF] - A importância do livro é mais conhecida, é interessante referires também o jornal de parede. [GC] - Destaco a enorme importância do livro, já que - quando acabei o curso e fui estagiar no escritório de Souto Moura - uma das primeiras coisas em que trabalhei foi na realização de alguns desenhos de axonometrias explodidas que eu fazia com muita facilidade ‘sem rede’ e que eram muito explícitas naquele tempo sem 3D; isto porque se estava a fazer ali a paginação do primeiro livro monográfico publicado sobre ele na GG (Gustavo Gili) e no qual o texto de Siza vem responder, precisamente, a um polémico texto de Alexandre Alves Costa publicado uns anos antes nas Páginas Brancas! Costa, demonstrava ali uma desconfiança na nova geração (da qual fazia parte Souto Moura, claro) que, alegadamente “perdendo a dimensão da realidade diluía a sua mensagem tornando-a incomunicante”, ao que Siza responde na publicação (obviamente não portuguesa (como quase todas as primeiras publicações: “nemo profeta in pátria”, também as minhas agora) da obra de Souto Moura, assinalando “que afinal os incomunicantes, comunicam”! [GF] - Em determinado momento, o Portas também foi crítico a uma ceerta estética da escola do porto. Depois da GG espanhola, a Blau só surgiu nos anos 90. [GC] - Hoje já poucos se lembram destes textos, mas creio serem úteis também para esclarecer o que representava naquela altura a vontade de ir estagiar com um Souto Moura que (ainda) poucos conheciam (ou valorizavam?). Hoje perfilam-se a escrever sobre eles…mas era uma época muito curiosa que, julgo, nem o Souto Moura nem o Siza terão bem noção pois estavam demasiado ocupados a fazer a sua Obra para reparar; mas havia um grupo que os defendia com unhas e dentes e sonhava trabalhar com eles e outro que desdenhava de tudo o que faziam, numa má-língua só vista e que os (e nos) ‘ostracizava’ durante anos, talvez ainda hoje. No fundo, naquela época em que éramos estudantes, interessava-lhes defender os professores – o que traria benefício imediato – e só muito mais tarde, reconheceram o benefício de se interessarem por Siza e Souto Moura que, já com reconhecimento global, começaram a ser as suas ‘galinhas de ovos de ouro’. O que continua a ser assim, ninguém se atravessa no reconhecimento de alguém novo – apenas quando este é inquestionável, o (re)confirmam. [GF] - Bem, o Portas e o Pedro Vieira Almeida escreveram logo sobre o Siza. Mas precebe-se o que dizes. Que memórias tens? [GC] - Os professores que distingo naquela formação são o Joaquim Vieira em primeiro lugar, logo no 1º ano; o professor de Desenho e importantíssimo para mim, já que este instrumento revelou uma das minhas maiores paixões: desenhar para conceber e comunicar. Distingo-o pelo seu rigor e por ter introduzido algo tão novo na minha vida e que me acompanha até hoje. [GF] - Na História e teoria. [GC] - Na História, o Domingos Tavares porque dava umas aulas apaixonantes no meu 2º ano e ainda hoje é aquele que – dessa geração – faz a investigação em Arquitectura que mais me interessa, mais honesta e rigorosa, não ‘opinativa’ e os livros que tem publicado, excelentes, confirmam a impressão primeira dessas aulas. [GF] - Em Projecto e Construção. [GC] - Em Projecto e Construção, foram claramente os Gigante(s) Pai e Filho, o Carlos Prata, Francisco Barata, Pedro Ramalho e, claro, o Eduardo Souto Moura. [GF] - Em Teoria. [GC] - Impossível não dizer também o Fernando Távora. A Teoria Geral de Organização do Espaço com ele foi muito marcante, enquanto articulada com a Prática, já que no 1º ano, sob a alçada do Távora, a Anni Gunther (de quem tinha ouvido falar desde sempre, pois andou no colégio com a minha mãe) no acompanhamento das aulas práticas, foi excelente! Nunca esquecerei aquelas aulas e os trabalhos que fizemos; sobretudo para a compreensão das cidades, em que analisamos Braga, Viana do Castelo ou Vila do Conde, começando pela toponímia, articulado coma topografia/geografia, os diferentes assentamentos históricos, levando à estrutura urbana, morfologia, tipologia, tudo palavras novas para quem vinha de um Liceu que de nada disto nos falava, apesar de vir da área E, aquela que preparava para Arquitectura, mas nada se assemelhava a este discurso…foi muito bom e intenso. [GF] - Ah. [GC] - Também existia uma disciplina de que gostei muito e que creio fazer enorme falta: Análise do Território; muito importante, onde se aprendia a distinguir através do desenho, uma rua de uma avenida de uma viela, uma praça de uma praceta, enfim, algo que caiu em desuso lá para o fim do meu curso e se perdeu para sempre até hoje dando ‘o belo’ resultado nas cidades que temos hoje e seu desenho urbano: zero. [GF] - Ah pouco fizeste referência a viagens. Lembras-te de alguma história particular? [GC] - Sobre este tema das Afinidades aproveito para contar uma história de que me lembro cada vez mais como sendo de importância relevante; aliás, talvez sejam mais do que uma, várias histórias entrelaçadas, mas muito significativas para o desenvolvimento da minha carreira! / É na consciência de um enredo, a narrativa resultante de uma viagem realizada a Brasília em 1984 no final do 1º ano do curso de Arquitectura, claramente estimulada por uma aula de Fernando Távora sobre esta cidade, que me parece pertinente a partilha desta história. / Fui nesse mesmo Verão ver e viver uns dez dias em Brasília - como deveriam ter feito todos aqueles que sobre esta cidade falaram - e pude constatar a sua enorme qualidade urbana, de desenho urbano e de vida. Fui com a ingenuidade necessária, sem quaisquer preconceitos e fiz até amigos entre os já nascidos ali e percebi um sentimento de pertença que me bastou para acreditar na cidade moderna. [GF] - Ah. [GC] - Só mais tarde percebi a opinião generalizada sobre Brasília na Escola (muitos que até nunca lá tinham ido) e pouco falava disso naquele tempo que se seguiu à viagem pois, naquela altura na Escola, ser “formal” era pecado mortal e não se falava dos arquitectos modernos. Por isso, só mais tarde, no 4º ano de Projecto, em conversa com o meu professor (Eduardo Souto Moura, 86/87), verifiquei com alívio, que também ele reconhecia qualidades no desenho daquela ‘jovem e moderna’ cidade, usando-a como referencia para me ajudar no Projecto. Eduardo, provavelmente surpreendido por alguém tão jovem já ter viajado (sozinha) só para visitar Brasília, ensinou-me nessa aula que o tempo é mais importante ou tanto quanto o espaço, em Arquitectura. E disse-me que também lá tinha ido de propósito, reconhecendo que o fundamental é que se desenhe e se planeie a base, o suporte e a tipologia. E um dia, muitos anos depois, Souto Moura repetiu tudo isto e muito mais numa entrevista a um meu orientando, resultando numa entrevista inédita e nunca publicada sobre a cidade de Brasília (realizada a em 2015) e que um dia eu gostaria de publicar! [GF] - Essa ideia de estrutura, ressurgirá no Metro, onde o Souto Moura mostra que a capacidade do método do Porto, não se restringia a moradias burguesas ou recuperações delicadas de equipamentos patrimoniais. Importantíssimo. [GC] - Na verdade, acredito até hoje que esta inquietação comum foi o início de uma amizade que dura há mais de 35 anos. Quanto a visitas às obras, era extraordinário e maravilhosa a experiência que alguns professores nos proporcionavam! O que fazíamos com professores, mas também entre amigos, aos fins de semana – hoje os estudantes, não querem participar numa visita a uma obra organizada pelos professores, pois custa o mesmo que uma noite de cerveja em (mais uma) festa da FAUP… [GF] - Antes do teu período de entrada na escola, tinha havido uma grande crise económica... [GC] - Sim. Antes de eu entrar na faculdade tinha havido uma grande crise económica e nos meus últimos três anos, estava-se a entrar precisamente no contrário, ou seja, a maioria dos professores, como José Manuel Soares, Pedro Ramalho, Eduardo Souto Moura, os Gigantes, pai e filho, o Soutinho, o Matos Ferreira, o Madureira (talvez no Siza), o Carlos Prata, eram pessoas com muita experiência de escritório e voltavam a ter obras para fazer. Uma das primeiras obras que vi e me marcou quando entrei para as Belas Artes, numa viagem de estudo, foi a intervenção do Alcino Soutinho, em Amarante, no Museu Amadeo Sousa Cardoso, que para mim é, ainda hoje, a melhor obra dele. Eram pessoas que, de facto, tinham obras já de uma certa dimensão e que tinham trabalhado muito com outros arquitectos. [GF] - Sim, Amarante o Soutinho é incrivél, embora também não deixe de gostar da Câmara etc. Courioso que também foi das primeiras obras que vi, porque durante o curso namorava com uma rapariga de Amarante. [GC] - Outro dos acontecimentos marcantes neste curso foi a total ausência – na História da Arquitectura Portuguesa ou na História da Arquitectura Moderna – do edifício da Fundação Calouste Gulbenkian. De facto, tendo eu frequentado tanto aquele edifício maravilhoso e intemporal, elogiado por todos os grandes arquitectos (portugueses e estrangeiros) que conheci até hoje, não o ver como objecto de estudo na Escola constituiu uma forte inquietação que se foi juntar àquela que me suscitava a crítica à cidade moderna constante nas aulas de muitos, como por exemplo do Nuno Portas que foi meu professor de Projecto no 5º ano em Urbanismo, que escolhi precisamente porque até ali não tinha tido oportunidade de desenhar algo à escala urbana e entendi que fazia falta. Confesso que a alternativa era fazer Projecto com o Professor Nuno Tasso de Sousa, que estava na altura a construir a Faculdade de Letras ali ao lado, onde eu passava todos os dias e, francamente, não me inspirava. Por isso, escolhi Urbanismo porque também tinha como Assistente o Carlos Prata, que salvou o ano! [GF] - Durante o curso também nem da Gulbenkian, nem do Authoguia me falaram! [GC] - Mas para dar consistência ao tal enredo que considero ser a minha Formação Universitária e atestar que esta particular sequência de encontros e acontecimentos não foi, de facto, aleatória, impõe-se falar de outro personagem fundamental na ‘minha’ formação universitária, já no âmbito de Doutoramento: o Carlos Marti Aris. Se Eduardo Souto Moura foi o professor que através da prática do projecto nos chamou a atenção para uma necessária abordagem crítica à teoria instalada para encontrarmos a nossa própria voz na linguagem do devir, Carlos Martí, foi o professor que em extraordinárias aulas teóricas, nos mostrou os imensos sintomas que nos levam a desacreditar na afirmação de que as propostas urbanas do movimento moderno foram as responsáveis pela liquidação da cidade tradicional. De facto, hoje nos anos 20 do Séc. XXI e com o distanciamento necessário das apressadas leituras críticas à modernidade realizadas nos anos 60 do Séc. XX, nomeadamente ao ‘desenho da cidade moderna’ e porque já são visíveis as consequências dessa mesma crítica, podemos com propriedade definir um novo olhar. / E felizmente estão a reeditar o Hilberseimer, etc e Portugal há-de chegar lá. [GF] - Refiro sempre o “arco e o cimbre” aos meus alunos. [GC] - Estas são as figuras, aliás, que me iniciaram à inquietação que sinto crescente nos meus interesses actuais devido à situação a que chegamos de total ausência de Desenho Urbano e que resulta em grande parte, estou certa, da crítica ao suposto excesso de desenho da Carta de Atenas, ou da cidade Moderna. / E os resultados vêm-se em todo o lado, mesmo onde tanto trabalhou o Nuno Portas… em Vila nova de Gaia, no Vale do Ave e por aí fora, porque não se criou escola de pensamento urbano através do desenho que tem que ser o seu instrumento privilegiado. Por isso não admira que se ande a falar da informalidade, ou a ausência de forma que foi quase uma imposição da crítica nos anos 60! Felizmente a ciclicidade histórica começa a resolver esse problema e não é por acaso que hoje em dia se investiga sua antítese, isto é: “O Mundo Ordenado e Acessível das Formas da Arquitectura” ou The Form of Form, a investigação que têm perseguido complementar e individualmente Nuno Brandão e Kersten Geers, por exemplo. o magnífico livro do Hilberseimer The new city: principles of planning com introdução do Mies e a belíssima edição do Paul Theobald é de 1944 está a ser ‘recuperado’ e em 2012 foram editados na Columbia University os seus ensaios com uma magnífica capa, alías...como estão a ser traduzidos para inglês os livros de Carlos Marti com belíssimas versões da Editora francesa Cosa Mentale. / Enfim, creio que não tenho andado muito enganada com aqueles com quem tenho escolhido conviver: diz-me com quem andas… [GF] - Sim, o Nuno Portas foi dos Olivais ao Vale do Ave. Mas dizias... [GC] - Mas como a história se entrelaça, é interessante pensar que já em 1987, ano em que Souto Moura foi meu professor de projecto, foi publicada uma outra entrevista (talvez a sua primeira?) na revista suíça Faces (que curiosamente – Paul Auster diria não por acaso - publicava no mesmo número aquele que viria a ser o meu orientador de Doutoramento, o Hélio Pinón), o Eduardo diz algo muito parecido: “As mudanças históricas foram sempre pontuais na arquitectura. A Turbinenfabrik, por exemplo, realizada por P. Behrens para a A.E.G. é um templo clássico, uma expressão de continuidade. Mas as colunas foram feitas em ferro: um pequeno detalhe, uma diferença fundamental...É olhando desta forma para as coisas que me recuso a acreditar na ideia de ruptura. As mudanças fazem-se aos poucos, com avanços e recuos.” / E esta ideia – polémica pois todos os livros diziam o contrário e insistiam que a modernidade rompeu com o passado, o que nas obras de arquitectura eu não via - relaciona-se com os temas anteriores e com outra frase fantástica do Távora: “Cada vez me convenço mais de que só fazendo a mesma coisa várias vezes, numa vida ou ao longo de gerações, é possível refinar e chegar a soluções com eternidade." [GF] - A modernidade não é uma postura monolítica, é múltipla, tem layers e vectores. / A terceira questão, versaria ‘interesses actuais e futuros’. Como ‘sugestão de tópicos a abordar’ eu ‘incluiria, no campo da arquitectura e afins’. [GC] - Os meus interesses são muito obsessivos, se calhar sempre muito enredados nestes temas de que falei… mas ainda antes de terminar os estudos e fui sempre fascinada pela Prática e impulsionada pelos grandes professores que nos mostravam que é na obra que se inscreve o saber arquitectónico – Pedro Ramalho, Gigante(s) pai e filho, Francisco Barata, Carlos Prata e Eduardo Souto Moura e o Siza mesmo que ausente da Escola estava sempre presente – por isso já tinha percebido (sobretudo através de ESM) que Siza nos mostrava como fazer arquitectura e não o que fazer; que nos mostrava o caminho e não o destino. [GF] - O Barata baseava a sua prática na teoria tipológica, o Siza escreve muito bem, e considero o Souto Moura até bastante teórico e com algumas obras e trechos vezes até conceptuais... Teve a amabilidade de me enviar uma carta no outro dia. Mas dizias... [GC] - Por isso, quando entrei no escritório do ESM já tinha passado pelos escritórios do Henrique de Carvalho, do Francisco Barata, do Manuel Fernandes de Sá, do Zé Manel Soares e do Carlos Prata! E tinha colaborado num concurso com o Manuel Mendes e o Manuel Botelho. Foi muito divertido porque era um concurso de duas fases e colaborei com eles na 1ª fase e depois com o José Fernando Gonçalves e Paulo Providência na 2ª Fase, que ganharam, e de quem fiquei amiga e admiradora até hoje. Na verdade, trabalhei sempre tanto que nunca tive tempo para dar graxa aos profs e acho que alguns (e também colegas) me viam tão pouco por ali (escola e eventos promovidos pelos mais académicos) que talvez achassem que talvez andasse em festas ou algo assim e até me chamavam SuperTia, lembro-me, tal como à Cristina (Guedes)… [GF] - Ah. [GC] - O Souto Moura dizia que as mulheres trabalham mais porque precisam de se fazer notar e na verdade eu, que nunca liguei muito a isso, tenho sentido cada vez mais a obrigação de deixar um lugar consolidado e de qualidade à mulher na arquitectura. Talvez pela quantidade enorme de alunas que temos ou simplesmente pelo facto de ser tão difícil uma mulher entrar num mundo de tradição masculina, onde (a mulher) tem que fazer um esforço enorme, quase teimoso - há trinta anos como hoje -, para conquistar este viciado espaço. / Até porque não é possível aceitar que em pleno Séc. XXI se encontrem colegas (também na universidade!) que não acham possível ser realmente Mãe, Arquitecta, Professora, Doutorada e Avó…afirmando despudoradamente que eu ando, supostamente, a enganar todos! Sim, essas pessoas (ainda) existem! [GF] - Ah. [GC] - De um modo mais sério, ou dito de outro modo, o que me interessa mais, os meus interesses futuros são, como sempre muito convergentes nos dois temas – entre os quais vivo – e que se alimentam mutuamente, que são a Arquitetura e o Ensino. Por isso, os temas do futuro prendem-se com duas inquietações crescentes, que tenho sentido cada vez mais através da minha prática como arquitecta e que me interessam aprofundar na Investigação: um, apesar de andarem todos a falar de casas, pretende avaliar a relação entre a forma da habitação (da casa) e a forma da cidade: Housing and city e o outro, na relação entre o existente e a sua transformação, o Re- Use. / A primeira inquietação resulta, obviamente, da maior fragilidade contemporânea no mundo da arquitectura, que é o estado lastimável da nossa paisagem urbana, decorrente na minha opinião, de uma agenda da crítica e do abandono do desenho da cidade entre os anos 60 e os dias de hoje e, creio que esta opinião é unânime ou, pelo menos, a constatação desta realidade é inegável. E o meu interesse tem vindo a crescer, como se tivesse um bichinho a rer e a dizer “tem que fazer alguma coisa”. Ora alguma coisa é através do projecto se tiver essas oportunidades ou da investigação, em que posso tentar criá-las…Pretendo, por isso, encontrar contributos que ajudem a revertê-la. A escolha do tema apresentado em 2020 precisamente por causa do COVID no “Passa a Palavra: Falemos de Arquitectura” (apresentado a convite da FIMS, UP) onde optei por fazer uma reflexão sobre o Lafayette Park, da autoria de Mies van der Rohe, foi já um primeiro passo neste sentido. / Agora estou a passar a escrito a história do início da minha amizade com o Souto Moura, mas a propósito de um tema maior que é o desenho da cidade moderna, dando Brasília como exemplo. Em investigação, criei na Universidade Lusófona com a Luísa Moura, a Rita Lima, o Rui Castro, a Marta Belo e a Sofia Albuquerque, o Projeto de Investigação: A Forma do Edifício na Forma da Cidade. (Re)desenho e (é) Arquitectura. (Re)desenho e (é) Cidade. [GF] - Aludiste ao tema do género, interessas-te por outros da agenda contemporânea, como a sustentabilidade... [GC] - Por exemplo. No que diz respeito ao Re-uso, sobretudo, porque dada a carga de construção já existente e a dificuldade de encontrar enquadramento legal para construção nova de raiz, muitas das oportunidades de projecto que temos no escritório são sobre este tema; interessa-me, portanto, essa investigação também com os estudantes para que estejam preparados. / No fundo, entendendo que o problema da inserção da obra nova (ampliação) nas pré-existências já não se resolve através da ideia da imitação estilística, uma ideia a partir da qual se acreditava continuar a tradição, propomos na nossa prática que esta tensão entre duas lógicas seja um paradigma construído da relação entre o contexto histórico e a arquitectura contemporânea. Mas há que continuar a investigar e validar a bondade dos resultados práticos dessa intenção. / Interessa-me ainda partilhar com os estudantes o meu interesse pelo desenho e ‘redesenho’ enquanto ferramenta muito estimulante e operativa do arquitecto. Mas também do desenho que pode ser ainda a descoberta dessa consciência, mas também revelação da necessária evolução do projecto no seu processo e, por estas razões, usado em duas abordagens distintas: desenho da ideia e o desenho da referência. / [GF] - Dizes desenho da ideia e desenho da referência. [GC] - No fundo é mesmo assim: a investigação tem sido para mim, ao longo dos anos, um claro resultado das minhas inquietações constantes como arquitecta que projecta e que ensina: Qual a pertinência de uma teoria do projecto arquitectónico? E em que deve esta consistir e como se articula com a prática e com o ensino? (palavras sábias de Rafael Moneo). / Através de todas estas experiências tornou-se muito claro que, quer para Projectar, quer para Ensinar, é imprescindível a capacidade de examinar criticamente o próprio trabalho, mas também o trabalho dos outros, uma habilidade que emerge de uma base académica para a atividade prática e, regressando à actividade académica, progride desta forma, numa ciclicidade sem fim. Sem esse sentido crítico e qualitativo o progresso é, para mim, inconcebível. [GF] - Acresce a transferência de conhecimento da academia para a sociedade e media, que é algo muito importante. Fizeste coisas para a TV… [GC] - Sim. E gostaria de continuar a fazer Documentários porque ampliam significativamente a transmissão do conhecimento, levam-no a um nível que só visto depois de os apresentar na TV, nunca imaginei que tivessem esse alcance. Mas claro que essa possibilidade não depende só de mim… II. [GF] - No domínio da ‘actividade profissional’, a primeira ‘questão’ visaria uma ‘caracterização’. Como ‘sugestão de tópicos a abordar’, eu ‘incluiria a tua abordagem metodológica, etc’. [GC] - Que importância teve o ateliê e a componente prática da pedagogia na minha formação? Toda, jamais teria feito tudo o que fiz desde aí até hoje. A arquitetura é um processo de síntese. Um processo extraordinário que culmina num bem material, mas onde intervêm diversos fatores - materiais e imateriais – que no nosso caso, vêm em resultado da cumplicidade e complementaridade dos autores e à luz da inquietação que a sua cultura introduz. / A ideia para mim é muito diferente de conceito. Também não acredito no conceito, faz-me impressão que possa haver um conceito precedente ao resultado final. [GF] - Aí é? [GC] - Quando, como acontece frequentemente, se valoriza o aspecto face à constituição, e de um edifício importa mais o que parece (a forma visível) do que aquilo que é… por isso, não é de estranhar que se ignorem os valores relacionados com os sistemas construtivos, a tectónica. A optimização progressiva da arquitectura das últimas décadas determinou o descuido da dimensão construtiva da obra: ao desatender a qualquer critério de estrutura formal, a identidade material fica em suspenso; então, resolve-se no âmbito da ficção – o conceito e imagem. [GF] - Podias incluir na entrevista a distinção, a que te referias, entre ideia e conceito. [GC] - Interessa-me mais uma descoberta da ideia através do desenho e essa é a metodologia central: desde aquele que permite a compreensão do lugar enquanto forma, também, mas desenhos rigorosos à mão que percebem essa morfologia e, por fim da secção; é na secção que encontro na maior parte das vezes as soluções. Depois o Roberto tem uma abordagem muito diferente da minha, uma cosa mais mentale e a investigação que resulta desta diferença é mais interessante do que cada um por si. Diria que a nossa obra resulta da complementaridade e cumplicidade que eu e o Roberto encontramos. E não há dúvida: Toghether is better! [GF] - Pois, o teu trabalho é em pareceria com o teu esposo Roberto Ragazzi, e percebe-se a cumplicidade quando falas. [GC] - Para mim a parceria é um bocadinho como… por exemplo, quando fiz a casa do Gerês com o Roberto (Ragazzi, que foi a primeira obra que fizemos juntos) lembrava-me, depois, não quando estava a fazer, mas mais tarde, lembrava-me de um filme que, aliás, é um filme lindíssimo do Krzysztof Kieslowski; faz parte de uma trilogia e é o Bleu (havia ainda o Rouge e Blanc), e há uma cena em que um casal está a terminar uma música. Tenho a banda sonora e tem piada ouvir o trabalho ‘a quatro mãos’; «Não, não, aqui um Si… aqui, não, não… espera, mais baixinho, aqui sobe, forte…aqui não sei quê…», portanto, é um pouco assim. Foi o que aconteceu connosco, foi muito deste género; hoje em dia, já fazemos a mesma solução sem dar conta e outras vezes, alguém tem que ceder. / E claro que eu tenho um feitio mais obsessivo do que o Roberto, portanto, dentro de mim começo a pensar na solução quase antes de assinar o contrato, mas também me apercebo que, na maior parte das vezes, a solução em que ele anda a pensar, naturalmente, tem muito a ver com aquilo que eu também acho que deve ser feito. Mas julgo que isso é normal, são quase vinte anos de relacionamento de trabalho. E muita cumplicidade. Foi muito bom o facto de nos termos conhecido já com bastante maturidade. Há pouco tempo perguntaram-me numa entrevista se era difícil trabalhar em equipa (seja com o Souto Moura, como com o Roberto) e julgo ter respondido que o segredo está em situar cada um dos elementos no seu papel relativo e essa é, de facto, a premissa fundamental para o trabalho em equipa. [GF] - Ah. [GC] - E depois o Roberto tem muita paciência para determinado tipo de coisas que eu (já) não tenho (e para mim!); coisas que já fiz muito no escritório do Eduardo ou que já não tenho tempo para fazer por causa das aulas ou das conferências que o Roberto, por exemplo, não gosta nada de fazer. Portanto, eu sou mais o desenho, a solução, esquissos e mais esquissos mais tarde nos pormenores e mais pormenores para o projeto de execução e que o Roberto desenhará no computador agilizando com os colaboradores; depois há determinadas miudezas em que começo até a perder a paciência e que ele é muito paciente e determinado, tipo as reuniões com engenheiros, etc. E sou muito chata em obra, e ele é assim mais paciente, portanto é importante que haja uma pessoa que seja muito firme, e depois… às vezes há um lado feminino, pensando bem, que funciona em obra. Normalmente, pelo que eu vou apreciando, os homens desenvolvem empatias com o futebol, na obra, e estabelecem a cumplicidade com o futebol, por vezes a brejeirice, as mulheres e tal. Eu, como não percebo de futebol, faço charme com eles, adoro o trabalho de carpintaria, do serralheiro e digo «Ah, não acredito que não me vai fazer isto…», e eles não têm coragem de contrariar. Quando isso não resulta, parto mesmo para o disparate e digo: «é assim, e ponto final». / [GF] - A segunda questão versaria as ‘principais obras’. Como ‘sugestão de tópicos a abordar’ eu ‘Incluiria’ uma distinção entre as ‘como colaborador, como co-autor e como autor’. [GC] - O tópico de influência principal no meu futuro profissional foi a decisão de ir trabalhar para o escritório do Souto Moura. A decisão de procurar isso e de ficar lá seis anos, porque ir para lá e estar lá seis meses a fazer o estágio para pôr no Curriculum, era a mesma coisa que nada, provavelmente; portanto a aposta em ficar lá contra todos os problemas que se tem no início de vida: casar, ter dois filhos, e ter uma vida familiar normal…apostar em fazer uma vida de trabalho muito intenso. E essa decisão já dizia algo sobre mim: repara, na altura ele não era o Souto Moura de hoje; já era bom, toda a gente gostava dele como professor. [GF] - Já tinha feito o Mercado de Braga e ganhado o concurso da Casa das Artes. [GC] - Sim. Tinha feito o Mercado de Braga, estava a acabar Casa das Artes e estava a fazer a casa de Miramar, mas não era assim tão conhecido. / Quando eu entrei no escritório do Eduardo (Souto Moura) éramos três colaboradores e o Souto Moura e quando vamos trabalhar com um arquitecto como o Souto Moura, a autoria é dele. O Souto Moura não delegava os projectos em ninguém. Nós desenhávamos, testávamos, desenvolvíamos as suas ideias enquanto ele ia dar aulas (o que fez com regularidade por pouco mais tempo), ou ia a reuniões e às obras. [GF] - Pois, ele depois afastou-se das aulas na FAUP. [GC] - Na altura o Eduardo ainda dava aulas na Faup, mas depois foi dar para a Suíça e Harvard, etc. Ele dava as aulas e tinha que ir às obras, que são uma fonte de trabalho inesgotável: há sempre novos desenhos para fazer, situações para corrigir. Daí que o atelier seja absolutamente fundamental, porque o projecto é apenas uma partitura, depois vem a maneira como vamos conseguir que o que foi feito a duas dimensões fique bem, é esse o trabalho fundamental do arquitecto. Para mim um arquitecto faz os projectos no escritório e depois tem que ir à obra, se não o fizer aquele projecto poderá nunca ser reconhecível…tem que lidar com os imprevistos, a decisão em obra é fundamental, e muitas vezes fazer desenhos novos porque alguma coisa teve de mudar para se adaptar à realidade da obra, de custos, de erros de interpretação de desenhos, etc. [GF] - Podes desenvolver a descrição da dinâmica? [GC] - A dinâmica era assim: o Souto Moura recebia um projecto e quando chegava ao escritório já trazia o caderno cheio de esquissos, e nós começávamos a estudar o programa, a interpretar aqueles esquissos e as conversas que tínhamos com o Souto Moura eram fundamentais para pôr “aquilo” tudo a rigoroso, fazer maquetas, testar, tirar as medidas… Se já era Projecto de Execução íamos fazendo os pormenores e quando o Eduardo chegava corrigia, “não gosto de isto assim, vamos fazer mais assim”, corrigia os pormenores, aumentava a escala, mas sempre à “mão levantada”. Nunca o vi usar uma Rotring ou desenhar a computador, desenhava sempre à mão e com um rigor enorme, tudo muito bem pensado. Fazia os esquissos com o ponto de fuga e a escala na mão - aprendi a desenhar com ele… [GF] - Qual foram os primeiros projectos em que trabalhaste? Como dizias estava a fazer a Casa de Miramar. [GC] - Os primeiros projectos em que participei foram uma piscina para uma casa do Viana de Lima na avenida Montevideu e a remodelação de um apartamento. A piscina foi simples, foi fazer uns desenhos do terreno com a casa que já lá estava, ele dizia onde ficava melhor a piscina, e eu fazia desenhos e maquetas, sempre maquetas. O apartamento para remodelar foi uma experiência incrível e pude participar muito porque este ficava por cima do escritório, então fiz os primeiros desenhos os de levantamento, acompanhei a obra (como sabia, tipo dar recados, verificar, ainda era muito verde), e colaborei desde os primeiros desenhos, até ao projecto de execução e ajustes à obra. Até ficar pronta e fotografada. / E agora sobre a casa de Miramar. Na altura estava-se a construir a casa de Miramar e foi lá a minha primeira visita com o Eduardo a uma obra - um stress total! O pilar solto da sala tinha ficado demasiado próximo do topo da laje… e à casa em Alcanena. Ele era capaz de ir a manhã toda para Miramar, depois era capaz de ir para a Braga ver coisas ainda do Mercado, ou ia falar com engenheiros ou falar com possíveis clientes. Isso também se aprende muito no escritório, como é que se lida com os clientes, como é que se dá resposta, como é que se faz com que o cliente acredite que estamos a fazer aquilo que ele quer, mesmo quando ele não sabe o que quer. [GF] - E começaram outro projectos, como o de Aveiro. [GC] - Sim. Uma das grandes surpresas ao entrar no escritório é que nunca mais é uma coisa de cada vez; os projectos andam em paralelo, mas em fases diferentes! Lembro-me que entrou o Departamento de Geociências, em Aveiro, e tive sorte porque comecei a fazer do zero, a ver as reflexões dele, a ouvir os pensamentos dele em voz alta “convidam-me para fazer um edifício e dizem-me que tenho de fazer em tijolo? E tijolo porquê? Fazer em tijolo implica um vão completamente diferente do que costumo fazer. Interessa-me essa linguagem? Construir a espacialidade que daí resulta? Como é que dou a volta ao assunto?” Tudo funcionava assim, com imenso sentido crítico, nada mecânico. [GF] - Ah. [GC] - Naquela época não havia Secretária no escritório (ainda não existia a famosa Sandra), mas nunca deixei que o Eduardo escrevesse uma memória descritiva, ou fosse à câmara apanhar uma seca, pagar a luz, o telefone e muitas vezes limpei o escritório, se fosse preciso, ou organizava o arquivo. Claro que eu não fazia só isto que não era arquitectura, mas era arquitectura também, porque era preciso isto para que o escritório funcionasse. Era tentar dar-lhe (ao ESM) a “carne do lombo” para fazer, que era naquilo que ele era mesmo bom e permitir-lhe gastar bem o tempo útil dele, retirando-lhe a maçada de certos assuntos (fazer com que se sentisse bem no escritório onde muitas vezes chegava a correr e agastado). [GF] - Depois fala do projecto de Aveiro? [GC] - Também foi importante perceber de que forma um novo projecto entrava na dinâmica do atelier… por exemplo: Entrou o projecto das Geociências e veio para mim que era a colaboradora mais jovem, porque a Manuela Lara - que era a colaboradora mais antiga - estava a trabalhar no tal livro da Gustavo Gili e o José Fernando Gonçalves estava a fazer uns pormenores de caixilhos da casa de Alcanena. Tudo coisas que eu, recém-chegada não saberia fazer. Aliás, quando vi os pormenores que ele estava a desenhar à esc. 1:1, achei que nunca iria saber! [GF] - No meu 1º ano de estudante, escolhi sempre a Casa de Alcanena, para fazer os exercícios de Geometria, do terreno à axonometria. [GC] - Esta era a dinâmica, a mais nova ia fazer uns desenhos à escala 1:200 no projecto novo, era como o que fazíamos na escola, ainda embrionário, com o programa estabelecido e sempre com o apoio de muitos esquissos, bem dirigidos e com uma certa lógica, pragmatismo, ritmo, questionamento, métrica e proporção. Faziam-se imensas experiências e o projecto foi evoluindo; eu entrei em 89 e o projecto de execução foi entregue em Agosto de 91. Pelo meio andou a remodelação do tal apartamento, concursos, lojas, nunca se trabalha só numa coisa. Então no Projecto de Execução das Geociências eu já era a “project líder” do projecto, tinha uma (espécie de) equipa a trabalhar e orientava: “tu fazes as serralharias, tu as carpintarias, tu os cortes verticais, as legendas…” consoante o número de pessoas. Naquela altura já tinha, entretanto, chegado o Francisco Vieira de Campos, a Anne Wermeille, a Teresa Novais, a Marie Clement. Já havia muito mais colaboradores, seríamos uns cinco ou seis. [GF] - E a dinâmica. [GC] - Para se perceber onde eu quero chegar com esta dinâmica, há uma história interessante: quando começou a obra de Geociências entrou um colaborador, que tinha acabado o curso, e o Eduardo disse-lhe “agora vais acompanhar esta obra”. Para mim foi um balde de água fria: “como é que ele me pode estar a fazer uma coisa destas, eu estive durante anos a trabalhar neste projecto, conheço toda a gente, os engenheiros todos, os clientes” e a Manuela, que já estava lá há mais tempo disse-me “Oh Graça, o que é que tu queres? Tu agora ias dias inteiros para Aveiro, para ver betão e pilares, voltares e trazeres recados. E quem é que fica aqui no escritório a fazer os pormenores que só tu, eu e poucas mais pessoas sabem fazer?” Eu já não era “nova”, ou seja, já tinha aprendido muito, o José Fernando já lá não estava, era a minha vez de fazer “pormenores de caixilhos”, percebi que as pessoas têm que ser rentáveis. Aprendi que se estamos a fazer um projecto (que é sempre) em equipa, temos que perceber qual é o nosso papel nessa equipa. Não é o que queremos, é o que tem que ser para o bem do escritório. [GF] - Também trabalhaste na casa do Bom Jesus de Braga. [GC] - Na altura eu estava com o projecto de execução da casa no Bom Jesus (de Braga) e lembro-me que fiz aquelas carpintarias quase “sem rede”, cheia de medo - mas ele já me tinha ensinado muitíssimo e a coisa correu bem. [GF] - E continuaste a colaborar nos que se seguiram, como a Torre do burgo, e no prédio de na foz. [GC] - Tinha estado a ajudar nos primeiros desenhos da Torre do Burgo e, entretanto, o Eduardo pediu-me para “pegar” no prédio da Rua do Teatro que um colaborador mais novo tinha começado a fazer; mas porque o processo de licenciamento era complexo e o cliente estava com pressa, ele pediu-me para ser eu a fazer. Mas nesse momento atrevi-me a pedir-lhe para depois ficar com a obra até ao fim; e foi então o primeiro projecto em que eu colaborei desde o início até ao fim da obra. Fiz maquetas até de decoração dos apartamentos e tudo. Isto para dizer que temos de fazer o que é útil, nem sempre o que mais gostávamos de estar a fazer, sem ter problemas em estar a fazer tudo para outra pessoa que é o autor - para o Souto Moura - mas fazê-lo na mesma com paixão e rigor, conscientes de que o papel que se desempenha é um papel importante naquela engrenagem. / E na Rua do Teatro a responsabilidade foi imensa, pois quem conhecer o projecto sabe que se estava a “partir pedra” ou naquele caso a dar os primeiros passos numa estrutura metálica que iria ficar à vista e tudo teria que convergir nessa ideia; portanto, a pormenorização era muito inovadora. Até conseguimos desenhar portas corta-fogo especiais e patenteá-las! Para esse projecto, por exemplo, até do nó dos pilares e das vigas - o encontro entre o pilar metálico e a viga horizontal – fizemos uma maqueta à escala 1:1. A investigação é tal que ninguém compreende que se possa duvidar que Investigação em Arquitectura seja algo diferente disto… faziam-se maquetas de todas as escalas que fossem precisas, umas para perceber os terrenos, outras para explicar ao cliente, raramente eram maquetas para exposição, mas para verificação e experimentação. [GF] - Ah. [GC] - E no fundo, entre esta metodologia de trabalho do edifício de Habitação Colectiva na Rua do Teatro ou qualquer outro como colaboradora no Souto Moura ou na Casa no Gerês, como autora, não há grandes diferenças: como metodologia de trabalho! A grande diferença é que ele é o Souto Moura e eu não ;-) / Por esta minha experiência sei que Souto Moura quando teve este “passado” de 5 ou 6 anos a trabalhar com o Siza e depois começa a fazer a sua própria obra não é nada fácil, uma pessoa aprende a fazer de determinada maneira, mas não pode correr o risco de ficar formatada. Como diz o Zé Miguel Rodrigues ser Siziano sem ficar Sizesco. Eu acho que o Eduardo tinha muita vontade de não fazer a mesma coisa, não queria repetir os trabalhos em que tinha estado a trabalhar com o Siza, mas evoluir com este passado. É uma pessoa muito inteligente, perspicaz, muito capaz de fazer uma interpretação de uma situação, seja ela pessoal, arquitectónica, escolar, consegue tirar sempre o essencial de uma situação num instante. Portanto, por um lado ele percebeu que o Siza “revisitava” o Corbusier e o Alvar Aalto, para referir apenas alguns, e percebeu como era este instrumento de trabalho, como é que o Siza trabalhava, como usava o passado. E também eu tento fazer o melhor que posso para não ficar soutomouresca. [GF] - O betão e a suspensão da casa do Gerês é incrível para além de fotogénico. [GC] - Resumindo, se eu não tivesse ido para o escritório do Souto Moura, tenho a certeza que não era a arquitecta que sou hoje, nem a pessoa que sou hoje: mesmo que o que eu quero seja fazer outra coisa! / Foi sem dúvida uma das melhores coisas que me aconteceu na vida. O Eduardo gosta muito do Herberto Hélder e oferece-me os seus livros quando são editados. Pouco depois de me dar Ofício Cantante pediram-me um depoimento pessoal sobre ele, era para um documentário…ficou num livro que saiu Eduardo Souto Moura at work e uma das coisas que eu digo é que ele me deu um ofício cantante, um ofício de que eu gosto e que desempenho a cantar, um ofício cantante acho que é uma coisa viva e ele me deu este ofício cantante literalmente, não me deu só o livro do Herberto Hélder. [GF] - Como é que decorre depois um processo de transição de colaboradora para um atelier autónomo? [GC] - Deixei o ateliê por motivos pessoais e porque tinha a ambição de dar aulas. Eu tenho uma recordação muito boa de quando disse ao Eduardo que ia deixar o escritório, porque ele me disse uma coisa muito bonita. Tinham sido seis anos a trabalhar mesmo muito e quando ele começou a preparar o escritório do Aleixo, falando comigo sobre a planta, a organização do espaço e das pessoas neste, onde eu iria ficar sentada - estando eu cansada – já que havia cada vez mais gente e cada vez era mais difícil estar com ele, disse-lhe “eu não faço parte da mobília, não vou para esse escritório” e ele ficou a olhar para mim chocado, mas disse: “eu sei que quem tem dois dedos de testa quer ir-se embora”. Eu fiquei contente porque ele não levou a mal e pareceu-me um elogio; expliquei-lhe que via aquilo como uma saída airosa, que já tinha mudado com ele para três escritórios e que tinha de ir fazer o meu caminho. Uns anos depois fiquei sem escritório de novo por motivos pessoais e ele propôs-me, com a generosidade que lhe é própria, trabalharmos outra vez juntos. O que vamos fazendo de quando em quando com muito gosto. / E claro, no meu escritório autónomo (que partilho com o Roberto), uso a experiência do passado para construir o futuro, como aprendi com ele. [GF] - Ah. [GC] - Na verdade, tenho a preocupação de, nos meus projectos, não fazer o que ele faz exactamente pelo que disse atrás; tento, uso exactamente o que aprendi com ele, mas faço de uma maneira diferente. A crítica que eu mais gosto que me fizeram até hoje foi feita pelo Luís Ferreira Alves, grande amigo do Eduardo e que fotografou sempre a obra dele e que actualmente fotografa também a nossa, e quando vai às nossas obras diz “gosto muito fotografar as obras da Graça, porque vê-se que trabalhou com o Souto Moura, mas não é igual, não é uma cópia, há qualquer coisa diferente.” [GF] - O teu doutoramento... [GC] - De certa forma, penso que o doutoramento que fiz e o trabalho que desenvolvi sobre o Athouguia, que digamos que era uma espécie de antepassado do Souto Moura em termos de expressão e de linguagem, complementou a minha aprendizagem; por outro lado há um remix com a influência do Roberto e toda a carga cultural que ele trouxe. Fui-me interessando por autores da arquitectura quer dos anos 50 – do Albini e o Gio Ponti, ao Asnago Vender, o Caccia Dominoni, o Mangiarotti, etc e também os contemporâneos, misturando aqueles de que o Eduardo me falava quando vinha da Suíça ou de Harvard e outros dessa realidade que me interessa e que entretanto se afirmaram. No fundo, a Arquitectura é uma síntese, por isso com a minha tento encontrar uma abordagem própria. III. [GF] - No domínio da ‘actividade pedagógica’, a primeira ‘questão’ visaria as ‘experiências lectivas’. Como sugestão de ‘tópicos a abordar’, ‘incluiria experiências de ensino anteriores, actuais e futuras na FAUP’. [GC] - A maior emoção com aulas foi quando fui convidada para a Faup em 2010 para dar o 2º ano de Construções: adorei! Foram mesmo dois dos anos de ensino mais gratificantes que tive. Percebi claramente que os estudantes compreendiam a minha mensagem e se entusiasmavam enormemente. Batiam sempre imensas palmas no final da aulas teóricas e recordo-me do João Pedro Xavier (que na altura assessorava o Carlos Guimarães na Direcção da Faup), me ter enviado um email super emocionante com comentários dos alunos às minhas aulas, foi muito bom! [GF] - Em 2010, o Xavier era ainda vicedirector. [GC] - No segundo ano é bem fresco o entusiasmo dos alunos e a sua capacidade de serem ‘moldados’… e acho que a motivação que provoquei nos alunos, naqueles dois anos veio, quer do meu entusiasmo natural cada vez que falo de Arquitectura que é para construir, quer pela forma de lhes explicar e encontrar as razões e as lógicas subjacentes e indispensáveis ao exercício da arquitectura e à sua construção. Isso é muito entusiasmante porque quando os alunos aprendem com os exemplos práticos e o professor explica a partir da própria obra – e, portanto, de um modo muito genuíno porque viveu os problemas na primeira pessoa – os alunos compreendem muito melhor e assimilam muitíssimo bem. [GF] - Anteriormente. [GC] - As experiências de ensino anteriores foram importantíssimas para consolidar este modo de ensinar e transmitir conhecimento; no fundo eu dei 20 anos de aulas na Universidade Lusíada que me permitiram ir percebendo muito bem como reagiam os estudantes ao ensino e evoluir. Também, que não poderia continuar ali se não conseguia introduzir algumas melhorias no Plano de Estudos, possibilidade que me foi dada na Universidade Lusófona e que tem sido extremamente válida. [GF] - Retomando a FAUP. [GC] - Posso partilhar a minha experiência como docente a partir do quarto ano da FAUP. O tema deste ano é justamente um equipamento, ou seja, um edifício público com uma área significativa de quatro ou cinco mil metros quadrados. A FAUP, inevitavelmente, é exatamente um exemplo que é sempre levado em consideração. Utilizo a obra para fazer com que os alunos entendam não só como ela pode representar uma referência útil, mas também como é necessário nos desvincularmos dela, caso seja necessário. Mas, por analogia, ou contraste é sempre um exemplo maravilhoso. Neste sentido o edifício da FAUP é uma lição infinita. / Começo muitas vezes por lembrá-los da história que Álvaro Siza contava há algum tempo, na última aula que ali nos deu, em que recorda a sua primeira ideia para o edifício derivada da relação topográfica com o rio, as suas árvores, a morfologia do lugar: e pensou num edifício maciço, quase monástico, situado naquele nível muito elevado, que inicialmente foi representando como um grande bloco, um grande edifício único, tipo o Paço Episcopal do Porto. O desafio que enfrentam durante o curso é muito semelhante: o nosso programa pede-lhes que desenvolvam um programa complexo que contém uma série de atividades diversas no mesmo edifício e, de um modo geral, a sua primeira atitude é saturar toda a área do projeto com uma série de volumes, constroem toda a superfície disponível! Uma estratégia recorrente entre os estudantes é aquela em que todos os edifícios que cumprem o programa atribuído – salas de aula públicas, auditório, biblioteca, administração – são imaginados como edifícios de direito próprio. Neste ponto, paramos e voltamos à FAUP: Siza começou com a ideia de um bloco único porque para ele representava um arquétipo adequado ao desenho de um edifício universitário. [GF] - Monolítico, depois com pátio, mas com as salas não tão circunscritas. [GC] - Só mais tarde ele decidiu fragmentar e criar uma travessia. Siza percebeu a impossibilidade de trabalhar com um edifício monolítico, uma vez que a escala e as características do local não o teriam permitido. A topografia do local, aliada às características do contexto físico envolvente, a proximidade da auto-estrada, a casa cor de rosa tudo isso colocou outros problemas, de escala, de relações urbanas, de espaços de estar dentro e fora, enfim, para os estudantes compreender através deste edifício que podem medir e sentir é extraordinário. E depois, todo o trabalho que faço com eles é como se estivéssemos no meu escritório a desenvolver um projecto real, em equipa, com os critérios de concepção e de construção da ideia, dos quais, o mais fácil é falar par coeur, de dentro, através das minhas próprias dificuldades e das estratégias que defini em diferentes projectos (obras que lhes mostro) para as ultrapassar – afinal, acredito que terá sido toda essa experiência acumulada que fez com que me convidassem para dar aulas. / Costumo dizer, o cliente pede-nos um programa, propõe um orçamento, traz-nos um lugar. A tarefa do arquiteto é entender o que está para além desse pedido imediato: algo que possa ir além do óbvio para outro. É um compromisso ético e estético da nossa profissão. Precisamos convergir para uma solução que seja adequada ao colectivo, muitas vezes – sobretudo porque trabalhamos num equipamento, não apenas a quem utiliza o edifício, mas precisamos de compreender o que o nosso edifício pode fazer pela cidade e pela comunidade. [GF] - Ah. [GC] - Gosto que as paredes brancas da sala de aula no início do ano lectivo se transformem ao longo do ano e me lembrem no final do ano, as do meu escritório quando estamos realmente envolvidos com um projeto, quando todos trazem algo para colocar no centro da discussão. Na escola eu comporto-me como no escritório. Para discutir o projeto começamos por expor os assuntos e colocá-los na mesa de trabalho para que todos possamos falar sobre eles juntos, coletivamente. / Entre as limitações que sinto, na verdade, está a falta de alguns espaços para os alunos poderem investir mais na construção de maquetes físicas. Precisamos de espaços sujos, oficinas, carpintarias e laboratórios de modelagem. Tenho notado uma tendência recente na FAUP: a maqueta está a evoluir para uma ferramenta usada apenas para apresentação de projetos, e não como uma verdadeira ferramenta de trabalho. Não é isso que aprendi e faço no escritório; aliás as maquetas de apresentação final raramente são executadas no escritório… e isso os alunos não estão a aprender. / Entre outras coisas, estou plenamente convencida das escolhas metodológicas deste 4º ano da FAUP contra as sugestões de algumas outras escolas que tentam abordar questões que - embora pertinentes - estão muito em voga através de uma espetacularização de determinados temas. Para mim, aprender a fazer projectos é como aprender a ler ou aprender a tocar piano: é preciso começar pelo abecedário ou pelas sete notas e praticar, praticar muito. Os exercícios de projeto são necessários para adquirir competências específicas de cada ano que, com dificuldade crescente, chegam a compreender um vasto conjunto de problemas de arquitetura e resoluções relacionadas. Ninguém jamais começou a escrever música pela dodecafonia. / Aqui há uns tempos fiz uma entrevista/conversa muito interessante com o Souto Moura sobre o ensino, que ainda não está publicada, mas há-de ser…e é interessantíssimo o que ele diz desses programas poéticos, muito trendy que se praticam em algumas universidade (e há malta que quer logo copiar) e ele, que tem viajado por tudo quanto é escola, tem uma opinião ainda mais radical do que esta minha – o aluno tem que ter limites muito claros. [GF] - Orientações... [GC] - Depois tenho sempre as orientações de Dissertação que me dão bastante prazer e procuro dar continuidade à minha própria investigação e partilhar com os estudantes o meu interesse pelo desenho ‘redesenho’ enquanto ferramenta muito estimulante e operativa do arquitecto: desenho da ideia e o redesenho de referência. / Em continuidade com esta linha de pensamento e investigação orientei recentemente teses interessantíssimas de estudantes, procurando sensibilizá-los através da recomendação do tema e dos autores a estudar, designadamente as teses sobre Bento Lousan com Manuel Ascensão, sobre o Tito Figueiredo com a Isaura Mendes, ou Melo e Gigante com a Ana Rute Malato, perseguindo a ideia de construir uma ampla coleção que permitirá “indemnizações tardias”, mas – sobretudo - um contributo para a história da arquitectura portuguesa e o enquadramento das figuras incontornáveis de Álvaro Siza e Eduardo Souto Moura neste panorama e na História da Arquitectura Portuguesa. [GF] - Doutoramentos... [GC] - Na Faup, nunca orientei Doutoramentos nem tão-pouco arguí, embora o faça com frequência noutras instituições como Barcelona, Valência, Coimbra, Itália…é curioso. [GF] - A segunda ‘questão, versaria outras ‘Experiências’, outras. Como sugestão de ‘tópicos a abordar’ eu ‘incluiria experiências extra-leccionamento na FAUP. [GC] - ESAP, Lusíada, Lusófona, Darmstadt, Lausanne, Mantova, Barcelona, Dubai… acho que me vou esquecer de alguma, mas estará no meu CV que é público. / Quando dei aulas na Lusíada foi uma espécie de período heroico dessa faculdade de que agora nem se ouve falar, pois creio que já despediram todos esses professores!... Mas foi uma época (1995- 2005) em que todos os que estavam a trabalhar imenso nos escritórios do Siza e Souto Moura foram lá parar (já que ninguém nos queria na Faup); estou a falar de mim, do Francisco Vieira de Campos, do João Pedro Serôdio, da Cristina Guedes, da Manuela Lara, do Jorge Carvalho, da Edite Rosa, da Teresa Novais, ou da Isabel Lacximi…tantos que aos poucos, todos saíram. [GF] - Dizes que entre 1995- 2005, muitos dos que estavam a trabalhar nos escritórios do Siza e Souto Moura lecionavam na Lusíada. [GC] - Desde 2015 sou convidada anualmente para leccionar no MArch – Postgrado en arquitectura avanzada da Universidad Europea de Valencia, assim como no MArch China e a cada ano sinto a renovação de uma enorme gratificação: os alunos vêm literalmente do mundo inteiro e, sem excepção, adoram esta aula que dou. Ficamos sempre imensas horas a responder a perguntas e a assinar revistas TC (a única monografia do nosso trabalho) e o Fran Silvestre pede-nos (e paga muito bem) sempre a repetição da primeira parte da aula onde nasceu o embrião do tema desenvolvido nas minhas Provas de Agregação – posso mudar as obras todos os anos, diz ele - mas aquela primeira parte é um sucesso tal, que há quase 10 anos que a dou sempre melhorando, porque sempre resultado da minha investigação em Projecto: Da Construção da Ideia à Ideia Construída. / Foi muito gratificante o feedback que tive no final das provas por todos os que viram e trata-se de uma aula que em todos os países tem sido um sucesso, por aqui… houve alguém que achou embaraçosa… vá alguém compreender! [GF] - A terceira pregunta versaria ‘experiências extra FAUP’. Como ‘sugestões de tópicos a abordar’, eu ‘incluiria outras instituições’. [GC] - A primeira de todas, obviamente, depois do escritório do Souto Moura é Barcelona. A decisão de ir fazer o único Curso de Doutoramento no mundo em Projecto e não em História ou Teoria foi fundamental. / Quando fui fazer o doutoramento procurei consolidar a teoria com a maturidade que a prática me tinha dado, mas na perspectiva de encontrar a minha identidade na prática e de melhorar como professora que queria ser; ou seja, aprender a transmitir conhecimento que já era bastante. / Porque tinha a tal preocupação de, nos meus projectos, não repetir o que tinha aprendido apenas; ou seja, usar mecanicamente o que tinha aprendido com ESM, mas queria fazê-lo de uma maneira diferente, a minha. Nada de matar o pai como se diz por aí; exactamente ao contrário: tentar honrar o pai, que é bastante mais difícil. / [GF] - Ah. [GC] - Depois uma ‘experiência extra FAUP’ muito importante, foi o convite por parte da Universidade Lusófona e de um professor de estética da Nova, agora Reitor da Lusófona, o Prof. Bragança de Miranda, para criar um curso novo, totalmente de raíz aqui no Porto, com liberdade para partir do zero. / Sem nunca ter tido muita proximidade ao Pedro Ramalho, para além de ter sido aluna dele no 4º ano, já que somos de gerações tão diferentes, tem sido uma experiência excelente, pois apercebi-me que as nossas convicções – relativamente ao ensino – são mesmo muito convergentes. O Pedro acredita, como eu e o João Pedro Serôdio, de resto, que o Projecto é central e diz mesmo que A Escola que Carlos Ramos organiza desde 1952 é a Escola do Porto. E que “essa Escola entra em decadência nos anos 60 com a contestação à Reforma de 57 e finalmente se extingue quando Carlos Ramos é jubilado em 1967. A partir daqui a Escola perde a unidade com divisões entre Diretor/professores/estudantes que se tornam fatais com a "Experiência" de 1970. / Depois "Abril" e o SAAL, as "Bases Gerais" e finalmente em 85 a Faculdade, com a perda da "cadeira mãe", o Projeto, e o caráter aditivo, e portanto redutor, das restantes disciplinas.” / O curso que propusemos é uma espécie de curso do Carlos Ramos - Take 2, em que se propõem um Plano de Estudo, uma Distribuição de Serviço, um horário e uma selecção de Professores em que tudo converge em Projecto repensando aos dias de hoje a acção de Carlos Ramos que Pedro Ramalho lembra entre nós e tenho citadas as suas palavras: “A palestra de Carlos Ramos de 1933, dedicada a todos os alunos da Escola de Belas Artes de Lisboa, é citada por Pedro Vieira de Almeida. / Ramos, nessa palestra, critica a formação de arquitectura dada no seu tempo de estudante notando como "com aulas de matemática, construções, resistência de materiais, história da arte e arquitetura, nunca qualquer daquelas disciplinas se revelou em qualquer altura do curso diretamente relacionada subordinada a esta última, a mãe afinal de contas". / Na mesma palestra Carlos Ramos propõe 8 regras para um correto processo pedagógico. Deste conjunto de regras, cito Pedro Vieira de Almeida: "Tirando aspectos circunstanciais, é de reparar na atualidade das regras propostas, sobretudo da necessidade de uma efetiva subordinação de cada cadeira do curso à cadeira mãe, a arquitetura". / Portanto, ele escolhe e convida arquitectos que ensinavam através da própria obra e, como dizia Távora: " mostrava-se os próprios trabalhos, falavam muito sobre construção, materiais e sistemas construtivos. E esta foi uma lição fundamental." E hoje parece que fazer isto é até considerado embaraçoso…! Claro que por aquelas pessoas que - como não têm obra para mostrar - não querem que ninguém mostre. Mas numa Escola destas, todos deveriam ter o seu lugar. Precisamente segundo aquela ideia de que numa equipa todos devem saber o seu papel e que pode ser importante, exactamente pela sua diferença! Não se pode é pedir a pessoas que não constroem para ensinar a “construir” um projecto…Eram arquitectos como em 1951-52: Agostinho Ricca, Mário Bonito, Fernando Távora, Carlos Loureiro, e João Andresen. Em 1958: Octávio Lixa Filgueiras, e Arnaldo Araújo. Em 1960: Pádua Ramos, em 64 Cristiano Moreira, em 65 Álvaro Siza, em 66 Duarte Castel-Branco, em 67 Jorge Gigante e Pedro Ramalho. O Alcino Soutinho e o Alexandre Alves Costa são do tempo da "Experiência" e o Sérgio Fernandez entra mais tarde. / Portanto, fizemos um conjunto de convites a pessoas como o José Gigante que coordena as Construções com assistentes criteriosamente escolhidos por eles, o Rui Furtado, engenheiro com indiscutível curriculum para as Estruturas e eu e o João Pedro Serôdio Coordenamos, um até ao licenciatura e o outro, até ao Mestrado, o Projecto, escolhendo pessoas que no mínimo teriam que ter no seu CV uns dez anos de experiência prática em escritórios com obra reconhecida pelos nossos pares e também obra própria já construída, como o Rui Castro, a Luísa Souto Moura, o André Campos, o Guilherme Machado Vaz (que agora foi para Coimbra e o José Paulo dos Santos brilhantemente substituiu) e o Nuno Graça Moura. O mais difícil é sempre encontrar arquitectos com esta formação e doutoramento para assumir as aulas teóricas, mas temos tido pessoas interessantes, como o Joaquim Moreno ou o Sidh Mendiratta, que agora vieram para a Faup. Enfim, um curso demora tempo a consolidar-se, como a própria arquitectura precisa de tempo, mas tem estado sempre a crescer, cada ano as turmas são maiores e cada ano, os alunos são melhores. / Acredito que o Pedro Ramalho tem muita razão e que aquilo que todos dizem ser a essência daquela Escola de Carlos Ramos se perdeu, não está ser honrada e ninguém está muito interessado em manter… até já ouvi um aluno dizer recentemente numa visita guiada daquelas que a Faup organiza a estrageiros, que a importância do Carlos Ramos foi ter introduzido o Partido Comunista na Escola do Porto, coitado do Carlos Ramos!!! / IV. [GF] - No domínio das ‘memórias pessoais’. A primeira questão visaria ’o período da FAUP (pré-Bolonha 2008). Como ‘sugestão de tópicos a abordar’, ‘incluiria eventos, protagonistas, factos marcantes, curiosidades’. [GC] - Um dos factos mesmo marcantes eram as visitas de estudo com os professores às obras, algo que agora praticamente não acontece… / Os professores construíam e tinham o prazer em mostrar o que faziam. Puramente teóricas, históricas, lembro-me apenas das aulas do Domingos Tavares no 2ºano, que adorava, em que visitávamos duas ou três obras suas, que não eram muitas, mas a experiência era fundamental e as suas aulas de história eram absolutamente fabulosas, tais como mais tarde no 4º ano as do Alexandre Alves Costa. Porém, eu acho que na nossa formação, nas escolas de arquitectura, não pode haver só este lado do professor mais teórico, ou do professor de Projecto que não tem a prática ou não constrói. Eu fui encaminhada sempre para este deslumbramento do escritório e o mais importante foi que desde o 4º ano nunca mais deixei de trabalhar. Mais entusiasmada, a gostar mais do que estava a fazer, mais envolvida pessoalmente, a gostar mais do projecto e do escritório ou menos, mas nunca deixei de trabalhar. Não trabalhava porque precisava, trabalhava porque a escola me incutiu esta paixão de que fazer arquitectura é para ir para o escritório, não é para escrever livros. E hoje até gosto de escrever, mas não o saberia fazer se não soubesse fazer arquitectura, assim como não saberia dar as aulas de projecto que dou sem a experiência de escritório e de obra que tenho. [GF] - Acabaste o curso em 1989. [GC] - Acabei o curso em 89 e o meu sonho era ir trabalhar para um escritório bom, em Portugal ou fora. Um dia estava no café com o Manuel Mendes e disse-lhe: “soube que o Souto Moura está à procura de um colaborador e gostava muito de ir para lá, mas tenho vergonha…” e o Manuel incentivou-me, fui e fiquei, até hoje trabalhamos juntos. Resumindo, eu acho que a coisa mais importante do meu curso foram todos estes ateliês em que eu trabalhei. [GF] – Ah. [GC] - O meu período Faup pré-bolonha resume-se aos três anos que fiz entre 1986 (inaugurando? o Pavilhão Carlos Ramos) até 1989, ano em que terminei o curso já em Dezembro, uma vez que ingressei no escritório do Souto Moura em Maio desse ano, decidindo atrasar um pouco a entrega do Relatório de Pré-Profissionalização, era assim que se chamava na altura. / O facto curioso e muito premonitório é que o fiz com um projecto de reabilitação e proposta de salvaguarda das Termas de S. Lourenço, na margem do Tua onde se dizia estar prevista a construção de uma Barragem que viria a alterar a sua relação com o rio, aproximando-os. Nunca eu poderia antecipar que seria o Souto Moura a desenhar e construir essa barragem e que eu faria dois Documentários para a RTP2 a esse propósito! / Marcantes foram sem dúvida os famosos ciclos de conferências que se organizou com a presença dos melhores arquitectos da época – creio que pelo João Pedro Serôdio e José Paulo dos Santos, entre outros – ainda no auditório das Belas Artes, já que a Faup ainda não tinha, mas não sei se não terá havido umas conferências anteriores onde me lembro do Souto Moura ter mostrado o Mercado de Braga. [GF] - O ciclo de conferencias do Stirling, Moneo, Zunthor. [GC] - Recordo claramente de virem arquitectos como o Stirling, o Moneo, o Herzog ou o Zumthor…depois voltou a haver um outro ciclo destes, excelente. [GF] - Houve, o primeiro tinha posters brancos e o segundo posters pretos, pelo menos o segundo é nos anos 90, penso que veio o Moneo, o Chipperfield, etc. [GC] - julgo que terá sido um no qual o Eduardo apresentou a reabilitação do Convento de Bouro com a analogia ao Coiote do Joseph Beuys, mas penso que um ciclo assim com contributos da ‘grande Prática de Arquitectura’ acabou por aí. / Outro dos factos que julgo ser digno de registo foi a forma como comecei a fazer os projectos da Faup a partir do 4º ano em que, com o António Portugal, o Manuel Maria Reis e o Francisco Cunha, montamos um escritório num apartamento na Rua da Constituição. Aí, simulávamos um verdadeiro escritório de Arquitectura, mas onde em lugar de projectos a sério, fazíamos os projectos da Escola. Foi fantástico, melhorei imenso como estudante e havia imenso debate e encontros. Perto do Pajú, muitas vezes encontrávam-se ali malta que trabalhava em sítios diferentes, tipo a Cristina (Guedes), o Tó Barbosa, a Isabel Sereno, o Francisco (Vieira de Campos), a Isabel (Lacximi), enfim, debatia-se e dali íamos comer de madrugada umas sandes de rojão para voltar à noitada para Projecto. [GF] - E Bolonha? [GC] - Agora o mais importante é que já passaram quase 30 anos do acordo de Bolonha e ninguém faz um ponto de situação? Não há críticas? Está tudo a correr assim tão bem? Eu não concordo nem um bocadinho e todas as pessoas que conheço nas universidades com um curso em que a actividade prática é fundamental, estão a sofrer. Em Medicina, então, dizem todos os meus amigos que andam por lá, é dramático! Imaginem ser operado ao coração com alguém que aprendeu com alguém que ouviu dizer como se faz e nunca fez…safa! / E quando vou (frequentemente) para Itália vejo as enormes críticas a este novo Academismo doentio que tomou de assalto as universidades e ao qual já estão a tentar dar a volta, uma vez que foram os primeiros e também já são os primeiros a reconhecer os danos e a fazer marcha-atrás, mas por aqui é como com a moda: só passados 2 ou 3 anos de eu a ver em Milão, a vejo chegar cá. V. [GF] - A 14 abril 2020 escreveste-me, penso que em plena pandemia: “Confesso-te que ando a mil... Na verdade, isto apanhou-me nesta tão estranha fase que vivemos, em que tenho que fazer os vários (demasiados) trabalhos que sempre fiz e ainda acumular com o de empregada doméstica e de secretária”… / Mas partilhavas por escrito muito, com o título concreto. [GC] - “O que trago no bolso – a revisitação e a interdisciplinaridade” . Sim, era algo que já tinha mais ou menos organizado, creio que para uma entrevista anterior. [GF] - Num primeiro momento, sobre “Revisitação e interdiscipinariedade”. [GC] - Revisitação e Interdisciplinaridade. Curiosamente quando cheguei às Belas Artes (gosto muito de dizer que ainda comecei o curso de Arquitectura nas Belas Artes, junto dos pintores, escultores, designers, etc) a disciplina principal chamava-se Teoria Geral da Organização do Espaço e o Professor era o grande (se bem que pequeno homem) Fernando Távora, o Mestre. Ele incitava-nos à curiosidade com uma frase doutro Fernando, o Pessoa: "sem a loucura o que é o homem, mais que besta sadia, um cadáver adiado que procria?" (Poema D. Sebastião, Mensagem). A loucura era a inquietação que todo o curioso sente! / Recentemente recebi um texto sobre a minha (nossa obra), que ainda não foi publicado, e se chama Together is better e fiquei contente porque ele nos associa a alguns excelentes e raros casos de “casais” de arquitectos, sendo um formado pela Allison e Peter Smithson, que em 1953 disseram algo que por acaso me interessa muitíssimo e várias vezes o refiro nas aulas articulando com a anterior referência do Távora: “Pensamos na capacidade de a arquitectura se alimentar com uma energia que no convívio com as outras disciplinas, vai influenciar a natureza do que virá". / Esta introdução é interessante para apresentar algumas referências que mostram o meu interesse pela “revisitação” apreendido através de outras disciplinas que sempre cruzaram os meus caminhos num percurso que considero o do meu desenvolvimento (humano)… [GF] - Graça. Obrigado pelo teu tempo e partilha de referências, era exactamente o que pretendia… / A teoria difere da crítica e seguramente da história. Um bom projecto tal como uma boa obra construída, são na sua contemporaneidade obras de teoria cristalizadas per si, e aberta à leitura como um tratado ou manifesto. (A minha primeira aula do ano é sempre intitulada "Palavras e construções", e fala da evolução do conceito de espaço ao longo da história, do de arquitecto, e das proximidades e analogias entre os de teoria/projecto/construção (Tudo arquitectura); Passa pelo arco e cimbre que mencionas). / Obrigado pelo bom momento. Vou fumar um cigarro à varanda e pensar em algo muito interessante que me alertaste: Sempre pensei que os momentos de crise [como esta pandemia], que tem um impacto directo no aprimoramento e por vezes surgimento de novas ideias porque conferem mais tempo para pensar e aguçam a curiosidade/imaginação. Mas é interessante como pões a questão do impacto deste impasse virológico na temporalidade da construção de uma obra concreta./ Quando isto passar vamos, se permitires, tomar um café… / Até já.

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