6/26/24

Conversa sobre desenho e escola (Raquel Pelayo)

CONVERSA SOBRE DESENHO E ESCOLA DO PORTO _ MARÇO 2022 (Raquel Pelayo com G. Furtado). / I. [GF] - Desenho 1 é um programa para fundamentos do desenho; que tem como objetivo ensinar pessoas a desenhar, em termos representacionais. Desenhos, que reproduzam as qualidades dos objetos, dos espaços, enfim, do que for modelo. [Raqulel Pelayo] - Sim, é só esse tipo de desenho e nesse propósito. Eu até costumo dizer aos meus alunos que fazemos sempre o mesmo exercício: Tenho uma chave à frente e vou reproduzir as qualidades formais, as propriedades desse objeto ou do que for. / Os exercícios começam muito simples porque nós temos alunos que tanto vêm sem formação absolutamente nenhuma, portanto não sabem desenhar de todo, como alunos que já sabem desenhar. Portanto, nós começamos do mais básico para o mais complexo e o programa segue essa lógica. [GF] - O que é mais complexo? [RP] - O mais simples é desenhar, sei lá, uma árvore. O mais complexo será desenhar uma rua de uma cidade, uma praça, um jardim… / E deve, na minha opinião, haver aqui também uma ênfase importante no entendimento daquilo que se está a desenhar porque há aqui várias correntes do desenho. É possível ensinar a desenhar de uma forma quase inconsciente, que é o método da Betty Edwards. / Mas também é possível…embora mais complexo e mais difícil, aprender a desenhar entendendo, de facto, tridimensionalmente, as formas. Porque o desenho é um estímulo visual bidimensional… [GF] - É isto o programa? Mas tem fases. [RP] – Tem 3 fases neste momento… Que vão do simples para o complexo. Desenhamos sempre objetos e espaços em paralelo… [GF] - Mas não há exercícios diferentes, com claro/escuro etc? [RP] - Na primeira fase praticamente não. Os exercícios são todos iguais, são todos a lápis e é tudo mais ou menos meia hora. É tudo A3 e é tudo igual e linear. É a forma, a questão da forma, mais nada! É a questão representacional da forma. Gerir as pistas da tridimensionalidade. [GF] - Mas na minha altura fazia-se esboços, claro/escuro… [RP] - Mas isso deixou de ser assim. É só linha e é só isto. Os modelos variam no seu grau de complexidade e vai-se avançando por aí. Depois, numa segunda parte, introduz-se o claro/escuro. E introduz-se os 4 modos do desenho. [GF] - Esquisso, esboço, contorno e detalhe. [RP] Sim. O esquisso, que é muito rápido; o esboço, que é uma coisa também de meia hora, mas com materiais mais diversos e com claro/escuro. Com mancha que se pretende que reproduza a iluminação à qual objeto ou o espaço está a ser sujeito, ou seja, que haja um entendimento dessa iluminação, porque há um comportamento x… E isto é o esboço. Depois há desenhos de mais ou menos meia hora, que são o contorno, em que só se desenha com linha, mas o processo é sem traçados auxiliares. Porque na primeira fase era só traçados auxiliares, portanto, o uso de vetores e tal para medir tudo. No desenho de contorno é só linha, normalmente a esferográfica e não há qualquer traçado auxiliar, é só o contorno mesmo… Não é silhueta porque entra-se para dentro das formas, mas é só aquilo que é traduzível em linha. Isso faz com que o desenho tenha que crescer, digamos assim, de outra maneira que não o tal que tínhamos estado a fazer na primeira fase. É um desenho mais superficial, de aparências formais. E depois temos o desenho de detalhe que é a continuação da primeira fase (assim como o esboço também o é) só que demoram, no mínimo, 1 hora, mas muitas vezes 2 horas e, nos últimos anos, 4 horas. Que é estar a desenhar uma paisagem ou uma situação, um edifício, um conjunto de edifícios, ou uma assemblage de vários objetos que inclui formas geométricas e orgânicas e que também implica claro/escuro. Isto é sempre feito em A3 e é sempre feito em lápis, a grafite. / Tenta-se reproduzir as próprias texturas das superfícies. Portanto, tem uma qualidade fotográfica, digamos assim. O aspeto final é fotográfico. Enquanto que no esboço não. Estamos a usar outros materiais muito diversos, lápis de cor, carvão… para interpretar o claro/escuro…, mas as texturas não se referem aos objetos. Se é liso, pode não estar liso. É a textura que aquele material dá, portanto, é própria do desenho, não do que está a ser representado. Mas a informação continua a ter que ser a referente ao objeto. A informação formal. Formal ou espacial. [GF] - Mas sempre foi assim? [RP] - Isto era mais salteado… Logo na primeira fase fazia-se esboço, usavam-se vários materiais e por aí fora, usavam-se até aguadas… A primeira fase era esboço. Nessa multiplicidade que o esboço permite. [GF] - Mas agora é porque já não há tempo? [RP] - Sim. Por um lado, porque já não há tantas aulas e, por outro lado, porque se pensou que os alunos ficavam um bocado confusos com o uso dos materiais e então ficou uma coisa mais dura e um bocado seca, a meu ver, em que os alunos têm sempre o mesmo material e, portanto, ele não é perturbador daquilo que se está a fazer que é aprender as bases das proporções, das medidas e dessas coisas todas, que se faz sempre, sistematicamente, na primeira fase. Mas isso já tinha sido introduzido como objetivo pelo Joaquim Vieira. / E depois a terceira fase é a continuação da segunda, só que mais complexa. Na segunda já desenhamos cidade. E nos objetos nunca se chega ao modelo nu que são as coisas mais difíceis de fazer. Portanto, muita informação para colocar no desenho… Portanto, a última fase é para espaços mais complexos da cidade e o modelo nu. São o nível mais alto de dificuldade, a ver se eles se aguentam, não é? E inclui na mesma os tais 4 modos. Isto é o programa de desenho 1 em traços largos. [GF] - Desde os anos 90 o que alterou? [RP] - Na realidade, eram 4 fases e agora são três. A terceira antiga já incluía cidade e até modelo, mas ainda era uma fase intermédia. Na quarta pedia-se que os alunos tivessem uma atitude plástica e gráfica própria, com uma poética, vá lá, própria. [GF] - E agora? [RP] - Agora pede-se logo nessa terceira fase… E acabou-se. É uma espécie de fusão entre as 2 últimas fases. Eles têm menos tempo, para atingir esse nível. [GF] - Quanto é que reduziu? [RP] - Aí, reduziu muito. [GF] - Para metade? [RP] - Se não é metade aproximar-se-á disso. [GF] - E os resultados… [RP] - Apesar de tudo, os resultados não são maus. [GF] - Eu, na minha área, para 2/3… [RP] - Também é à custa da primeira fase ser tão dura e tão incisiva nas questões formais que permite que os alunos tenham ali uma base, muito dirigida à questão onde eles depois falhariam. [GF] - Mas se cortassem mais, já não era possível trabalhar, se calhar… [RP] - Acho difícil… [GF] - Já está mesmo no osso? [RP] - Já está no osso, mas teria que se tirar, por exemplo, a cor e o lápis de cor. Porque isso cresceu não sei porquê visto que é muito difícil e muito moroso! Dantes era só um cheirinho tal como o desenho de detalhe. Perde-se muito tempo. [GF] – E o Desenho 2 que acompanha projeto? [RP] - Sim o Desenho 2 vive, digamos assim, nessa parceria e assume-se como um desenho de arquitetura, que… [GF] - Inicialmente chamava-se desenho da arquitetura e passou-se a chamar Desenho 2. [RP] - Sim, ainda no tempo do Carneiro… Com o desagrado dele, mudou-se. [GF] - E, portanto, é um desenho de apoio aos processos de projetação e… [RP] - Parte do princípio que os alunos tiveram primeiro o Desenho 1... E o programa tem 4 fases. Mas esse, então, já ultrapassou o osso! Já faltam ossos! Mas a ideia é... Os alunos em projeto, no início, vão conhecer o sítio e começa-se sobre o sítio. [GF] - Portanto, a primeira fase é no sítio da projetação. [RP] – Sim, e é feita de questões de representação como: O que é que interessa a um arquiteto registar?… É, tentar pô-los nessa predisposição do que será a informação do lugar que interessa a um arquiteto. Informação essa que está disponível “em perspetiva” no local e… [GF] - Portanto, os alunos têm que dominar a perspetiva. [RP] - Se ainda não dominam têm que vir a dominá-la. Normalmente, começávamos a ir logo para o sítio. Aqui já há 10 anos atrás deixámos de ir para o sítio para termos uma espécie de introito e fazemos 3 ou 4 aulas no complexo da FAUP. Mas com a promessa que depois vamos abordar o sítio e estamos ali a aprender como é que se faz… A treinar. [GF] - Depois, então, passadas essas primeiras aulas na faculdade… [RP] - …em que desenhamos ao ar livre o complexo do Siza, vamos para o sítio de Projeto 2 que todos os anos é diferente, e vamos aí fazer esses exercícios. São quase todos em perspetiva. Há uma ou outra situação de fazer axonometrias e plantas, para percebermos os eixos viários por exemplo. Onde é que os equipamentos estão? medir… fazer uma planta no local andando, e medindo com o corpo, com passos e por aí a fora. [GF] - Depois passa-se para uma fase que é o “desenho dos desenhos” ... [RP] - Nessa fase, a ideia é ir buscar os desenhos de arquitetos, normalmente do início do século XX, ou outros. E os alunos pegam, escolhem, selecionam desenhos e copiam-nos. Muitas vezes são desenhos rápidos, normalmente são esboços, têm técnicas muito diversas e os alunos tentam reproduzir tentando entrar na performance que terá dado lugar àquele desenho. A ideia é eles aperceberem-se do legado e das práticas, não é para copiar mas sim estudar e questionar. [GF] - E o “desenho do imaginário”? [RP] - Aí vamos dar apoio àquilo que é o processo que eles, entretanto estão a desenvolver em Projeto 2 e têm que imaginar como é que o projeto é, como é que vai ficar e por aí a fora. E então nós também damos uma base de referência à geometria, de perspetiva linear, de como é que, em planta, é possível pôr o observador em determinado sítio; qual será o campo visual; o que é que se vê daquele ponto fictício, e depois determinando também uma altura… É tudo à mão levantada, não é para reduzir isto a exercícios de geometria, obviamente! E, apenas com uma planta do projeto e do sítio, é possível fazer imagens do projeto, imaginando então o sítio com o projeto. Desenhos de exterior e de interior para tentarem perceber as proporções e os efeitos do que aquilo vai ser. Esse trabalho, vai sendo desenvolvido só linear para dominar o processo… E depois entramos numa fase final que é retomar a experiência do “desenho dos desenhos”. [GF] - Das cópias dos arquitetos e da pluralidade das expressões gráficas que eles utilizaram. [RP] – Sim. Para introduzir isso e fazermos desenhos mais interessantes, já com texturas e com claro/escuro para estudar a iluminação. Usando técnicas, as mais variadas que ficam ao critério dos estudantes e, de uma forma já mais rica. [GF] - No fim, faz-se um painel, que é a última fase, que é a fase da comunicação. [RP] - Em que se tenta fazer um painel com base nas imagens da fase anterior… Que são trabalhadas e melhoradas para mostrar o projeto. Escolhendo uma técnica, porque as anteriores eram mais experimentais. Uma técnica coerente, que dê coerência gráfica ao painel… entre interiores, exteriores, uma planta, e mais não sei o quê. [GF] - Mas do projeto deles. [RP] - Do projeto deles, sempre. [GF] - Ficam todos contentes com o painel! [RP] - O painel depois assume também um lado às vezes, ilustrativo… depende um bocado dos alunos e, também, das ênfases que cada docente depois dá. Oscila entre a inconsequência gráfica e simbólica que os edifícios possam ter quando os alunos são um bocado imaturos… E o domínio de entender o que é que estão a projetar e encontrar meios gráficos adequados ao projeto que leva a fazerem um bom trabalho. II. [GF] - a primeira pergunta que te colocava era se me podias fazer um enquadramento breve biográfico? [RP] - Da minha pessoa? Nasci em Vila do Conde em 1968. O meu percurso foi pelas artes. Tirei o curso de pintura na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, na altura Escola Superior de Belas Artes. Fiz o meu mestrado em História de Arte na Faculdade de Letras e fiz o doutoramento na Faculdade de Psicologia e Ciências de Educação, em ciências de educação com uma temática dentro do ensino do desenho. [GF] - Quando é que acabaste o curso? 90 e pouco? [RP] - Sim, 90 e muito pouco. Depois dei mais ou menos durante 10 anos aulas no ensino secundário e depois acabei por concorrer para lecionar aqui e fui aceite. [GF] - Portanto, não tinhas contacto… relação com a arquitetura, nada… tinhas feito o mestrado em história da arte… [RP] - Não, eu estava a fazer o mestrado e acabei… nesse ano, no ano em que comecei a lecionar aqui. [GF] - A coluna de desenho teve vários regentes. Deves ter contactado ainda com o Alberto Carneiro… [RP] - No ano em que eu comecei a lecionar o Alberto Carneiro estava a lecionar o seu último ano porque depois reformou-se, no final desse ano. Foi uma experiência muito interessante, porque era uma pessoa muito aberta e com uma visão do desenho que me interessou particularmente. [GF] - O grupo de trabalho era o Grade, era a Luísa Brandão… [RP] - E o Pedro Maia… [GF] - E o Armando. [AF] - O Armando entrou nesse ano, mas só deu Desenho 1. Eu dei Desenho 1 e Desenho de Arquitetura. [GF] - E ainda estiveste com o Frade?... [RP] - O Frade saiu nesse ano. E a filha do Fernandes Sá…que depois faleceu. [GF] - E o Alberto Carneiro, foi interessante? [RP] - Foi muito interessante. Foi um desafio enorme, porque eu só tinha a perspetiva do desenho dentro da área das belas artes. E, portanto, foi toda uma descoberta apaixonante do uso de desenho dentro da arquitetura… [GF] - Apaixonante? [RP] - Sim! Porque para mim, na altura, foi um mundo completamente diferente e percebi que o desenho é muito mais do que aquilo que eu pensava na altura. No seu uso pela inteligência de resolver problemas concretos. [GF] - O uso de uma inteligência espacial [RP] Isso! Também, no caso do programa dado pelo Alberto Carneiro, era todo o lado sensível que ele projetava nas aulas. [GF] E no primeiro ano? [RP] - No 1º ano era um programa muito mais parecido com aquilo a que eu estava habituada e, portanto, não foi um desafio assim tão grande. Foi um desafio em termos do nível superior, o ritmo de trabalho que era exigido aos alunos, etc. Mas sempre achei que era muito diferente a forma como o desenho era concebido e era lecionado no Desenho 1 e no Desenho 2. [GF] - Trabalhaste também com o Joaquim Vieira. [RP] - A grande diferença entre os dois, em termos pedagógicos, era que o Joaquim Vieira entendia que os alunos deveriam ter um processo de trabalho em que o professor está sempre em cima e decide a maior parte das coisas do desenho. E, portanto, o espaço, digamos assim, da expressão pessoal e das decisões pessoais sobre os desenhos era muito limitado. E, portanto, havia um grande apelo a que nós, professores, estivéssemos sempre em cima deles digamos assim. Muito diferente era o programa do Alberto, no segundo ano, em que se partia do princípio que o aluno tinha que construir o seu desenho, que tinha de descobrir a sua forma de desenhar, devia-se projetar em todo o processo, porque a coisa estava mais ligada a projeto, e devia fazer a gestão do seu próprio desenho. No caso do Joaquim Vieira, era um bocadinho ao contrário: Fazia-se tábua rasa dos saberes que os alunos traziam do ensino secundário, e, basicamente, a FAUP ia ensinar como é que deveria ser feito. [GF] - Era por treino. [RP] - Sim, e no Desenho 2 não, nada disso: era ao contrário. [GF] – E o Desenho 2 com o Vítor Silva? [RP] - Depois, passado um ano, o Joaquim Vieira deu, durante 2 anos, se não estou em erro, o Desenho 2 e o Desenho 1. Fez alterações ao programa, e claro, mudou completamente a ênfase e, portanto, veio trazer para o programa uma abordagem do tipo da que existia no Desenho 1 que acabou por vingar. [GF] - O Carneiro não foi logo substituído pelo Vítor Silva? [RP] - Não. O Vítor Silva ainda não tinha doutoramento feito e, portanto, teve-se que aguardar. E nesses 2 anos houve esse programa alternativo! [GF] - Depois com a chegada do Vítor Silva o que é que aconteceu? [RP] - Depois com a chegada do Vítor Silva voltou-se ao programa do Alberto Carneiro, mas um programa do Carneiro um bocado alterado. [GF] - O Alberto Carneiro tem aquelo livro corpo, espaço não… Mas algumas aulas tinham a ver com esse livro. E também me dava muito bem com o Fernando Lisboa, que estudava muito esse livro, e também o do Joaquim Vieira. O Victor Silva quando chega, depois dessa experiência dos 2 anos, vai retomar a mesmo programa do Carneiro ou uma coisa híbrida? [RP] - O Vítor Silva retomou o programa do Alberto Carneiro, mas não na sua totalidade. Havia uma parte do programa que era dirigida à criatividade e à colocação de hipóteses formais de projeto que foi posta de lado por receio - penso eu, mas posso estar enganada - que isso, de alguma maneira, perturbasse os trabalhos em Projeto 2. E foi desenvolvido o “desenho dos desenhos” que era um exercício feito nas férias e que ocupava uma aula de crítica e comentário no tempo do Alberto Carneiro e que foi transformado numa fase, que substituiu as que foram retiradas do programa original do Carneiro. E, portanto, é vá lá… 80% é o programa do Alberto Carneiro, mas com ênfase diferente pelo que ele disse publicamente que não se reconhecia no “novo” programa. [GF] - E os livros foram publicados pela FAUP edições ou foram as provas de agregação, conheces? [RP] - Claro que conheço. O pensamento do Alberto Carneiro está aí bem plasmado e o do Joaquim Vieira também no livrinho dele. Portanto, qualquer pessoa pode constatar como são abordagens completamente diversas, em termos teóricos e em termos pedagógicos.… já que aí definem suas estratégias. [GF] - No fundo, a estratégia do Alberto Carneiro é uma estratégia centrada no estudante. [RP] Sim e o professor é um gestor, um desafiador e um motivador, dos desafios programáticos que vão sendo colocados aos alunos e, também, quem auxilia na procura das soluções… E incentiva a exploração desses problemas. No caso do Joaquim Vieira, é o inverso em termos pedagógicos. Existem problemas que são mais fechados, porque há um resultado final que é esperado que os alunos atinjam em todos os desenhos e, portanto, baseia-se nesses modelos. Existem modelos de esquissos, de esboços, etc. Os alunos têm que andar até chegar a esse modelo. Portanto, é uma coisa centrada na matéria, nos resultados e não nos alunos. [GF] - O Vítor escreveu sobre desenho, sobre o Poussin, sobre uma série de coisas. Pedagogicamente. [RP] - Ora bem, eu penso que escritos pedagógicos do Vítor Silva não haverá, pelo menos publicados, não conheço. Sei que ele tem algumas coisas que escreveu em cartas abertas a docentes e coisas do gênero, portanto trabalhos breves e tem alguma coisa nas sebentas que nós publicamos em defesa do programa. Mas não chega para termos um posicionamento didático claro. [GF] - E nos últimos anos – imagino que por sabáticas ou outras coisas - tem havido às vezes regências de outros colegas. [RP] - Sim, mas não é diferente porque foram situações muito pontuais. Na realidade, foram 3 anos, um no primeiro ano e 2 no segundo e muito passados no tempo e, portanto, penso que não foram relevantes. Ninguém fez alterações programáticas nem seria de fazer uma vez que seria apenas uma interrupção de 1 ano e, portanto, as coisas mantiveram-se. [GF] - Olha, e ao longo destes 24 anos que tens lecionado neste novo contexto da faculdade, vinda das belas artes… Como é que tu vês esta coluna do desenho… que é composta pelo desenho, pela geometria, pelos AutoCAD’s e opcionais como as fotografias … [RP] - Não vejo grandes relações entre elas, porque, na realidade, a ideia que eu tenho é que isso existe como uma estrutura administrativa, mas nunca houve reuniões, ou algum trabalho nesse sentido. Nunca assisti durante estes 24 anos alguma vez ter havido algum trabalho de articulação, dentro daquilo que serão as várias unidades curriculares de desenho. [GF] – Fala-se da coluna de desenho. Há uma autonomia da cadeira de desenho em relação a essa coluna, e destas cadeiras que fazem parte dessa mesma coluna? [RP] - A única articulação que eu conheço é as articulações de ano, nestes últimos anos, para resolver as questões da marcação dos testes e das avaliações. [GF] - E a investigação? Acho que hoje é absolutamente claro que a investigação é uma coisa importantíssima: não é só o ensino! [GF] - O ensino e a investigação podem estar articulados. O ensino e a própria investigação têm que estar articulados. Eu faço, mas muito isolada. No CEAU não existe uma linha de investigação do desenho e isso faz com que não tenha havido nenhuma investigação articulada dentro do campo do desenho, considerando o desenho das cadeiras de desenho, as de geometria e a dos CADS e das fotografias e dos filmes e não sei quê… [GF] – Também relação com o cinema. [RP] - Existem eventualmente… Mas baseadas só num ou noutro investigador, mas sem qualquer articulação. A maior parte dos docentes de desenho à exceção da Noémia, estão todos noutros centros de investigação fora do CEAU ou não têm centro de investigação. E mesmo a Noémia está no CEAU, mas também está noutros se não estou em erro. [GF] - Mas tu estás no CEAU? [RP] - Eu também não estou no CEAU, estou no i2ADS como o Vítor. [GF] - Na escola do Porto, há importância do desenho nesta dicotomia desenho/projeto de arquitetura e a tradição do ensino de projeto ancorado na prática do desenho… usam o termo disegno. [RP] - Eu penso que o desenho é um dos 3 pilares daquilo que é o pensamento humano. [GF] - Referes 3 pilares do pensamento humano? [RP] - Que são a escrita para pensar coisas abstratas e também não abstratas, mas que produz e permite o pensamento absolutamente abstrato. Temos a matemática que, no fundo, permite pensar quantidades e brincar com isso e por aí fora, e temos o desenho porque o nosso cérebro está preparado para pensar através de imagens, não é? Nós vemos e sonhamos e conseguimos imaginar e, portanto, essas capacidades cognitivas permitem-nos pensar através das imagens. Há áreas em que isso é absolutamente claro, ou seja, todo o processo de trabalho passa por aí. A arquitetura é um desses campos. Há muitos outros… nalguns isso é absolutamente predominante, noutros é talvez mais lateralizado, mas eu penso que existirá em todas as áreas essa necessidade… / E também sou defensora de que o nosso ensino deveria dar o devido valor e deveria dar um peso muito maior a uma educação pela visualidade baseada nestes 3 grandes pilares que acompanhassem sempre as pessoas. Todas as pessoas. Não é isso que acontece, mas eu penso que é absolutamente fundamental caminhar nesse sentido e nesta área em particular trata-se de trabalhar precisamente com essas áreas cerebrais. [GF] - Ah… [RP] - Portanto, acho que é muito pertinente que a FAUP tenha mantido isso e tenha tido sempre essa clarividência quando muitas escolas no mundo, aquando do modernismo, deixaram o desenho para trás. Acho que há muitos desafios e gostava de ver o nosso ensino a avançar mais de encontro, precisamente, ao desenvolvimento dessas capacidades cognitivas que são cruciais no trabalho do arquiteto. Porque é essa a razão, não é? Não me parece que seja para fazer uns desenhos bonitinhos porque ninguém vai se esforçar o que isto exige apenas para fazer um bonito ou vender aos amigos! [GF] - E a teoria num ensino artístico… Portanto, esse tipo de área que não é de representação, não é manual… [RP] – Posso estar enganada, mas eu penso que um dos grandes problemas que a escola tem enfrentado é a gestão curricular, daquilo que são as UCs práticas e as teóricas, porque todas querem ser práticas e isso leva muito tempo resultando muito difícil ou impossível de gerir pelos alunos. [GF] – Queres dizer, na tua opinião, as teóricas assumirem um caráter teórico e didática mais expositiva, etc, nos moldes tradicionais? [RP] Poderá ser uma forma de permitir aos alunos gerir melhor todas estas demandas. Porque se é tudo prático, de facto, torna-se impossível de gerir para os estudantes. [GF] - Mas eu acho que a teoria também se faz pela prática e penso que uma maior articulação entre as várias áreas poderia ser interessante. O desenvolvimento de um pensamento crítico. [RP] Que é aquilo que está a começar a faltar também em desenho, não é? Que os alunos se posicionam face aos desafios, que lhes são colocados. Isso é extremamente importante, mas tem de ser incentivado. [GF] - Quando dizes desafios é tipo problemas contemporâneos… sociais, políticos, económicos? Reflexão crítica. [RP] – O aluno não pode ser mero recetor, de coisas estáveis, porque hoje em dia não temos lugar para isso… Nem a universidade é o lugar para tal coisa. A teoria é fundamental, assim como a história da arte, a história da arquitetura. Temos de combater a especialização e favorecer a ligação dos saberes. III. [GF] - Mudando de assunto. O teu mestrado em história de arte… li partes, sobre um período, da história da arte portuguesa… recordo-me particularmente de falares da alternativa zero… Penso que é aí que começa, essa relação com a performance, com os happenings. Haverá aí uma relação com o espaço? [RP] - O meu mestrado foi feito quando saí das belas artes e pretendia continuar a trabalhar como artista, e, portanto, foi um bocadinho feito em função de perceber melhor aquilo que era o meu legado mais recente, como artista sediada em Portugal. E daí ter ido para o período marcelista que estava muito pouco estudado em termos historiográficos. [GF] - O período do 25 de abril, portanto, estamos a falar do final da ditadura obviamente que foi um período de abertura e, portanto, houve muitas manifestações de vanguarda e experimentalismo. [RP] - Não é? Houve um querer e um sonhar com a vanguarda. E há muita experimentação nessa altura, sim. [GF] - O grande corte fora na modernidade anterior. Começavas nos anos 60? [RP] - Era de 1968 a 74. [GF] - Só 6 anos? [RP] - Só. Mas, mas comecei antes. Eu, no fundo, fiz a revisão dos anos 50, anos 60 e depois… Esse período em maior detalhe. [GF] Anos 50/60, 60, portanto, são de charneira. [RP] – Não. Charneira é o período marcelista. Até aí estávamos em ditadura. Os sessenta foram o início das aberturas na ditadura e com os setenta são fundamentais para perceber o que é que somos hoje, vá lá… Agora, eu não acho que a arte contemporânea e os desenvolvimentos da arte tenham tido grande influência naquilo que são os programas de desenho aqui da faculdade. [GF] - Não? [RP] - Não. Porque houve, precisamente nessa altura, um grande desvio daquilo que é o problema da representação, não é? Portanto, o século XX é assolado, digamos assim, pelo abandono da representação em função de outras coisas. Isto nas artes plásticas. Viu-se a desvalorização do desenho e do seu ensino. E, portanto, isso não é de particular interesse para o desenho da FAUP. Porquê? Porque ele resistiu mantendo a questão da representação no centro da aprendizagem. [GF] - É representar e tudo o que esteja dentro dessa questão porque é esse o instrumento para imaginar a realidade, mudar, alterar, projetar a realidade, uma outra realidade sobre a realidade pré-existente. [RP] – Exatamente! Por isso, no ensino da arquitetura e design as questões devem estar centradas nessa função primordial do desenho que lhes é inescapável. [GF] - Falavas há bocado da investigação, portanto, também tens atravessado esta transformação universitária… A escola superior passa a faculdade, no ensino universitário. Agora, nos últimos anos, o exponenciar desta centralidade da investigação, avaliação de docentes, coisas assim, concursos… Qual é a tua opinião quanto a isto? Se desvirtua o ensino da arquitetura? [RP] - Eu acho que não desvirtua, pelo contrário: informa! [GF] - Investigação, academia, universidade… Estas coisas vêm trazer novos desafios. [RP] - Não tenho medo absolutamente nenhum de novidade e de desafios. Muitas vezes temos que fazer um esforço para nos adaptarmos. Não acredito, também, de raiz num ensino que estagna e para numa formulação qualquer. [GF] - A própria sociedade está sempre a alterar-se e o próprio mercado de trabalho traz desafios diferentes… [RP] – Sim, e, portanto, as coisas estão sempre em mutação. A pior solução é sempre, ou que sabemos a priori que é uma má solução, é a estagnação. Portanto, há que andar para a frente e olhar para os desafios societais com os quais temos que lidar e até para os problemas que ainda estão por resolver, que já vêm detrás e que continuam sem solução. Acho que é preciso experimentar. Também precisamos de visão, essencialmente. E eu diria até que talvez aquilo que falta mais nestes últimos 24 anos na faculdade na minha perspetiva, é visão. Visão no sentido de não ter receio dos desafios, não estar agarrado a uma coisa que já funcionou, nos anos 60, que já lá vão, que funcionou nos anos 70, ou porque funcionou nos anos 80… Não quer dizer que nos anos 90 funcione e muito menos nos anos 20 do século seguinte. [GF] - A opinião é tua. [RP] - Tudo se alterou drasticamente! [GF] - Houve, a meio disto, o criar de uma revolução, não é, da informação e o digital e, portanto, a sociedade já não é a mesma! [RP] - Já não tem nada a ver! Novos processos estão a ser usados em arquitetura, novas solicitações, life-style… Alunos com perfis diferentes. Portanto, tudo isto tem que corresponder, de facto, a mudanças! Se nada mudou no ensino então alguma coisa está profundamente errada. [GF] – A opinião é tua. [RP] - Não fazer nada não vai funcionar e estamos exatamente aí. E, portanto, vamos dar a hipótese de que funcione. Para isso é preciso coragem e funcionar, não a partir do medo, mas a partir da abundância, não é? Acreditar que será possível, tal e qual como foi possível no início desta escola! Foi a visão dos pioneiros que inventaram novos currículos, novos programas. Pessoas que reclamaram esse espaço de fazer melhor. E, portanto, eu quando vejo programas que estão a manter-se intocados e por aí fora, eu penso que eles só podem estar desajustados e acho que deveriam ser revistos. [GF] - Na academia já há mais mulheres. [RP] - Sim, é preciso políticas que as aproveitem… Que, no fundo, haja uma verdadeira liderança e não chefia. A liderança confiará naqueles que têm demonstrado maiores aptidões, independentemente do género, religião ou raça. A boa liderança motiva equipas no sentido de uma transformação positiva, no sentido de estarmos a par dos desafios da sociedade. IV. [GF] - Tens memórias da FAUP? [RP] - Olha, eu no início, estava a fazer meu mestrado e estava a dar as aulas e era tudo novo e, portanto, tudo isso me ocupou completamente o cérebro e a minha relação com a faculdade ainda era muito precária, portanto não me recordo. [GF] - A partir de quando? [RP] - A partir do Domingos Tavares, mais no fim, talvez. Não, não me lembro! Eu e os meus colegas funcionávamos um bocado numa bolha… Lembro-me de que nos relacionávamos com os regentes, o Joaquim Vieira e o Alberto Carneiro e dávamo-nos entre nós e não havia, nenhum contato com as outras pessoas. Isto funcionou assim durante anos… Só mais tarde na altura em que fiz o doutoramento e entrei na carreira é que se isto alterou. Foi na altura do Francisco Barata... Não era uma reunião de docentes por ano, que nos fazia sair dessa bolha, digamos assim. E comecei a falar com as pessoas todas, a ter, também, mais tempo para passar na FAUP… Também, finalmente tive um gabinete! e isso faz muita diferença. Antes estava metida em casa a fazer o doutoramento! [GF] - Quando é que tiveste? [RP] - Já depois do meu doutoramento, portanto, há 10 anos e tal. Portanto, os 10 primeiros anos eu não tinha gabinete e tinha filhos pequenos em casa, tinha bebês. Portanto, não passava muito tempo na escola. [GF] - Desse período então, o que é que recordas? [RP] - Acho que é preciso mais visão para o futuro da escola. Acho que é difícil aos diretores, o Francisco Barata, o Carlos Guimarães e o João Pedro Xavier virarem-se para o futuro. É difícil fazer mudanças porque o corpo docente resiste. [GF] - Mas não vês nenhuma mudança? Olha que as 3 pessoas são muito diferentes. [RP] - Não. E eu dou muito valor ao legado! O legado da nossa escola, digamos assim, é de pessoas que foram capazes, de facto, de fazer uma grande alteração dos currículos e de tudo, adaptando-a à realidade. Esse é que é o grande legado desta escola. É ter uma visão, de futuro! Foi isso que a primeira geração fez, digamos assim. E isto é que deverá ser a nossa grande tradição! [GF] - Mas essa geração é qual? [RP] - É aquela que vai contra a reforma de 57, que já estava a ver-se que era uma coisa desatualizada que não servia. Portanto, aquilo que se criou nessa altura foi ter visão… e essa é que vejo como a grande tradição a ter na FAUP. [GF] - Mas não vês mesmo nenhuma mudança? [RP] - Ah! Claro. Há mudanças de estilo, porque as pessoas também são diferentes… [GF] – Mas a que te referes, ao ambiente? [RP] - Uma coisa nunca mudou: o ambiente de obediência que até hoje nunca percebi. Não me parece particularmente produtivo ou motivador. [GF] - Nos últimos anos, temos a direção do João Pedro Xavier, que já era vice-diretor do Carlos Guimarães. E é uma pessoa que está na área do desenho, portanto… Até agora nunca tinha havido isso. [RP] - Não, não vejo qualquer diferença. Nem vejo o facto de se tratar de uma pessoa que leciona dentro do desenho como diferenciador. Podia ser de outra coisa qualquer! Não há aqui qualquer influência disso. É um arquiteto! Em termos culturais o que haverá é arquitetos e não arquitetos, não é? Mas foram sempre arquitetos. E o grupo de Desenho1 e Desenho 2 são pessoas que não são arquitetas. [GF] – E o futuro. Vimos do COVID. Como é que foi essa experiência? [RP] - Olha, eu acho é que, de facto, há desafios muito importantes que têm que ser ponderados com muita atenção. E neste momento o que sinto é alguma preocupação, por exemplo, em relação à forma como está a articulação da investigação com o trabalho docente. [GF] - As 4 vertentes da carreira universitária, pedagogia, investigação, transferência de conhecimento ou relação com comunidade, tarefas de gestão. [RP] - Gestão é uma coisa administrativa que tem que ser feita. Tem que se trabalhar mais em termos da estrutura que vai da forma como os currículos se articulam, etc, para que de facto se leve a sério a questão da investigação. E eu penso que neste momento continua a haver aqui um problema que é o de alguns docentes se verem apenas como meros docentes, só com deveres letivos. Divulgação do conhecimento, investigação e a lecionação cabe a todos e todas. E, portanto, enquanto isto não for visto desta maneira, de facto, se olharmos só para a escola como uma entidade que produz apenas aulas para os alunos, nunca estamos a ver o problema na sua complexidade e eu penso que nunca vamos encontrar boas soluções, porque não estamos a partir de uma boa visão daquilo que é o nosso trabalho. Tenho esta diferença de perspetiva com algumas das pessoas com quem trabalho diretamente que têm tido uma visão da carreira só como lecionação e eu não. [GF] - A reflexão sobre questões como a semestralização etc, é complexa. [RP] - A semestralização, por exemplo, é uma coisa que era muito importante fazer, para permitir que as pessoas tenham condições para fazerem trocas que são importantíssimas com outras faculdades, com outras universidades no mundo, terem tempo para poderem desenvolver missões de ensino e mais investigação. Essas experiências depois são trazidas para cá e vêm enriquecer-nos E, portanto, temos que ponderar se queremos estar isolados e manter o entrave da anualidade. E em termos de investigação, se queremos ir aos fóruns internacionais e estar up to date em relação às especialidades de cada um. É absolutamente fundamental! E, portanto, isso vem trazer para o ensino atualidade, vem trazer as questões que estão, de facto, a ser debatidas a nível internacional e, portanto, essas mais-valias podem valer mais, na prática, do que estarmos só a olhar para isto como ensino e basta. / Não sei até que ponto é que isso, de facto, está a ser ponderado. Neste momento está-se a pensar fazer uma revisão do plano de estudos e para mim é um momento extremamente emocionante. Espero podermos fazer um trabalho mais bem feito a todos os níveis. Vamos ver.

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