3/31/23

O GRÃO DAS AMÉRICAS (Daniel Tércio)

O GRÃO DAS AMÉRICAS "Escrevo este texto na penumbra das imagens. Suspeito que muitas das fotos em exibição vão estar assim, numa zona não inteiramente de luz, em que o grão da imagem ganha uma densidade inusitada. O grão. Ocorre-me o grão de milho (algo ausente das fotos), o milho que presumivelmente foi domesticado há mais de sete mil anos na região do México. Gonçalo Furtado e António Manuel Rodrigues Oliveira transportam com os seus clichês uma presença equivalente ao cereal, no tempo em que este ainda não sofrera manipulações genéticas. O que gosto nos exercícios fotográficos de ambos é justamente isso: são aglomerados de grãos não geneticamente modificados. Os seus autores surgem como deglutidores de grãos, a preto e branco, sem o frenesim colorido de influencers. Grãos que se configuram em formas de luz e sombra. Neste caso, o material foi colhido em Nova York, em Clemenson, perto de Atlanta, em Princeton, no Iowa, em Salvador da Bahia, em São Paulo, em Lima, em Puno, em Titicaca, em Cusco, no Macho Picchu, etc.. Aglomerados de grãos, certamente incompletos, pois todas as viagens só podem ser incompletas. Grãos triturados, espaciais, construídos, desconstruídos, feitos farinha, e erguidos em poeira de luz e sombra. O espírito da arquitetura atravessa a América destes dois fotógrafos-viajantes. Na verdade, não fosse esta “o mundo novo”, a arquitetura seria outra. É verdade que nesse novo mundo, os olhares deleitam-se entre os modernismos europeus, as arquiteturas ameríndias e as pessoas. Esta daria outra história, uma história de onças, de bisontes e de xamãs em confronto com uma história de espingardas, de cavalos e de vírus. Concreto contra folhas de palmeira e pedras esculpidas. Belo e bruto, como só o bruto pode ser belo. Eis a América no plural. 31/03/2023" Daniel Tércio

No comments: