2/12/25

Carlos Paredes (1925-2025(

CENTENÁRIO Carlos Paredes (1925-2025( nasceu em coimbra, dedicou a vida a tocar guitarra, do fado coimbrão a outra mais erudita. De "verdes anos" a movimentos "perpétuos" Representou Portugal tocando em Bruxelas na Europália de 1992 (?(, e no mundo com as suas longas mãos. Mãos com a dimensão do mundo e que, ser perseguido parte da sua vida por doença, nunca então essa conseguiu calar.

CONVERSA SOBRE ESCOLA DO PORTO _ JULHO 2020 José Quintão (com Gonçalo Furtado.)

CONVERSA SOBRE ESCOLA DO PORTO _ JULHO 2020 José Quintão (com Gonçalo Furtado). I./ [Gonçalo Furtado] - Bom dia professor José Quintão./ Propunha que a primeira parte da nossa conversa tivesse a ver com a sua tradução de um trabalho importante. Mais concretamente trabalho relacionado com um tese feita no MIT, por um aluno de ascendência portuguesa - Peter Testa./ Penso que algo relacionado com essa tese foi também publicado numa revista americana etc./ (A referência do/ao Frampton, sendo teoricamente mais complexa…)./ Vivia-se um clima de internacionalização da arquitetura do Siza. Mas, também, de construção de identidade da escola do Porto. A faculdade logo entendeu ver esse trabalho traduzido. Tratava-se de um escrito seminal./ Ora, a tradução do inglês foi feita por si. Mas como é que surgiu essa encomenda; como é que foi essa experiência; como é que decorreu o trabalho de tradução? [José Quintão] - Já perdi a conta aos anos que isso foi, mas foi em…/ [GF] - Meados de 80. [JQ] - Sim, porque eu entrei para as Belas Artes suponho que no ano de 1981/82, ou por aí. Na altura penso que o Pavilhão Carlos Ramos ainda estava em construção./ Nessa altura… já lá vão quantos anos? [GF] - Mais de 30. JQ: Nessa altura pouca gente sabia inglês, devo dizer. [GF] - Quase 40. [JQ] - Pois é isso… pouca gente sabia inglês./ Hoje não, qualquer aluno sabe inglês, não sabe francês, coisa que no nosso tempo, digamos na minha geração… [GF] - Claro, era mais francófona. [JQ] - Era mais francófona, exato./ E eu sabia inglês porque nasci e cresci em Moçambique, e convivi com pessoas de África do Sul.. Eu desenrascava-me bastante em inglês./ E tenho impressão que foi o Zé Salgado que perguntou… Não tenho a certeza, mas sei que o Zé Salgado depois reviu o texto./ Eu fui quem traduzi. Para tal, encontrava-me aqui, na casa cor-de-rosa, como o Peter Testa. Várias vezes. [GF] - Ele era um jovem. [JQ] - Pois. E eu era um jovem também, na altura. Também era./ Bom, e encontrávamo-nos porque havia coisas que eu não entendia no texto. [GF] - Na altura o José Quintão teria que idade? [JQ] - Nessa altura eu tinha 40 e poucos anos./ Eu nasci em 1940. Tinha menos 40 anos quase. Tenho quase 80 anos. [GF] - Ele era muito mais novo que o José Quintão? [JQ] - Ele era mais novo do que eu./ Na altura isso foi muito produtivo. Porque era uma simpatia o homem, e ajudava-me a traduzir. Ele não sabia nada de português, mas… [GF] - Nada, nada? [JQ] – Quase, quase nada, de maneira que às vezes eu sentia-me…/ Às vezes tinha dificuldade em alguma parte da tradução e, dado que sabia inglês, perguntava-lhe. Penso que o livro está bem traduzido nesse sentido. [GF] - A ascendência dele era portuguesa… da parte do pai ou da mãe. [JQ] - Não sei. Não sei se é daí que vem o “testa”… [risos]./ Ele sabia algumas coisas em português. Simplesmente./ É neste sentido que digo que o livro está bem traduzido. Isto é, devido à muita troca de pontos de vista e opiniões. De saber, ou de não saber palavras e ir ao dicionário, e perguntar-lhe se seria assim ou assado. Nesse aspeto, eu acho que a coisa está bastante conforme com o que ele pensava. [GF] - Encontravam-se presencialmente? [JQ] - Exatamente. Várias vezes. [GF] - Não era por correio, nem por telefone? [JQ] - Não, não! Era cara a cara, ali na casa cor-de-rosa. [GF] - E o que é que era o documento que chegou às mãos do José Quintão? Como é que era, era um manuscrito num envelope? [JQ] - Tenho impressão… [GF] - Continha muita página? Continha a tese? [JQ] - Tenho impressão que era um livro já. Não me lembro. [GF] - Podia anexar o artigo publicado na América, ou também o texto em formato Tese. [JQ] - Ou até eventualmente papéis soltos. [GF] - Pois./ Foi rescrito ou traduzido em relação a um original que ele tinha feito? [JQ] - Não faço a mínima ideia. [GF] - E quem foi a direção que pediu para a tradução? [JQ] - O José Salgado. Foi ele quem depois fez a revisão do texto. [GF] - Porquê o professor José Salgado? [JQ] - Se calhar, porque era cunhado do Siza, não sei… [risos]. Esse é um homem das letras e da História./ E éramos muito poucos na altura, também é preciso não esquecer isso, não é? Éramos meia dúzia! Há 40 anos quantos que eramos? Éramos muito poucos. [GF] - Coincidiu com a direção do professor Alexandre Alves Costa? [JQ] - Eu não sei se ainda não era a do José Grade. [GF] - O José Grade? [JQ] - Sim, ele foi parte da direção da Escola de Belas Artes enquanto estávamos lá, isso não tenho dúvidas. Aliás, eu andava sempre com ele. Assessorava-o, não oficialmente, mas muitas vezes. [GF] - O José Salgado fez a revisão. [JQ] - O Zé Salgado é que fez a revisão do português. [GF] - E o José Grande estava próximo de si… [JQ] - Eu tenho a impressão que foi o Salgado, o Alexandre, e o Sérgio. [GF] - Ok. E como o José Quintão dizia, eram poucos. [JQ] - Eu sei é que a coisa veio ter comigo, porque eu sabia inglês. [GF] - No decurso da tradução, empreendeu-se, presencialmente, a aferição de questões envolvidas. [JQ] - Foi interessante./ O trabalho de tradução não me custou muito. Quer dizer, custou-me um bocado, como é óbvio. [GF] - Deve ter custado, até pela dimensão. [JQ] - Não custou muito na medida que eu tinha o autor para me explicar as dúvidas, através de outras coisas. As palavras que eventualmente eu não percebia. [GF] - E era um autor novo e disponível. [JQ] - Era muito simpático, uma simpatia. Gostei muito de fazer o trabalho. [GF] - Foi uma coisa que se prolongou meses? Ou ago que chegou e foi assim de rajada? [JQ] - Durou 2 ou 3 meses. Era feito com muita calma. Acho que foi 2 ou 3 meses, 3 meses bem contados. [GF] - Foi uma encomenda oficial da faculdade. [JQ] - Sim, sim. Eu sabia que estava a fazer a tradução para um livro. [GF] - Um livro a editar. [JQ] - Falaram-me se eu era capaz de fazer isso… Eu, não sou tradutor e acho que cada profissão tem os seus meandros. E era uma tese. Mas dado que eu ia falando com ele, e ele me percebia, eu fiquei descansado. [GF] - Era possível de aferir, até particularidades do inglês. [JQ] - Acho que não é o caso de um tradutor que trai a tradução, percebes? Nesse aspeto, acho que sim. [GF] - Essa foi validada, de alguma forma pelo Peter Testa. E ele próprio usufruiu da oportunidade de ter essas conversas como tradutor./ Foi isso, de um lado e do outro. [JQ] - Sim, sim. [GF] - Para o seu lado, facilitou. Para o dele também, porque pode acompanhar o trabalho de tradução. [JQ] - Sim, sim. Aliás, eu aàs vezes dizia-lhe em português. Ele também não percebia muito bem, mas depois acabava por ser uma coisa quase… [GF] - Com alguma interatividade. [JQ] - Foi uma coisa muito interessante./ Eu gostei muito dele. Ele era uma pessoa extremamente acessível, e muito educada [GF] - Voltou a estar com ele depois disso? [JQ] - Eu tenho impressão, que depois… passados muitos anos. De raspão, porque ele esteve aqui. Foi assim de raspão e não tivemos tempo para falar. [GF] - Ah. [JQ] - Sabes que o mais engraçado é que eu me tinha esquecido completamente disso (tradução), e falam-me do livro. Mas que livro? [risos]/ Tenho um exemplar na estante, mas nunca mais me tinha lembrado. Foi há quase 40 anos! [GF] - Pois, mas a tradução desse livro, constitui um momento importante, como eu estava a referir. Coincide com um período importante. E, quiçá, associado a uma ideia estratégica, consertada de internacionalização da Escola./ O escrito surgira num momento preciso, relacionava-se com uma tese que fora orientada por um teórico importante, chamado Stanford. Não sei se teve essa ideia? [JQ] - Não sei. [GF] - E atenda-se que o conceito de regionalismo crítico, de Frampton, tinha surgido em 1983, portanto tinha acabado de surgir. Aquilo. Pode-se pôr em causa a ideia de regionalismo… [JQ] - Uma das coisas que ele me disse, e que mais me impressionou, sabes o que foi? Que nós aqui eramos arquitetos cheios de sorte./ Eu perguntei-lhe porquê?/ E ele disse: Porque vocês aqui quando constroem, quando vos entregam um projeto, vocês sabem para o que estão a construir. [GF] - Ah. [JQ] - Nos Estados Unidos constrói-se o edifício e, de repente, vendem-no para um fabricante de sapatos, depois vendem para uma manufatura. Ou depois vendem para um historiador ou outro arquiteto. De maneira que, a pessoa lá só faz o invólucro e, depois, dentro é o que for./ Nunca mais me esqueci desta! [GF] - Ah. [JQ] - Para nós… aquilo era uma coisa do outro mundo. Nós aqui fazíamos a casa do fulano tal, a faculdade de Arquitetura, não sei o quê mais, percebes? E foi das coisas que mais me impressionou na altura, quando ele me disse que lá (EUA) cada um mudava como queria o interior. Que no fundo se tratava de uma obra de fachada. Era o que ele me dizia, não é?/ Mas pronto, isto tem a idade que tem, quase 40 e tal anos como te digo. [GF] - Ele na tese aludiu também de uma teoria que seria dos anos 70/80./ Há também escritos desse orientador./ Buscava-se a construção de uma postura arquitetónica, quiçá indagando a necessidade de uma nova metodologia. [JQ] - Sim. [GF] - E, portanto, tinha ali referências teóricas fortes./ Na altura esse trabalho foi importante. E fascina ter sido logo traduzido./ Dá a ideia de que, consciente ou inconscientemente, terá sido estratégico. [JQ] - Já foi há muitos anos./ Como te digo, tenho o livro na estante, e é uma coisa impressionante como me esqueci completamente. [GF] - Foi uma trabalheira. [JQ] - Foi, eu estive para aí a traduzir…. Não era um artigo, era um livro. [GF] - Eu saliento o significado que esse possui. [JQ] - Sim, sim./ II./ [GF] - Para enquadrarmos dentro da própria história da Escola, esta coisa relevante... Como entende a escola nesse período dos anos 80? Já se estava na transição para a FAUP. [JQ] - Ora bem, nessa altura… Já havia aulas aqui./ Comecei a dar aulas aqui também. Enquanto dava aulas de projeto de 1º ano em Belas Artes, dava aulas aqui ao 3º e 4º ano, de Teoria e história, e de Teoria da arquitetura contemporânea./ Havia três anos de Teoria da arquitetura. Era o Manuel Correia Fernandes, que era encarregado disso./ E, ele pediu-me se eu fazia um dos anos. E eu fiz- um dos anos, que era o que estava no meio. (Agora não te posso afiançar se era no 3º ou no 4º ano, mas no 5º ano não era). [GF] - O Manuel Correia Fernandes dava alguns dos anos. [JQ] - Ele daria dois, e eu daria um. [GF] - Ele dava cadeiras aos dois anos, restantes. [JQ] - Dois anos, a mesma cadeira dois anos. [GF] - Tinham uma organização cronológica. Ele ia talvez ao século XX. [JQ] - Ele dava cá aulas./ E eu, durante 4 anos, dei em primeiro ano de Composição de Arquitetura, que era como se chamava. E essa de Teoria aqui./ Entretanto, quis fazer Doutoramento. E fiquei só com a Teoria; e depois entrei na História da Arquitetura Portuguesa. Foi assim. [GF] - A Teoria da Arquitetura Contemporânea, portanto./ Houve um convite do Correia Fernandes, que daria outros dois anos. Em princípio não havia mais colegas nessa coluna digamos. [JQ] - Em princípio não. [GF] - E era a contemporaneidade do século XX. [JQ] - Sim, era o contemporâneo, do século XX. [GF] - Havia uma organização cronológica, correspondia-se a um período./ Lembra-se qual era o programa? [JQ] - Lembro-me mais ou menos, vagamente./ Nessa altura andava já com as questões das semióticas, era uma novidade. [GF] - Exatamente. [JQ] - Andava nas semióticas, nos significados. E era muito vocacionado para esse aspeto. [GF] - Ah. [JQ] - Já o Correia Fernandes teria outra Teoria./ Nunca assisti a nenhuma aula dele, porque tenho impressão que as aulas coincidiam. Portanto, nem podíamos assistir às aulas um ao outro./ E depois nos outros dias, em que dava outra Teoria… Eu estava em Belas Artes a dar Composição, a dar Arquitetura./ Portanto, ele nunca assistiu às minhas aulas, nem eu às dele. [GF] - O José Quintão tinha esse fascínio, mais estruturalista, digamos assim. Pela semiótica. [JQ] - Era mais isso./ Repara que eu também estava a começar na altura, não é? E interessava-me muito pelo significado das coisas, ou dos significantes. Isso ainda hoje anda um bocado… [GF] - Claro, nos anos 80 e 90 (pós-estruturalismo etc). [JQ] - Mexo-me nisso: tentar perceber o que é que as coisas querem dizer, não é? Mas por exemplo, o Zé Salgado não acreditava minimamente nisso. [GF] - Ele era historiador, focava-se num tempo./ Não se queria uma estrutura. [JQ] - Não./ E damo-nos muito bem ainda hoje! Mas, na altura andávamos sempre aos desencontros na conversa. Por causa dessa questão das semióticas e não sei bem o quê mais. [GF] - O Salgado dava História./ III./ [GF] - Foi Teoria. Deu Arquitetura Contemporânea. E depois, a seguir, foi para História da Arquitetura. [JQ] - Depois fui para História da Arquitetura Portuguesa. [GF] - Logo depois desses 4 anos? [JQ] - Sim, foi./ E, depois, tive dispensa de serviço… depois ainda tinha meio ano de serviço./ Depois, fiquei regente duas vezes e meia da História da Arquitetura Portuguesa. Porque uma metade fui eu e a outra metade foi a Marta. E depois ainda fiquei regente um ano inteiro, porque o Alexandre tinha sabática, e a Marta também. Tinha outra coisa qualquer. [GF] - Aí eu já devia estar aqui. [JQ] - Depois, entretanto, fiz o Doutoramento. E fui o regente da cadeira. Dado que, entretanto, o Alexandre jubilou-se, não é? Eu sou mais novo do que ele um ano e pouco./ Depois, entretanto, o Domingos Tavares também tinha dispensa para fazer não sei o quê, e pediu-me se eu lhe dava aulas… Mas, isso já foi na… [GF] - Na História da Arquitetura Moderna. [JQ] - Na História da Arquitetura Moderna, exatamente. Aliás, devia ser da “Idade Moderna”, e não “Moderna”. [GF] - Portanto, deu a História da Arquitetura Portuguesa e, depois, deu a História da Arquitetura Moderna. [JQ] - História da Arquitetura Moderna, sim. [GF] - Pois, eu estava cá. [JQ] - Dei aqui na FAUP, durante dois anos. [GF] - Também passou por Coimbra. [JQ] - E, durante um ano, em simultâneo, dei também em Coimbra. Substituindo o Domingos Tavares; bem como substituindo o Paulo Varela Gomes, do segundo ano. Durante um ano. [GF] - Em Coimbra, era História da Arquitetura Moderna é? [JQ] - Era a História da Arquitetura Moderna do Domingos. E a História da Arquitetura Antiga e Medieval do Paulo Varela Gomes. [GF] - Que era uma novidade para si. Mas como estava sempre me conversa com o Salgado já sabia a matéria. [JQ] - Eu sempre gostei muito do Salgado. Aliás, ele é uma delícia de pessoa. E a Teresa Siza também. [GF] - Houve uma altura que eu andei pela India. A primeira vez fui com uma namorada que tinha quando entrei para a faculdade e tivemos de regressar./ Nessa altura, já claro o Varela Gomes tinha largado de estar à perna com a crítica à Escola do Porto. Refiro-me a período inicial com o regresso de Inglaterra. Depois andou pela India, voltou…. a dar aulas em Coimbra. JQ: Ah, sim. [GF] - Foi uma personagem que estabeleceu uma relação com a Escola interessante. Num primeiro período, chegado de Inglaterra panflletava acho um bocado um pós-modernismo mais próximo de Lisboa e de um suposto cosmopolitismo. E depois, tem um período de interregno, em que faz quase mea culpa, e reconhece valor ao vector de resistência neomoderno dos arquitectos do Porto na história. [JQ] - Sim, sim. Fez aquela crítica… [GF] - Ah. [JQ] - No início ele vai para uma história mais antiga, na qual se sentia confortável. E, depois, vai focar o Barroco e faz…/ Eu assisti ao doutoramento dele em Coimbra, não é? [GF] - Deve ter sido o primeiro não arquiteto a fazer o doutoramento sobre Arquitetura em Coimbra? [JQ] - Foi o primeiro não arquiteto a fazer o doutoramento sobre Arquitetura em Coimbra. Sobre as Capelas, ou Igrejas, Barrocas. Aliás, é muito interessante o ponto de vista dele. É muito bonito, porque não é de arquiteto e a gente sente isso. E é muito bonito, porque ele vê coisas que nós não vemos. [GF] - Tinha um grande conhecimento da história. [JQ] - Além de tudo o mais, era uma criatura invulgar./ IV./ [GF] - José Quintão, e como é que recorda estes períodos, no que tange ao ensino? [JQ] - Não estaríamos no tempo da Comissão Instaladora? [GF] - Sim, até 1984. [JQ] - Até 1984, era isso. [GF] - Portanto, com o professor Fernando Távora./ Como é que viveu o ensino da Arquitetura neste período? [JQ] - Sabes que eu estive em várias cadeiras. Aliás, eu dei aulas a todos os anos./ Só me faltava dar ao 2º ano… (A História passou para o segundo ano quando já estava a ser regida pelo Zé Miguel). [GF] - Ah. [JQ] - E depois, também dei uma cadeira de 6º ano que passou para o 5º ano; que era o Seminário. Foi o melhor tempo da minha vida, porque eu não tinha que dar notas. Era uma delícia. Era tudo à volta de uma mesa, a discutir-se arquitetura. A discutir, digamos, um tema, e a falar sobre o se pensava sobre o mesmo. E havia convidados, que também vinham falar. [GF] - Era o Seminário. [JQ] - Foram dos melhores anos da minha vida, não ter de dar notas é uma maravilha, não é? Eu toquei os instrumentos todos praticamente. Mas perguntavas se eu dei por grande diferença ao longo dos vários períodos? [GF] - Em termos do ensino, existiram distintos Planos de Estudo. [JQ] - Passou-me sempre um bocado ao lado, devo dizer. [GF] - Ah. [JQ] - Por acaso, nesse aspeto, acho que fiz sempre asneira. Andava demasiado assoberbado. Andei muitos anos a fazer o doutoramento, sabes? Isso também me exauriu bastante./ Meu filho, nem tudo são rosas, não é? [GF] - Projeto, Teoria, História./ Como é o ensino da arquitetura desde essa altura? [JQ] - Neste momento, não tenho feedback nenhum. Agora, o que eu acho, a sensação que eu tenho, é que as cadeiras chamadas teóricas estão a cair em desuso, e é isso que considero muito grave. Pergunto-me: qual é a sustentação de um futuro arquiteto…? [GF] - Mas em determinado momento do percurso ocorreu um robustecimento dessas áreas, não foi? Começou a haver cadeiras mais definidas, complexas, ou pelo menos montadas de uma forma mais estruturada, e com objetos mais definidos. [JQ] - Eu vejo que há. [GF] - Antes já havia, e.g. o Távora dava cadeiras de ampla cultura. [JQ] - Eu acho que, não sei, mas dá-me sensação que o Projeto está a ter uma predominância avassaladora. Mas é a impressão que eu tenho. [GF] - Mas, não teve sempre? Desde que o José Quintão dava aulas? [JQ] - Acho que sim. Mas, apesar de tudo, havia uma contenção. Acho que havia uma certa contenção./ Repara que eu estive durante uns anos no Conselho científico, não é? Enquanto fui assistente do Alexandre e, depois, ainda me mantive. Mas, eu acho que a teoria é fundamental. [GF] - As cadeiras teóricas. [JQ] - As cadeiras teóricas, quando digo teoria é sem ser projeto só puro e duro. [GF] - Mas acha que devia haver cadeiras de Teoria? [JQ] - Eu acho que sim./ Então, uma pessoa faz um ângulo agudo em vez de ser um obtuso e ou um reto, porquê? É tão simples quanto isso. [GF] - Já agora, quando deu aulas de teoria e história, teve diferença entre uma coisa e outra? [JQ] - Acho que teve. Eu dei. [GF] - A Escola tem tido uma coluna de história e uma de teoria. [JQ] - Eu só dei aulas de Projeto ao primeiro ano. Portanto, nada de confusões. E, na altura em que comecei… já para o final, os dois últimos anos - que foram coincidentes com lecionar Teoria e com lecionar Projeto - eu sentia que os alunos tinham dificuldades em compreender-me no primeiro ano. E comecei a pensar se o defeito seria meu, ou deles. [GF] - Ah. [JQ] - Era meu, porque comecei a falar num tom mais elaborado e eles ficavam um bocado “à rasca” a olhar para mim. Eu penso que foi isso./ E tanto assim que eu disse que não queria mais dar Projeto. Porque se calhar prefiro conhecê-los através do que pensam, mais do que através daquilo que fazem… ou, porque é que o fazem. [GF] - Ah. [JQ] - E foi sempre isso que me interessou./ É o que eu te digo, porque é que (o projeto) há-de ter uma curva ou um ângulo reto, ou ter um ângulo agudo? É porque nos dá na telha? É, mas porquê? Se calhar há qualquer coisa que querem significar. E foi nisso em que me “licenciei”. E, de facto, nunca mais estive a dar Projeto. [GF] - Mas o facto de existirem colunas de história e de teoria etc, é também uma especificidade do nosso ensino, associado a um intenso ensino prático. [JQ] - Sim. [GF] - Damos maioritariamente cadeiras teóricas de História e Teoria, com componente prática. [JQ] - Dizia-se muito em reuniões, lembro-me perfeitamente. [GF] - Cito “Theory is everywhere”. [JQ] - Havia quase um lugar comum: se não há teoria sem história, não há história sem Teoria./ Que dizer, a gente quando diz que está a dar uma História da arquitetura não somos historiadores, nós estamos a dar é o que eram os conceitos. Porque é que se fez o Manuelino? Porque é que se fez o Gótico? Porque é que se fez o Renascimento ou o Barroco? Tem a ver com o conceito atrás disso tudo, não é só porque : agora vamos fazer Barroco. Isso não dá! [GF] - Ah. [JQ] – Portanto, as mentalidades da história, vão evoluindo. Que é, como, o que se vai fazendo. É assim e não assado, não é?/ E, portanto, com todos os sobressaltos: nós não somos historiadores de maneira nenhuma. É aliás, o que dizia sempre o Alexandre, e diz. [GF] - Ah. [JQ] - E honra lhe seja feita, foi um grande impulsionador, e grande criador salvo erro, da História da Arquitetura Portuguesa./ As aulas dele eram maravilhosas. E eu lembro-me perfeitamente de assistir a imensas aulas dele, e assistir ao interesse que ele dava. E repare-se, aquilo não eram dados históricos, “1700 e troca o passo”…/ Aliás, às vezes eu, ele e a Marta, começávamos no gozo no intervalo: “Opá disseste 1600 troca o passo e é 1648”. Quer dizer, isso era para a laracha! - Isso, para um historiador se calhar era importantíssimo, para nós não é. Aliás, até costumo dizer: a gente vê muitos claustros do século XVIII em Portugal, e que se não tiveres notícias, olha para aquilo como sendo do século XVII - purinho, não é?/ Portanto, interessa o conceito, e o que a forma nos diz do mesmo. A forma é que nos vai ensinar ou nos vai alertar, não é? Independentemente do ano em que é feito. [GF] - Estas matérias de pensamento, relacionamento com as formas, possuem muita importância. E o projeto tira muito benefício disso. [JQ] - Não quero meter-me... Sei o que senti nos últimos anos do meu ensino. Portanto, repito tive 8 anos. Nos dois últimos anos das minhas aulas de Projeto, eu senti que estava com um vocabulário mais elaborado, e que os alunos ficavam a olhar para mim, pelo que eu tinha de repetir duas ou três vezes. Depois, dei-me conta que tinha de baixar, digamos, o nível de apreensão para eles perceberem. [GF] - Ah. [JQ] - E, depois, interessei-me muito mais por isso. E depois, também, entrei no doutoramento./ Como te disse.

2/10/25

PIP

“Do último quartel do século XXI ao primeiro quartel do seculo XXI, uma atenção a transformações disciplinares”.

Um prefácio “Do último quartel do século XXI ao primeiro quartel do seculo XXI, uma atenção a transformações disciplinares”. Gonçalo Furtado. i. “Do último quartel do século XXI ao primeiro quartel do século XXI, uma atenção a transformações disciplinares…” é a forma como intitulo texto de prefácio ao presente livro de Victor Neves./ O autor licenciou-se pela ESBAL em meados dos anos 80 e doutorou-se em curso dirigido por Josep Muntahola na UPC. É autor de obra diversa, como a Marginal de Esposende de 2006, equipamentos de ensino de 2000 e 2008 ou hospitalar em 2002, bem como da Casa em Olhão de 2016 que surge mencionada no presente livro Exerceu docência de projecto na Universidade Lusíada de Lisboa até jubilação em 2025. Foi editor de publicações como as revistas “Arq/a” ou “Sebentas de arquitectura”, bem como da plataforma digital “Archallenge”. É autor de vários livros, incluindo acerca da sua obra projectual, ou teóricos como “In-out: A porta da arquitectura” em 2022, ou uma série de pequenos livros-manifesto versando temática urbana dos quais se prevê sequelas no futuro./ Desde finais do último século mantive múltiplos contactos com o Victor, incluindo aulas, master classes, lançamentos, debates ou mesas redondas, júris académicos, comissões editoriais ou científicas, bem como relacionados com artigos por mim autorados, quer seja a propósito da “geração de 90” em 2000, ou das 2 primeiras décadas do século XXI em 2018, etc./ As transformações disciplinares ocorridas em Portugal, estendem-se desde o associativismo, à multiplicação das actividades de exercício profissional, ao ensino, à actividade das publicações periódicas, bem como ao interesse pelas temáticas da cidade e arquitectura no domínio público De facto, no último quartel de século, a AAP evoluiu para uma Ordem, a quantidade de profissionais triplicaram, o ensino e formação evoluiu massivamente para mestrados e doutoramentos, e diversificaram-se vertentes de actividade disciplinar incluindo exponencial investigação./ Acresce que muito relevou o papel exercido por publicações periódicas que, em Portugal, procederam o pioneirismo de revistas como a “Arquitectura portuguesa” (1908…) ou mesmo a “Arquitectos” do SNA (1938-48); bem como de revistas após meados do século como a “Binário” e sobretudo a “Arquitectura” já criada em 1928 e dinamizada por Nuno Portas entre 1957-61. Sucederam-se, no último quartel do século, o “Jornal dos arquitectos” da AAP e a bilingue “Architécti”. Sendo com o avanço para o século XXI, que a primeira evoluiria para a revista “JA”, verificando-se ainda uma multiplicação de novas revistas como a “Arquitectura +”, a “Arquitectura e construção”, a “Arquitectura e vida” ou a “Arq/a”./ Período pois de meio século, em que os conteúdos publicados evoluíram desde uma preferência por desenhos de projecto e uns poucos textos que raramente passavam de informações técnico-constructivas e memórias descritivas, rumo a uma sofisticação teórico-critico maturada ao longo do último quartel do século XX por um pequeno grupo de profissionais nacionais. E daí até ao final do 1º quarte do século XXI, se constatou uma considerável especialização: numa critica sofisticada, na diversificação curatorial, e numa exponencial investigação actualizada./ Já em teremos do ensino, em meados do último quartel do século XX, constata-se alguma oposição ideológica das duas escolas de Belas artes públicas, aproximando-se a mais cosmopolita do ecletismo pós-moderno, e a mais regional do neomodernismo apto a menores encomendas e manutenção de um enfoque tectónico-social. Oposição, de resto, que bem expressa ficou no par de exposições ocorridas nos anos 80. Mais cumprindo mencionar, com o avançar para fim do século XX, tanto a ocorrência de massificação no ensino privado, como diverisificação de referências por via do Erasmus, e ainda um acesso imediato á informação global por via da disseminação da Internet./ No período pós-revolucionário dos anos 80, estudantes como Victor Neves frequentavam uma ESBAL dirigida por Tomás Taveira, mas onde também contactavam com arquitectos distintos e que marcadamente os influenciaram (e.g. Carrilho da Graça, etc). Em tal ambiente artístico lisboeta, não deixam então de indagar sobre o papel do arquitecto num país com os novos horizontes da eminente integração europeia. Tanto consciencializando o resvalo do pós-modernismo para um historicismo superficial, como imaginando a organização de ateliers que lidassem com as novas encomendas, a industrialização do sector da construção, a crescente especulação imobiliária e o consumo mediático./ Victor, cedo publicou no predito “Jornal dos arquitectos” o seu primeiro texto (em coautoria com Consiglieri(, bem como um seu primeiro projecto. Sendo que, mais tarde assumiu a direção da predita revista “Arq/a”. Projecto editorial impulsionado pelo jornalista Edmundo Tenreiro e pela gestora Maria Rodrigues, e caracterizado pela interdisciplinariedade – (da arte e design à arquitectura e urbanismo) - como denuncia o subtítulo “revista de arquitectura e arte”. Por outro lado e sobretudo, projecto editorial caracterizado pelo então desejo de superar a dificuldade de divulgação das obras e ideias-textos dos crescente comunidade de jovens arquitectos que chegavam - à margem dos consagrados - à qualificada produção arquitectónica nacional./ Foi assim que em 1999 se ensaiou um número “0” experimental, ao que em 2001 se seguiu um número 1, então ainda com fotolitos. Nesta primeira fase da revista, os editoriais pelo Victor eram caracteristicamente acompanhados por esquissos do Victor, optou-se por conteúdos mais diversificados que temáticos, incluindo projectos de matriz minimalista assinalando uma diluição do anterior distanciamento entre arquitecturas do Porto-Lisboa, bem como textos de opinião crítica./ Mais sendo que a revista foi adquirindo consideráveis tiragens e presença no espaço púbico. De facto, seguiu-se uma 2ª fase/série, com direcção delegada a Laura Espejo, em que se manteve a relação arquitectura/arte/design e se desenvolvem secções de opinião/critica mas, sobretudo, em que os projectos passam a ter proveniência mais europeia/internacional. Posteriormente, seguiu-se ainda uma 3ª fase com direcção delegada a Luís Santiago Baptista, em que se matem um referencial não exclusivamente nacional mas, sobretudo, em que se enalteceu a tematização e a robustecimento do texto/crética em reação aos projectos./ Acontece que por volta de 2018 iniciou-se uma última 4ª fase/série, em que Victor retomou à direcção da revista, posição em que permaneceria até ao seu término em 2023. Mantiveram-se as secções de arte e design, a de divulgação de livros editados no país, a de opinião-critica com textos ou entrevistas mas, sobretudo, retomou-se o desejo de publicar projectos em credibilização da produção arquitectónica nacional. Paralelamente, experimentou-se um formato bilingue, manteve-se alguma tematização mas, sobretudo imaginou-se atender a preocupações ambientais e tecnológicas, ambicionando especulações que pudessem ser úteis e abertas a um novo século./ ii. A teoria-critica contemporânea pouco tem a ver com os simples textos de memórias descritivas ou prescrições técnicas, mais comuns no período do século XX que antecede o que foco no presente texto. De resto, foi legitimo o desenvolvimento de um tipo de teoria-crítica “negativa” e radical entre finais dos anos 60 e meados dos 80, denunciadora da banalização das práticas então correntes. Porque, se historicamente a teoria estivera ao serviço da prática, restara-lhe então constituir-se como um enclave de consciência critica que promovesse reorientações disciplinares em distanciamento com a mera liberalização comercial promotora do espectáculo então em consolidação./ A teoria-critica contemporânea também pouco tem a ver com meras interpretações de intenções projectuais ou enquadramentos temáticos frequentemente transdisciplinares exponenciados após a desconstrução no último quartel do século XX. De resto, foi legitimo o assumir da arquitectura como universo infinito de potencialidades, tudo se podendo constituir como matéria da teoria. Não obstante, não se pode ocultar que a expansão quantitativa da produção escrita no país na transição do seculo, também incluiu entre as suas razões um necessidade de alimentar a indústria editorial de uma comunidade em crescimento./ Ora, decorrido já um quartel de século desde que teve início o século XXI, a teoria-critica parece se ter constituindo polemicamente enquanto entidade dotada de alguma autonomia relativamente a outros subcampos da disciplina como a construção e mesmo da história. De resto, parece diversificar-se de uma forma escalar, desocultando buracos negros por explorar, estruturando-se em torno de um par dialético de vectores. Um vector orientado para a produção massiva de investigação apresentável como “científica” – frequentemente advinda de colectivos, com redação enfadonha e pequenos resultados parciais. E outro vector orientado para produções mais individuais, com redação mais ensaística e subjectiva ou autoral, experimentação mais especulativa, e resultados mais idiossincráticos./ Neste contexto, parece que um dos grandes desafio da teoria crítica hoje poderá ser - decorrido 1 século de manifestos modernistas e meio século de afastamento de Teoria/Prática (pela já antes mencionada impossibilidade da primeira continuar a justificar/prescrever a segunda) – é hoje construir pontes no interior da disciplina, bem como plataformas de consenso que nos permitam melhor comunicar com a sociedade a respeito da dignificação do habitat humano./ Por outro lado, pautar-se por uma atenção aos temas contemporaneidade (da sustentabilidade à IA ou a quaisquer outros que se encontrem em devir) e, metodologicamente, pelo propiciar de reflexões “outras” compostas por múltiplas perspectivas, mais que visões únicas e prescritivas./ iii. Em 2010, Víctor explicitamente intitulou o seu primeiro livro-manifesto como “A cidade núcleo: manifesto para uma cidade concentrada”. E, em 2011, no âmbito de um editorial para outra revista - (a “Sebentas de arquitectura”) - não deixou de alertar que “The continuous and uncontrolled growth of urban areas, the lack of city limits, the lack of housing,…social exclusion and a huge ecological footprint, are some of the problems affecting contemporary cities... The city has form and so… the city is a work of art”./ Já em 2024, avançou para um segundo livro-manifesto igualmente explicitamente intitulado “A cidade núcleo: manifesto para uma cidade híbrida”, onde avançava que “…um novo urbanismo terá de emergir. A ‘cidade híbrida’ terá de organizar não só a estrutura urbana, integrando várias valências funcionais que se hibridizam, mas terá de… reagrupar o espaço rural, integrando novas valências que têm de responder às alterações ambientais e climáticas…”. Encontrando-se actualmente ponderar, no âmbito de um terceiro livro-manifesto, contributos que possam advir da inteligência artificial./ Pela mesma altura, em 2024, Victor comissariou uma notável exposição de Lucien Herve, propondo uma reflexão sobre o “homem na cidade moderna” revisitada. Desde logo dizer que a cidade constitui um março humano, pelo que a história da sua transformação é paralela à do próprio homem. De facto, já os romanos tinham consciência de afrontar a natureza, pelo apaziguavam os céus com rituais antes de traçarem o seu “cardus” e “decomanus”. 1 Ficando, para lá dos limites ou muralhas, a barbárie do desconhecido. Posteriormente, o avanço para uma sociedade industrial comportou transformações profundas. Sendo precisamente aos problemas de habitação e urbanos que procurou vir responder um movimento moderno, caracterizado por certa racionalização homogeneizadora, expressa no modelo de cidade funcional, em “existenz minimums” de “machines habiter”, e mesmo num homem “modulor”. Certo é que no pós-guerra, a “Carta de Atenas” serviu de cartilha à reconstrução europeia. Sem que, paralelamente, não tenham deixado de emergir alarmes desde a própria revisão interna dos CIAM bem como das ciências sociais.2/ Dizer também que a própria representação da cidade foi também alvo também de desafios.3 Á cidade das perspectivas barrocas, sucedeu-se já no fim do século XIX, um debate opondo a fotografia à pintura. Passando-se, com o início do século XX e traumática experiência da Guerra mundial, a uma representação da cidade por fragmentos, com recurso à colagem e fotomontagem. E, entre o pós-guerra e os anos 60, transformando-se a cidade moderna, metáfora da máquina, num difuso mosaico policêntrico. Pelo que, com o avançar para o final do século, Ignasi Solá Morales já postulava a cidade advinda da pós-industrialização e globalização com só apreensível por leituras provisórias. 4 Mais se referindo a economista Saskia Sassen a uma “Cidade global”, o geógrafo Edward Soja a uma “Postmetropolis” e o sociólogo Manuel Castells a um espaço das “rede” e fluxos, etc./ Propunha eu aqui um desvio para brevemente retomarmos a temática da fotografia, atendendo ainda a mais 3 autores. Primeiro Susan Sontag com “On phtography”, sobre a qual não me estenderei. Segundo, Villém Flusser 5, que em “Por uma filosofia da técnica” se referiu à figura do operador, e de que qualquer potencialidade da fotografia se encontra pré-incluída no aparelho. (Mais se recordando como Pierre Lévy, de forma mais ampla mas análoga diagnosticou uma “Máquina universo” 6, um logaritmo que ambiciona captar a totalidade da significação). 7 E terceiro, Roland Barthes, que em a “Câmara clara” fala de aspectos da produção imagem, e desta como representação do sujeito. 8 Mais couriosamente publicou este (numa visão estruturalista-pósestrutualista) sobre “Semiologia urbana” em revista de arquitectura portuguesa. (Poder-se-ia ainda referir distinto enfoque por Edward T Hall, com as proxémicas e “Dimensão oculta” da cidade).9/ Como sabido, Lucien Herve, foi precisamente escolhido – tanto por Le Corbusier como outros mestres orgânicos/brutalistas do pós-guerra – para registar fotograficamente as obras desses, Tendo também igualmente publicado imagens em revistas da arquitectura portuguesa; Por exemplo da Unidade de Marselha de Corbusier, modelo para grandes colmeias-cidades multifuncionais aptas a dispor na paisagem natural.10 (Podendo ainda se recordar que Corbusier já propusera, entre 5 princípios para construção moderna, os “pilotis” para libertação do solo)./ Ora, mas atenda-se como nas vistas picadas sobre uma cidade para “3 milhões de habitantes” também se enaltece uma 4ª função - a da mobilidade pelos transportes. Uma 4ª dimensão, a que Louis Khan reduzirá o centro de Filadélfia enquanto registo analítico de fluxos./ Já Lucien Herve, fotografou a arquitectura à construtivista, com diagonais e procurando a experiência da cidade a partir de fragmentos. Mas atenda-se serem fragmentos onde não deixam de deambular figuras humanas. É certo que o pretexto era o objecto de arquitectura moderna, e o olhar o do operador Herve. (O autor partiu de um movimento acelerado construtivistas e morreu penso que de esclerose múltipla). Mas o conjunto de fragmentos que nos deixa, juntos, parece também nos propor uma filosofia de humanidade. Pelo que, num momento de crises pandémicas, de cidades congeladas, ou de conflitos bélicos, é a presença anónima desses habitantes deambulando nesses espaço-tempo, que nos deixa um alerta importante. A questão de uma cidade que já não sabemos o que é, nem como sobrevirá, que não é quiçá senão a questão do próprio homem e sua sobrevivência. iv. Chegados aqui, gostaria então de remeter ao último livro do Victor: Skyline: onde a arquitectura termina” – que foca a necessidade de superar a negligência moderna do 5º alçado, e que termina com apelos tangentes à futura produção arquitectónica./ Desde logo, dizer que o livro possui um enquadramento histórico do predito elemento arquitectónico, com foco internacional e nacional, e uma reflexão em prole da reforma do projecto e arquitectura do século XXI. O texto é fluido, profusamente pautado de exemplos e ilustrações (muitas da autoria do próprio), históricos ou actuais. Possui ainda um conjunto de referências finais a livros bem como a biografias de autores. “The sky is not the imit, it’s just de beginning” - fase de Marta de Llorent (autora ela própria de interessante livro ) – constitui o mote que nos convida à leitura do livro.11/ Logo na introdução de 7 páginas, o autor traça imprescindível salvaguarda Gadameriana “Este livro é uma manifestação de uma interrogação que se impõe no contexto de uma consciência histórica...12 Ou seja, entende-se o passado a partir de um contexto próprio e de uma ‘interpretação’ …crítica. No entanto… este livro não envolve… rejeição – da… modernidade – mas sim um esforço de compreensão que possa lançar novas significações.13 …Sendo assim, a interrogação… é o factor mediador… desta dialética, tal como defende Gadamer…”.14/ Refere Víctor que na tratadística histórica a cobertura surge negligenciada, com excepção a Gottfried Semper que em “Die ver elemente der baukunst” 15 de 1851 rompeu com a tríade Vitruviana propondo 4 elementos definidores da arquitectura - o “lugar” (lar), a “plataforma” (fundação), a “cobertura” e a “membrana/revestimento”. Mais se propondo interpretar o potencial da relação da arquitectura com o céu, consciente que “a arquitectura contemporânea das 2 primeiras décadas do século XXI ficou capturada por meia dúzia de códigos formais” modernistas./ Assim, num 1º capítulo, Victor refere-se à figura do arranha-céus, e como Koolhaas em “Delirious NY” apresenta a fantasia desse como “um produto do capitalismo liberal, um processo de verticalização urbana, um contraponto á alegoria horizontal da arquitectura moderna”.16 Mais referindo a preferência actual por “Iconic buildings”, assunto oportunamente teorizado por Charles Jencks./ Já num 2º capítulo, Victor providencia uma narrativa histórica, que passa por zigurates sumérios, pelas pirâmides egípcias, pela antiguidade Grega, pelo Medievo, pelo Renascimento e dramatismo da arquitectura barroca. Mais se referindo ao século XVIII, período influenciado pelos ideias da revolução francesa, e pelo desejo de uma arquitectura visionária expressiva de ordem e racionalidade (i.e. oposto à exuberância do Barroco tardio). Bem como ao século XIX, período de reacção ao primado da razão e ao classicismo, e valorizador da emoção, natureza e subjectividade/espontaneidade do individuo com o Romantismo. Ou de eclético revivalismo estilístico. A narrativa culmina em referência à construção da Torre Eiffel de 1889 bem como dos 1º arranha-céus: símbolos das conquistas de um progresso e revolução (industrial) sem paralelo histórico. Para depois prosseguir avançando para o início do seculo XX, com referência às coberturas planas e “roof-gardens”./ Assim, posteriormente e num 4º capítulo, Victor providencia o desenvolvimento internacional de excepções projectadas por mestres modernos e revisão do modernismo. E, num 5º capítulo, foca o caso português, recordando que “A escola do Porto no período pós 74… influenciou o rumo da arquitectura portuguesa da segunda metade do século XX até aos dias de hoje”./ Já num 5º capítulo, Victor detalha “elementos esquecidos”, designadamente torres, cúpulas e abóbadas, chaminés e lanternins, ou cimalhas e platibandas. Neste conspecto por exemplo, recorda-nos relativamente ao primeiro aspecto, como as actuais torres de telecomunicações constituem hoje símbolos de poder económico-tecnológico. A pretexto do segundo aspecto, (voltando a ecoar o interesse do autor por arte contemporânea), refere-se ao “Roden crater” que James Turrelll criou no Arizona em 1943 enquanto constelação de “skyspaces” semi-enterrados. E, a respeito do último aspecto, recorda-nos a influência das Beaux-arts, Art noveau e Déco, nas mesmas existentes nos meios urbanos de Lisboa e Porto./ Por último, cumpre salientar a interessante prospectiva “Nota final: Antes do epilogo”./ Sabemos que a arquitectura da 2ª década do século XXI ecoa ainda em grande sentido influências do moderno. No entanto, Victor orienta o leitor para desenvolvimentos contemporâneos como a informática ou IA, alertando-o para o seu impacto. Bem como para as alterações climáticas, reclamando que se retome reflexão aberta nos anos anos 60/70 e indague a disrupção com referências do século XX. Nas palavras de Victor: “O facto é que… vemos… coberturas desenhadas apenas em função dos seus requisitos técnicos, linhas horizontais monótonas e redutoras”. “Interessa assim perceber como poderá a arquitectura, no futuro evoluir no sentido de… responder aos desafios do século XXI… [abrindo[ caminho a novas linguagens para a arquitectura contemporânea”./ Victor salvaguarda-nos que a “ideia de um retorno ao passado, anterior ao movimento moderno, não está presente neste livro”, sem deixar de recordar que “esse regresso ou pelo menos a vontade de o estabelecer tenha aflorado… por exemplo no período entre 1935-45, onde se ensaiou uma continuidade classicista do seculo XIX com autores como Tessenow (muito apreciado pelos neoracionaistas italianos como Grassi, Asplund, Plejnik ou Tony Garnier…)”./ Certo é que toda uma crítica ao movimento moderno ocorreu internacionalmente, seja pelas revisões organicistas/revisionistas, seja por classicistas. Já o propósito de Victor é agora o nosso tempo, de hoje e de amanhã. Sendo nesse conspecto que recorda palavras de Grassi de 1977: “Não temos qualquer transformação em curso para celebrar, mas participamos de facto numa transformação”.17 Para depois constatar: “passados quase 50 anos, ela poderia aplicar-se aos dias de hoje… não temos… nenhum facto… disruptor que nos permita dizer - a arquitectura a nível global está a abraçar novos caminhos -, mas também é um facto que os sinais dessa mudança estão a parecer. …O factor determinante dessa mudança em curso são as alterações climáticas, que são um problema global…. Novas necessidades irão impulsionar a arquitectura para novas morfologias, onde as coberturas irão adquirir formas diferentes, para por exemplo obter ganhos energéticos a partir do sol ou do vento…, mas também para recolher águas da chuva”./ Culmina depois Victor repetindo pergunta lançada aquando de um seu editorial para o número 114 da “Arq/a” de 2023 sobre “O que será a casa do futuro?”; prevendo IA, robots, construção com impressões 3D em novos materiais, bem como o reaproveitamento de energias passivas (solar e eólica), e reaproveitamento da água da chuva. Mais fazendo Victor referência a “revolucionar a arquitectura” com a “adaptação das coberturas” e “projecções para o futuro… que apelam… à imaginação dos arquitectos para gerirem… a forma como a arquitectura se relacionará com o céu revalorizando um diálogo formal que foi sendo perdido desde o início do século XX”./ Podemos não saber como serão tais projecções, mas é certo como refere que “os desafios contemporâneos da arquitectura e da cidade levam a novas vias de pensar e projectar”.18 O presente livro pelo Victor constitui um generoso contributo para tal. v. referencias 1 - Vd. Joseph Ryckwert, A ideia da cidade 2 - Vd. e.g. Lewis Mumford que escreveu uma “Historia da cidade” e curiosamente também uma “História das utopias”, bem como Jane Jacobs sobre a “Vida e morte das grandes cidades americanas”, etc 3 - Vd. Ignasi Sola Morales, policopiado cedido pelo autor. 4 - Vd. AAVV, UIA, Barcelona: COAC, 1996. Curiosamente Ignasi Solá Morales interessou-se tanto por Walter Benjamim - que abordou a experiência das grandes metrópoles do início do século, i.e. Berlim e Paris – como pela abordagem da metrópole contemporânea e de Gilles Deleuze. 5 - A título de curiosidade, Villém Flusser que escreveu temas que incluem o design, chegou a residir no Brazil, pelo que parte da sua obra foi redigida em português. 6 - O livro com este nome foi editado pelo Instituto Piaget. 7 - Mas como me refere o meu amigo Jorge Neves, em Flusser há que salientar a figura do operador, também enquanto aquele que seleciona entre as operações possíveis, conjugando-as 8 - O ponto privilegiado do punctum, o espectro do momento passado-morte, a diacética plano-contraplano e demais 9 - Bem como a Escola de Chicago, analisando a orientação nas cidades-metrópoles, por marcos, vectores e demais 10 Estas resolviam o problema habitacional, com galerias e equipamento nas coberturas, surgindo não isoladas (em desenhos no arquivo de Le Corbusier) mas como complexos dispostos em articulação na paisagem natural. 11 - Marta Llorens, “Construir bajo el cielo: Um ensayo sobre la luz”, Madrid: La huerta editoria, 2020. 12 - Vd. Hans-George Gadamer, “O problema da consciência histórica”, Vila Nova Gaia: Estratégias construtivas, 1998. Mais refere Victor “E nesse sentido podemos dizer que tem como ponto de partida aquilo que Hans Gadamer entende como ‘sentido histórico’.” 13 - Mais refere Victor “Ou uma ‘nova liberdade de espírito’, expressão também utilizada por Gadamer”. 14 - Mais acresce Victor “O mesmo que afirma que ‘compreender é operar uma mediação entre o presente e o passado, é desenvolver em si mesmo toda a série ligada das perspectivas nas quais o passado se apresenta e de dirige a nós’. Ou ainda. ‘aquele que compreende um texto, para não falar de uma lei, não se lança somente no esforço da compreensão em direcção a uma significação, mas adquire , pela compreensão, uma nova liberdade do espírito”. 15 - Gottfried Semper, “The four elements of architecture and other writings” 16 - Mais refere Victor que “em ‘Delirious NY’ os arranha céus tornam-se ‘personagens de uma relação novelesca’.” 17 Giorgio Grassi, entrevista, in: AAVV, Revista 2C, 1977. 18 - Victor Neves, Editorial, in: AAVV “Arq/a”, N.114.

2/7/25

CONVERSA SOBRE ARQUITECTURA E ESCOLA DO PORTO _ DEZEMBRO 2020 (Pedro de Azambuja Varela, com Gonçalo Furtado).

CONVERSA SOBRE ARQUITECTURA E ESCOLA DO PORTO _ DEZEMBRO 2020 (Pedro de Azambuja Varela, com Gonçalo Furtado). I. Gonçalo Furtado [GF] - Bom dia Varela, proponho estruturarmos a conversa em meia dúzia de aspectos avançados pelo questionário que te enviara./ No domínio ‘pessoal’, a minha primeira ‘questão’ visa obter informação ‘biográfica’ relativa ao período que antecede o teu ingresso no ensino superior. Entre os ‘tópicos a abordar’, sugeria que incluísses as tuas ‘primeiras afinidades com a arquitectura e afins’. [PV] - Fiz todo o meu percurso escolar na Escola Salesiana de Santo António do Estoril, desde pequenino até ao 12º ano. A escola tinha 3 ou 4 áreas de estudos no secundário, e a parte das artes era a mesma das engenharias e ciências aplicadas. Não tive oficina de artes, nem história de arte, mas tive física e electrónica./ Por outro lado, sempre estive próximo do desenho livre e rigoroso, pois a minha mãe era desenhadora técnica na Estação Agronómica Nacional, fazia ilustração científica de insectos a escalas aumentadas. O acesso a estas ferramentas fez com que desenvolvesse um gosto por fazer desenhos geométricos, inclusive a tinta-da-china. O meu pai trabalhava em mediação imobiliária, o que por sua vez me fez estar em constante contacto com edifícios em construção. Desde cedo dizia que seria arquitecto quando fosse grande. [GF] - Quais eram os teus interesses gerais? [PV] - Acho que consigo resumir com alguma exactidão os meus interesses de jovem a três assuntos: bicicletas, computadores e Queen./ Queen foi a minha a(u)dição musical durante anos, fui coleccionador e até promotor de um clube./ Desde que me apercebi que havia bicicletas todo o terreno com mudanças, que desejei uma bicicleta de montanha. A primeira, transformou-se noutra, peças para aqui, desmontar, pintar, comprar peças, uma construção velocipédica de vários anos. A minha bicicleta era algo que se vinha transformando e que culminou num roubo na cidade do Porto, um dos maiores desgostos que já tive./ O computador era o meu foco de atenção em casa. Nunca fui muito de jogos, gostava mais de experimentar tecnologias, desenho, programar, construir páginas interactivas e comunicar com o mundo. [GF] - Como surgiu o teu interesse pela arquitectura e afins? [PV] - Acho que já respondi antes. Posso adicionar que muito pouco sabia de arquitectura antes de ingressar na faculdade... Sabia sim que queria estudar arquitectura, e não me enganei. [GF] - A minha segunda questão versaria a tua ‘formação universitária’. Entre os ‘tópicos a abordar’ eu sugeria que incluísses as ‘afinidades pessoais, professores, cadeiras e matérias marcantes’. [PV] - Licenciatura na FAUP, de 2000 a 2006./ Temi chumbar a Desenho 1, mas lá me safei num percurso sem interrupções. Tive muito prazer na minha Prova Final orientada pelo Prof. João Pedro Xavier sobre a análise geométrica da planta da Igreja dos Clérigos no Porto. [GF] - Podes resumir-nos? [PV] - Posso dizer que a minha entrada no curso de arquitectura foi muito boa. Lembro-me de gostar de todas as disciplinas, sentia-me como peixe na água. Mais para a frente no curso, houve uma ou outra cadeira que deu mais trabalho, mas de um modo geral sempre senti muito interesse e utilidade no que foi ensinado./ Tinha claro as minhas preferências, em que Geometria imperava; as matérias abriam horizontes e eu quis estender esse mundo. [GF] - Memórias de afinidades pessoais? [PV] - No 1º ano há muitos alunos que vêm de fora, que não são originalmente do Porto. Isto faz com que haja muitas pessoas que desenvolvem os seus trabalhos, nomeadamente da cadeira de Projecto, na escola. Sempre gostei mais de usar a palavra escola do que faculdade ou universidade. O desenvolvimento destes trabalhos muitas vezes alongava-se pela noite dentro, o que certamente contribuiu fortemente para a criação de laços de amizade./ Ainda hoje tenho amigos dessa altura, e muito especialmente um grupo de 5 que se constituía como um gabinete de arquitectura virtual, o Rucativa./ Mas se falarmos de afinidades pessoais, não nos podemos desviar do facto de que foi precisamente nesse 1º ano de arquitetura que conheci a pessoa com quem partilho a minha vida. [GF] - Que memórias tens de professores para ti e tua geração marcantes? [PV] - Lembro-me de ouvirmos, deleitados, as histórias do professor Domingos Tavares. Digo histórias quando poderia dizer história. O seu modo de explicar as aventuras arquitectónicas do renascimento e pós renascimento italiano confundia-se com episódios pessoais, ou acontecimentos que poderiam surgir no percurso arquitectónico de qualquer um de nós. Este modo de estar criava um grande à-vontade e, naturalmente, uma proximidade com os conteúdos da disciplina. [GF] - Que memórias tens de cadeiras e matérias para ti e tua geração marcantes ? [PV] - Quando falo deste assunto com antigos colegas apercebo-me de quão diferentes todos somos. Se é verdade que a personalidade e as preferências de cada um fazem com que uma disciplina para um tenha sido um pesadelo mas para outro uma alegria, também é verdade que os próprios professores, muitas vezes associados a essas disciplinas, acabassem por ficar igualmente rotulados. Eu gostava de geometria, de história, mas temia desenho. Ora, conheço pessoas com afinidades precisamente opostas. [GF] - A minha segunda questão centrar-se-ia nas tuas ‘principais obras’. Como ‘tópicos a abordar’ eu sugeria que contemplasses uma distinção ente as realizadas ‘como colaborador, como co-autor e como autor’. [PV] - Acho que posso resumir este tópico de um modo cronológico./ Uma das minhas primeiras obras foi uma singela ferragem para o suporte de umas hastes de bandeira; gostei da solução porque incluía uma torção de um elemento metálico que resolvia um simples problema com um acto geométrico./ Quando trabalhei em Viena colaborei em alguns projectos de grande dimensão tais como uma grande torre de escritórios de geometria curva e um edifício comercial no centro da cidade; estes projectos equiparam-me me com uma noção mais clara do que implica o controlo de projectos desta dimensão./ Quando voltei a Portugal trabalhei vários meses no desenvolvimento de um grande empreendimento com vários edifícios de habitação, o que muito me entusiasmou. Estando a trabalhar numa empresa de promoção imobiliária, eu era o arquitecto responsável por esse grande projeto. O facto é que após alguns meses me desiludi com o mundo empresarial e rumei de volta à vida académica, perdendo o controlo e rasto desse projecto que acabou por ficar na gaveta./ Entretanto, a nível estritamente pessoal, desenvolvi juntamente com a minha parceira Renata Pinho o projeto de renovação do nosso apartamento. Foi um projecto que deu grande gozo, e foi muito pormenorizado no desenho das soluções com estreita colaboração com a carpintaria. Talvez fruto das correntes editoriais da época, teve bastante divulgação em revistas de papel e online com o nome Yellow Renovation./ Outro projecto de renovação que fiz foi a transformação de uma antiga corte de gado em uma casa rural. Nesta Casa em Rio Mau houve foi uma ampla utilização de ripados de madeira pintados de vermelho em referência ao espigueiro existente na eira daquele complexo construído./ [GF] - Outra questão que te lançaria versaria os teus ‘interesses actuais e futuros’./ Entre os ‘tópicos a abordar’, sugeria que incluísses as tuas ‘afinidades com a arquitectura e afins? [PV] – O interesse pelo desenho, geometria e arte edificada levaram-me a estudo arquitectura. Contemporaneamente, os computadores e a geometria sempre me acompanharam. Desde cedo procurei interseções entre os dois, e depois de experiências com programas de geometria dinâmica descobri nas primeiras versões do Grasshopper um modo de potenciar a exploração da geometria com o poder da computação. Com o início dos estudos doutorais, descobri a estereotomia, e tudo encaixou numa simbiose frutífera com a arquitectura. [GF] - No domínio da ‘actividade profissional’, a minha primeira ‘questão’ visa obter uma ‘caracterização’ sumária dessa. Como ‘sugestão de tópicos a abordar’, eu sugeria que incluísses menção ‘à tua abordagem metodológica, etc’. [PV] - Nos primeiros anos estive a trabalhar em escritórios de arquitectura. Primeiro em Viena na Áustria no gabinete Henke um schreieck Architekten, e depois em Nova Iorque, num pequeno escritório chamado Architecture InFormation./ Depois voltei para Portugal e trabalhei na Habiserve, uma empresa grande promoção imobiliária onde tive a oportunidade de trabalhar em edifícios bastante grandes. Não sei se terá sido overdose mas a verdade é que senti saudade da academia, da escola, e ingressei no programa de doutoramento em arquitectura. Apesar de ter sido um falso arranque deixei uma semente que voltou a germinar mais tarde./ Entretanto estabeleci a minha própria empresa AZVAvisuals de criação de materiais visuais ligados à arquitectura tais como visualizações design gráfico e design para a web, ao mesmo tempo que ia desenvolvendo as minhas capacidades de desenho algorítmico. Durante este tempo nunca estive longe da criação arquitetónica e de design de produto tendo realizado algumas obras de renovação e de mobiliário. [GF] - Investiguei em Viena, e publiquei lá parte do meu doutoramento. E há pouco tempo escrevi sobre o meu fascínio pela América, tendo ido a Nova Iorque múltiplas vezes/ Que memórias guardas e que especificidades encontraste em cada um dos sítios por onde passaste? [PV] - Guardo memórias valiosas sobre esses locais. Não digo boas memórias porque tudo é mais complexo do que simples. Poderia até dizer que estas duas cidades são um pouco o oposto uma da outra. Em Viena existe um grande respeito pelo ser humano, e não é difícil ter uma qualidade de vida apreciável, nunca lá passei dificuldades. Por outro lado, em Nova Iorque, é fácil levar uma vida mais difícil: muito tempo passado em transportes mal qualificados, uma dieta fraca em verduras e bons restaurantes inacessíveis pois estão já num patamar superior orçamental. Mas estes sacrifícios valeram a pena pela experiência de viver de uma forma continuada nesta cidade única, com uma escala multidimensional inimaginável por mim até então./ Já Viena encanta por outros motivos, parece um salão de baile à escala urbana, com tudo o que de bom e de mau tem um salão de baile para quem quer habitar, viver. [GF] - E sobre a abordagem metodológica etc, poderias falar? [PV] - O escritório em que trabalhei em Viena tinha, a meu ver, um modo de trabalhar bastante semelhante com a realidade que conhecemos no Porto. Apesar de não se utilizar o desenho livre de perspetiva com tanto à-vontade, o esquissar estava sempre presente, e havia um grande apoio em maquetes de trabalho. O escritório estava cheio de maquetes. O software principal era o AutoCAD e eu introduzi a modelação tridimensional com o Archicad./ Em Nova Iorque encontrei uma realidade mais frugal, eventualmente derivada da pequena dimensão do gabinete. O facto é que os trabalhos eram desenvolvidos essencialmente em ambiente digital, onde o software Rhino já estava muito presente. [GF] - Principais obras (Incl: como colaborador, como co-autor e como autor)? [PV] - Acho que a minha principal obra a nível arquitectónico em conjunção com a minha esposa Renata Pinho é a renovação do apartamento Yellow Renovation que foi bastante publicada tanto em revista física como em sites da especialidade./ [GF] – Falaras... No domínio da ‘actividade pedagógica’, a minha primeira ‘questão’ visaria as tuas ‘experiências lectivas’ na FAUP. [PV] - Sempre estive ligado ao ensino. Mesmo quando estudava sempre tive prazer em explicar matérias e ajudar colegas. Já na vida profissional este interesse traduziu-se na organização de workshops e trabalhos de consultoria de formação a empresas. O surgimento das tecnologias BIM revelou-se um foco de interesse o que levou a organização de cursos curtos para o efeito culminando na organização de um curso de formação contínua na faculdade de arquitectura dedicado à aprendizagem do ArchiCAD. Organizei também alguns cursos de formação para professores de geometria descritiva em que incentivo à utilização da tecnologias interactivas de visualização tridimensional para a explicação da geometria descritiva./ Entretanto já lecionei na disciplina de Geometria Construtiva na FAUP e neste momento sou regente da cadeira de CAAD nesta mesma faculdade. Tenho também colaborado de um modo algo satélite com a disciplina de História da arquitectura portuguesa ajudando na implementação de técnicas digitais de levantamento métrico, organização de informação geográfica com SIG e modelação tridimensional de formas complexas. [GF] - A minha segunda ‘questão, versaria outras experiências para além do lecionamento na FAUP./ Experiências outras? [PV] - A história de como me liguei ao meu tema de investigação começa num interesse pelas curvas na arquitetura. Após ter ganho uma bolsa de estudos patrocinada pela Amorim isolamentos, lancei-me no desafio de entender de como a cortiça poderia ser utilizada como material de construção em superfícies curvas. Esta investigação rapidamente me levou a uma descoberta fundamentada da estereotomia, ou seja, o modo de construção em que partes individuais criteriosamente cortadas se encaixam criando um conjunto estruturalmente funcional que entendemos por abóboda. Este tipo de construção estava a ganhar alguma tração no mundo da investigação devido aos avanços da fabricação digital associada naturalmente ao desenho digital paramétrico e algorítmico em que, quase de repente, o arquitecto tem novamente ao seu dispor este tipo de construção que se perdera com o betão moderno. Tenho assim ao meu alcance um tema de investigação que alia a geometria, arquitectura, as forças da física, o desenho computacional e a fabricação automática e precisa com máquinas, com o objectivo de construir estruturas portantes; que além de me interessarem com as suas curvaturas espaciais, potenciam uma pegada carbónica imensamente inferior aos métodos correntes de construção. [GF] - Dizes que tem uma “pegada inferior” aos “métodos de construção correntes”. [PV] - Tendo então desenvolvido a minha tese de doutoramento no tema da estereotomia, na atualidade tenho também feito a construção de vários pavilhões experimentais, assim como desenvolvido técnicas de fabricação de aduelas com recursos limitados, e explorado os materiais portugueses na construção deste tipo de estruturas com vista a encontrar alternativas construtivas que satisfaçam os desafios ambientais. [GF] - “Desafios ambientais”./ A minha terceira pregunta versaria as tuas ‘experiências extra FAUP’. Por exemplo ‘noutras instituições’. [PV] - Em 2012 frequentei o curso de estudos avançados em arquitetura digital organizado pelos professores José Pedro Sousa e Alexandre Paio, esta do ISCTE-IUL. Foi uma experiência maravilhosa porque me permitiu tomar contacto e consolidar muitos conhecimentos nesta área assim como estabelecer relações profissionais e de investigação com pessoas com o mesmo interesse. [GF] – Eu também estive envolvido na ideia do Zé Pedro de um mestrado profissionalizante com FAUP/ISCTE. PV] - Colaborei na organização do workshops e também dei algumas aulas nesta instituição no âmbito do desenho computacional. Também já me tenho deslocado à Universidade de Coimbra ou Universidade do Minho para a comunicação de matérias ligadas ao desenho digital em arquitectura e também técnicas de levantamento arquitectónico usando tecnologias computacionais. [GF] - Experiências extra-lecionamento na FAUP? [PV] - Foram sempre a nível particular. Quer na organização de pequenos cursos sobre modelação BIM ou visualização tridimensional, ou no apoio directo profissionais ou empresas para a implementação deste tipo de tecnologias. [GF] - No domínio da ‘memórias pessoais’ pré Bolonha - isto é 2008 - , a minha primeira ‘questão’ visaria informação relativa a ‘período da FAUP’. Como ‘tópicos a abordar’, sugeria que incluísses ‘eventos, protagonistas, factos marcantes ou curiosidades’ . [PV] - Eu terminei a minha licenciatura em 2006 e nos dois anos seguintes estive afastado da escola, portanto a minha visão pré Bolonha é a de um estudante. Como tal lembro-me especificamente de se falar nas mudanças que aí vinham, pois também estava integrado na Associação de Estudantes. Ainda na AEFAUP, falava-se da acreditação dos cursos de arquitetura em Portugal que se contavam às dezenas. No contexto da história da escola do Porto, a escola de arquitectura claro está, sinto que o período em que estudei foi uma primeira fase após os anos da FBAUP e da instalação no novo campus. Figuras marcantes ou curiosidades? Não posso deixar de referir o episódio de uma aula fantasma em que senhor Luís Valentim foi conivente com a partida, ou também no apoio da figura sempre amiga do senhor Jorge Vieira. [GF] - A minha terceira questão, versaria um ´período recente (i.e. após 2008)’. E como ‘tópicos a abordar’, sugeria novamente que contemplasses‘ eventos, protagonistas, factos marcantes ou curiosidades”. [PV] - Responderei por extensão à questão anterior. Foram anos relativamente tumultuosos no que concerne ao reconhecimento de grau. Como os da minha geração tinham se formado nos anos imediatamente anteriores à revisão de Bolonha, tínhamos somente o grau de Licenciatura com 6 anos de estudos enquanto que os novos colegas, com 5 anos de estudos, já tinham Mestrado. Mudanças trazem sempre dissabores a alguém. [GF] - Como diferencias primeira década versus a segunda década do século XX? [PV] - Depois de eu me ter formado em 2006, casei em 2008, e pouco depois comecei a trabalhar sozinho. Não consigo olhar para estas duas décadas sem relacionar com as mudanças na minha própria vida. Portanto, a segunda década do século XX é a década em que comecei a trabalhar na minha construção pessoal e que me traz até aqui, hoje. [GF] - Ah. [PV] - Questões pessoais à parte e de modo geral ligado aos meus interesses, vejo esta segunda década como uma consolidação das tecnologias informáticas, nomeadamente ligadas a Internet. Ao invés do início do primeiro milénio, que viu em Portugal ainda uma experienciação introdutória às várias possibilidades digitais. [GF] - “Introdução” procedida de “consolidação” ligada à Net. [PV] - O fim desta segunda década foi marcado por uma forte digitalização de vários aspectos da vida e da profissão, que culminaram numa triste dependência nos meios de comunicação à distância, por causa da pandemia que veio fechar este período. É indubitável a influência que isto causou nos vários quadrantes das nossas vidas, pois hoje é normal haver reuniões à distância, ou teletrabalho, aspectos pouco fundados anteriormente. [GF] - O presente/futuro? Desenvolves investigação na FAUP. [PV] - Neste momento estou a desenvolver investigação para a implementação da estereotomia na construção. Durante este período em que estou a trabalhar especificamente em investigação na Universidade do Porto tenho feito experiências construtivas de abóbadas com terra e com mármore. Tenho também trabalhado no desenvolvimento de ferramentas computacionais para acesso facilitado para o projecto deste tipo de estruturas. Estas várias ações têm como objectivo a implementação da abóboda na arquitectura contemporânea. E se for estereotómica, melhor!

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CONVERSA SOBRE ARQUITETURA E ESCOLA DO PORTO - FEVEREIRO 2019 (Domingos Tavares, com Gonçalo Furtado)

CONVERSA SOBRE ARQUITETURA E ESCOLA DO PORTO - FEVEREIRO 2019 (Domingos Tavares, com Gonçalo Furtado) I. [Gonçalo Furtado] - Propunha falarmos sobre o ensino da Arquitectura em geral, mais especificamente no Porto. Fazia uma primeira referência à Reforma de 1957. Uma vez falávamos que, passados muitos anos, ainda havia marcas, incluindo em gerações que não tinham passado por ela. Havia um certo receio de se voltar àquilo, mas Carlos Ramos teia uma tese. [Domingos Tavares] - A reforma 57 resultou de uma posição essencialmente defendida pelo professor Carlos Ramos e tinha a ver com o prestígio dos arquitectos. Havia uma posição dominante no quadro da cultura portuguesa, a de que os arquitectos eram figuras simpáticas para fazer uns brilharetes, decorações e fantasias. Podiam, eventualmente, ser responsáveis por alguns monumentos especiais, mas na prática do mundo da construção quem era chamado à responsabilidade profissional eram, em geral, os engenheiros. Havia uma diferença clara de estatuto entre engenheiros e arquitectos. A tese de Carlos Ramos é que isso resultava do conceito de arquitecto-artista, formado em Escolas de Belas Artes e que, por isso, tinham um valor diferente do ponto de vista da economia, das transformações sociais, da realização dos processos administrativos, do que quer que fosse. Por exemplo, ao nível da função pública, os arquitectos nunca podiam assumir posições de chefia, porque no estatuto da carreira dos Técnicos Superiores, não eram considerados com essa qualidade. [GF] - Não eram elegíveis. [DT] - Não quer dizer que não houvesse arquitectos na estrutura da função pública e que não fossem, em alguns casos, até relativamente prestigiados. Mas na prática, o seu estatuto não chegava. [GF] - No subterrâneo da cultura arquitectónica, do precedente período, havia confronto entre uma cultura técnica dos engenheiros e de uma outra nossa./ A questão de resto é internacional, não tem a ver só com Portugal. [DT] - Pois não. [GF] - Apesar das velocidades então do desenvolvimento nos contextos internacional e nacional não serem as mesmas. [DT] - O que aconteceu com o projecto da Reforma de 57, tutelado por Carlos Ramos e que trabalhou por ela junto do Ministério da Educação, é que ficou concluída em 1950 mas não foi então regulamentada. [GF] - Chama-se “Reforma de 57” porque foi a data da publicação ou da entrada em vigor. [DT] - Apesar de, na prática, estar a ser preparada desde os anos 40, só entrou em vigor por lei de 1957. [GF] - E o Carlos Ramos empenhou-se nessa. [DT] - Foi um personagem chave. [GF] - Ele vem primeiro à Escola de Belas Artes do Porto, como professor, ainda nos anos 40. [DT] - Sim, foi professor da ESBAP desde 1940. Quanto à Reforma, a estratégia era simples: o curso de arquitectura devia ter as características de um curso universitário. [GF] - Penso que Carlos Ramos assume a direcção por volta de 1952./ E estava envolvido nessa discussão obviamente. [DT] - Foi nomeado director em 1952. A sua estratégia assentava na ideia de que o curso de Arquitectura deveria ser iminentemente, um curso que se identificasse com o nível universitário. Essa era a base para a reforma. [GF] - Com a reforma pretendia-se uma formação com cadeiras técnicas. [DT] - Seria essencialmente uma formação técnica articulada com a formação artística. Era por aí que as coisas haveriam de prosseguir. Se quiseres, quando muito, seria uma situação de formação ambivalente, tendo um pouco as duas direcções. E daí o aparecimento das disciplinas de formação básica na área científica. [GF] - No 1º ano e no 2º ano, as quais eram frequentadas em conjunto na Faculdade de Ciências ou afins. [DT] - Porque correspondia a uma formação de base, eram Matemática, Geometria, Química, Física e Sociologia./ Tinham carácter de formação científica e nada a ver com as artes. Essa era a lógica da Reforma de 57, que depois assumia uma dimensão específica para a arquitectura dada pelo Projecto. Isto independentemente dos nomes atribuídos às componentes de formação em Projecto. [GF] - Seria “Composição”? [DT] - Havia sempre alguma coisa na área de Projecto, como Arquitectura Analítica, Composição, Grande Composição, etc. [GF] - Independentemente da terminologia. [DT] - Sim… E uma componente de História de Arte, que seria, digamos, a dimensão teórica complementar dessa formação específica no mundo da arquitectura. [GF] - O acesso ao curso de arquitectura já se fazia de forma análoga ao acesso à Universidade, i.e. mediante realização de um exame de admissão na própria Universidade. [DT] - Posteriormente passaram a ser as classificações das disciplinas gerais do secundário a definir as regras do acesso. Mas na altura era um exame de admissão próprio. Por isso tinha todas as analogias com os cursos da Universidade. [GF] - Os estudantes, embalados pelo status universitário. [DT] - No primeiro ano foi a festa. Só que a partir de uma certa altura… [GF] - Começaram a chumbar. [DT] - Exactamente. [GF] - E começaram, também, a apertar com quem ministrava algumas disciplinas. [DT] - As reprovações nas disciplinas da Faculdade de Ciências começaram a atingir números elevadíssimos. Os alunos não sentiam qualquer motivação naquelas matérias inócuas. Resultado, 3 ou 4 anos depois, já quase não havia alunos acima do 3º ano. Se até ao 3º ano se podia chegar com 2 disciplinas em atraso, depois não se passava ao 4º ano com disciplinas do 1º ano ou com mais de 2 atrasadas, não se podendo prosseguir o curso. [GF] - O que caracteriza o ensino na Universidade portuguesa, e nas Universidades por aí, em grande medida é ser um ensino organizado enquanto somatório de “matérias”. [DT] - O estudante coleciona esses saberes e organiza-se intelectualmente com esse currículo fechado. [GF] - E estava-se “apto”, no sentido de depois ser aceite pela comunidade, etc. [DT] - Era apenas uma questão legal. [GF] - Só mais tarde é que veio a validação pela “Ordem” ou pela então equivalente forma de associativismo. [DT] - Não existia “Ordem” profissional nem as respectivas regras para o exercício da profissão. Só valia o diploma escolar. [GF] - Aliás, até recentemente, fica-se com o estatuto validado por esse somatório de matérias. [DT] - Nos estudos universitários, organizava-se um somatório de saberes. Não havia o que nós começávamos a considerar fundamental, uma formação unitária integrada./ O que quer que se aprendesse, deveria ser no sentido da aquisição de uma competência própria no mundo da arquitectura. Portanto, em toda essa aprendizagem havia muita inutilidade. Essa foi a reivindicação durante vários anos. Até que, finalmente, houve a grande crise que rebentou com o sistema. Mas isso foi depois e há outras dimensões a considerar. [GF] - No final dos anos 60. [DT] - Foi em 1969 que se deu a grande crise. E é preciso perceber porquê. [GF] - Havia aqui uma relação política também com a Faculdade de Economia? Leva ao regime experimental e clima de contestação envolvente, que antecede depois o SAAL, etc. [DT] - Quanto a isso importa considerar dois acontecimentos importantes. [GF] - Politicamente, o Maio de 68 em Paris. [DT] - Essa é uma das chaves de todo o processo. Desde os inícios da década de 60, ou mesmo antes, que havia uma fortíssima politização no ambiente estudantil, nomeadamente universitário. [GF] - Em Coimbra, por exemplo, as crises sucederam-se - em 1962, 64, 69, o que era uma consequência da situação política em Portugal. [DT] - Evidentemente. Entre os estudantes, a partir dessa década, começou a crescer uma maior capacidade crítica e consciência política. [GF] - O ano 1969 consistiu no ano em que se reflectiu em Portugal a crise de 68 ocorrida em Paris. As academias entraram, praticamente todas, nas greves e contestações. [DT] - Em princípio, sim. Mas o que tinha a ver com a Escola de Belas Artes do Porto e com a secção de arquitectura, era o facto de entre os estudantes se ter instalado um ambiente revolucionário. Na realidade, o que foi específico na Escola de Arquitectura foi a crise do funcionamento do ensino da disciplina, pois os alunos não entendiam essa partição dos saberes. Isto foi associado à posição crítica de alguns professores, que não viam ser resolvido um problema de natureza administrativa sobre as suas carreiras. [GF] - Os professores entram em greve, alguns muito estimulados pelo próprios estudantes. [DT] - Havia uma grande familiaridade em todo o corpo escolar, pelo menos nessa época, o que era muito importante. Esse ambiente expressava grande solidariedade o que, no fundo, reflectia uma relação próxima entre estudantes e professores. Situação que era muito mal vista entre a burguesia da cidade, porque um professor não devia ser tratado com tal descontração. Não havia categorias, digamos assim, entre os arquitectos professores de arquitectura na Escola de Belas Artes. [GF] - A maior parte dos estudantes eram também colaboradores dos professores nos ateliers. [DT] - Muitos trabalhavam como colaboradores nos ateliers dos mestres. [GF] - Havia vários círculos ou ambientes sociais, para além da Faculdade, onde todos se cruzavam com frequência. [DT] - E isso tudo pesou para que a posição dos professores, de reivindicação específica relacionada com o seu funcionamento enquanto docentes, ter como consequência o apoio maciço dos estudantes, no sentido de que para a escola isso implicava a resolução dos problemas do ensino da arquitectura. Foi então que surgiu, já em meados de 1969, a hipótese de um novo regime de carácter experimental. Tratava-se de encontrar uma saída que desse satisfação a essa impossibilidade de continuar com a Reforma de 57. Era também uma maneira de superar as reivindicações dos professores porque eles também estavam numa situação de crise. [GF] - Vivia-se um clima de alegada reforma, i.e. de “primavera marcelista”. Não obstante já era tarde para que se acreditasse que alguma coisa pudesse mudar. E também os estudantes e professores ficavam… [DT] - No Ministério do governo de Marcelo Caetano estava gente já com um outro tipo de disponibilidade. [GF] - O Ministro da Educação era o Veiga Simão. [DT] - Num primeiro momento sim. Vinha de Moçambique, era uma pessoa com grande capacidade de discutir, de prever, de estudar e propor. Foi ele que sugeriu a saída do problema com um “regime experimental”. [GF] - Saiu o Veiga Simão, entrou o Hermano Saraiva. [DT] - Um demagogo que, como Ministro da Educação do grupo marcelista, resolveu entrar naquela aventura. Era divertidíssimo para ele, Ministro, ir à escola de Belas Artes do Porto participar nas reuniões gerais de escola e ser animador daqueles debates, como aconteceu. Isto para dizer que se criou um conjunto de situações que levaram a ultrapassar este período. [GF] - Que foi um período ainda de 3 ou 4 anos, em que a escola não tinha estrutura. [DT] - O ensino de arquitectura não se fazia com nenhuma estrutura específica. Eram as pessoas que se auto-organizavam. Professores e alunos faziam projecto, conversavam, tratavam dos programas e meios de os concretizar, andavam por lá, conviviam. O 25 de Abril apanhou a escola exactamente nesse momento. [GF] - Chega o 25 de Abril de 1974. [DT] - De Outubro e, normalmente, até Abril-Maio, não se passava nada, porque à escola não chegava a autorização do Ministério para o funcionamento do ano lectivo. Depois quando vinha a autorização, montava-se um esquema super-rápido. [GF] - O “rápido” significava que os professores não tinham áreas específicas e, de acordo com as suas competências, davam apoio a grupos organizados de estudantes em torno do estudo de um determinado problema. Mas havia um horário para aulas e para o apoio! E era com a participação dos estudantes, que a matéria e os conteúdos a desenvolver eram definidos./ Ou, havia um horário de aulas, e as matérias não eram obrigatórias? [DT] - Mas também é preciso dar aqui alguma limitação a esta explicação que, colocada assim, tem muito de fantasia. [GF] - Muita mitificação também, i.e. de que não só não se desenhava, como não se fazia nada./ [DT] - Houve um momento especialmente crítico na parte final deste período experimental, em que, mesmo assim, havia composição dos grupos de trabalho para fazer projecto e existia sempre um professor que tinha o encargo de acompanhar especificamente os grupos que lhe eram atribuídos. Esses professores tinham essa tarefa concreta. Também funcionavam algumas disciplinas por conta de professores de matérias específicas. Mas poucos alunos tinham interesse nessas aulas. Por outro lado os professores cumpriam, porque tinham de justificar o vencimento. [GF] - Por exemplo a cadeira do Fernando Távora, de cultura arquitectónica geral, mudou neste período para se adaptar aos interesses que os estudantes tinham então? Não, ele dava aulas normalmente. A cadeira dele prosseguia de forma parecida. Alguns continuavam a dar aulas formais. [DT] - O Távora sempre deu aulas normais, mas com uma grande liberdade na organização dos conteúdos. [GF] - Os estudantes, nessas aulas, se calhar expressavam inquietude e interesse por muitas coisas. [DT] - Eu não fui aluno do Távora no sentido formal, que deu disciplinas de Teoria em anos que eu não frequentava. Mas assistia informalmente a muitas das suas aulas, por se tratar de um excelente professor. E foi isto que levou a que durante um período relativamente grande, os anos tivessem funcionado com regularidade e as aulas também. Mas o que ressalta é a progressão para um sentido muito mais livre da aprendizagem. Ainda que, de algum modo, um pouco anárquico. [GF] - “Anárquico”, o que podia assustar até alguns. [DT] - Aconteceu que tudo isto conduziu a uma mudança significativa quando, especialmente a seguir ao 25 de Abril, o curso se tentou reorganizar. [GF] - Principalmente no ano de 1975/76, tenta-se organizar uma estrutura de curso. [DT] - Tentou-se organizar uma estrutura de curso, e aqui entravam, efectivamente, algumas divergências, alguns conceitos de ensino diferenciados. [GF] - É a história das duas listas. Defendendo uma formação mais dirigida para competências arquitectónicas gerais, ou uma formação especificamente movida pelas responsabilidades sociais. Eram estes, digamos, os factores diferenciadores. [DT] - A primeira, não ignorava a responsabilidade social. A segunda, dava prioridade à dimensão política da formação. Recordo aquela frase em que se diz “Veio o SAAL e o pessoal foi todo para a festa. Depois percebeu que não sabia o que havia de fazer e voltou tudo para a escola, para aprender a desenhar”. É uma caricatura que traduz alguma clarificação que foi tentada. [GF] - O Sérgio Fernandez, disse-me há pouco tempo, que foram os próprios estudantes que reconheceram que precisavam de aprender a desenhar. E que pediram aos professores para lhes ensinar coisas necessárias que eram requeridas ao projectar. Porque eles queriam projectar e alguns apercebiam-se que não o conseguiam fazer eficazmente. [DT] - Evidentemente que dito assim é um exagero. Os alunos não eram todos iguais e os seus níveis de desenvolvimento eram distintos. Há diferentes maneiras de pensar e opiniões divergentes quanto a tornar uma didáctica operativa. Mas podemos dizer que a questão era essa. A necessidade de aprender sentiu-se, então, de forma evidente. [GF] - A necessidade de encontrar uma estrutura capaz de organizar e de pôr em prática uma formação específica de arquitectura. E isso deu lugar a uma coisa, que se chamou as “Bases gerais”. [DT] - As Bases gerais tinham um quadro de organização dos saberes, segundo 4 grandes categorias: arquitectura, desenho, teoria-história e formações complementares, o que permitia organizar um sistema de funcionamento do curso com alguma coerência. [GF] - Diz então: arquitectura, desenho, teoria-história e formações complementares. [DT] - É aqui que entra a prioridade do projecto. Embora se pudesse entender essa ideia em todas as fases do curso, em todas as escolas, em todos os sítios, de uma maneira geral, em arquitectura desenha-se: trabalha-se numa perspectiva de aprender a projectar. O que aconteceu no nosso caso, foi a ideia de que a prática do projecto devia comandar tudo. É essa ideia que está dentro da estrutura das Bases gerais. Primeiro o Projecto. [GF] - Mas o ensino das Belas artes já assentava na práctica de atelier, que era a base da formação. Portanto essa ideia, até já vinha de trás e, em certo sentido, até era bastante clássica. Incluso é difícil imaginar outra. [DT] - Exactamente. Na Escola do Porto ensina-se arquitectura de uma maneira especial: ou seja, como se ensina em toda a Europa, mais coisa, menos coisa. Mesmo reconhecendo que temos uma zona mais mediterrânica e culturalista e uma zona mais tecnicista nos países do norte, mas na prática podemos dizer… [GF] - Que há uma confluência de pensamento na formação em arquitectura muito assente na prática do atelier. [DT] - Há um episódio que eu acho fantástico. Há já alguns anos quando, na Faculdade, eu estava a coordenar os programas “Erasmus”. Logo no primeiro ou segundo ano em que fiquei com esse encargo, recebia os estudantes estrangeiros que vinham ao Porto com a intenção de frequentar um ano lectivo ou um semestre. Um dia recebi um estudante de Stuttgard. Estávamos em Julho e o jovem alemão, muito simpático e engraçado, queria saber se as aulas eram dadas em inglês. Disse-lhe não haver essa hipótese. Se efectivamente tinha gosto de vir para cá, e nós teríamos também gosto nisso, precisava de aprender português, porque ninguém estava disponível para dar aulas em inglês. Com esta informação ficou desanimado e foi à vida. Mas em Outubro apareceu. Falava português com perfeição, uma coisa impressionante. Em três meses aprendeu e conversamos muito a propósito da sua situação. Foi quando lhe fiz uma pergunta: nós, ou principalmente eu, tínhamos uma reacção desconfortável em relação aos estudantes vindos do norte. Por exemplo, nunca conseguimos ter alunos ingleses na Faculdade, porque partiam de uma formação doutra natureza, muito mais técnica e geral. Na Alemanha parecia-me também ser assim. Ele vinha de uma escola chamada Faculdade Técnica de Stuttgard e eu perguntei-lhe como era lá o curso de arquitectura. Tive alguma dificuldade em perceber, porque em Stuttgard, havia uma escola de Belas Artes e a Universidade técnica, ambas com o curso de Arquitectura. Então ele deu-me esta explicação sobre a diferença entre os cursos: no curso da Universidade técnica, os responsáveis têm muitos complexos, porque consideram que os arquitectos saídos da Universidade técnica poderão ser muito técnicos sem competências como artistas, como criadores, de maneira que o curso da Universidade técnica é um curso que faz uma força enorme para se organizar no sentido do ensino clássico das “Beaux-arts”. [GF] - A situação da Escola de Belas artes é de outra natureza, a questão é inversa. [DT] - Como há o complexo de não terem competências técnicas, em Belas Artes o curso é iminentemente técnico. [GF] - Nós somos um país pequeno, só há… Não temos esse problema. [DT] - Sim, com o aparecimento das universidades privadas isso poderia ter acontecido, mas o sucedido nas novas escolas privadas em Lisboa foi uma coisa mais interessante. [GF] - Na pública, temos vários cursos. O da Universidade Técnica de Lisboa, etc. [DT] - Mas em Lisboa o curso de arquitectura da Universidade Técnica é relativamente recente, podendo considerar-se que é desta geração dos cursos novos. Tem um bocadinho essa presunção técnica, muito dada por alguns professores em especial. [GF] - As tais “Bases gerais” estruturam o curso. [DT] - Estruturam principalmente a matéria mais relacionada com o ensino de arquitectura. E a estrutura das outras componentes ficava muito dependente, por causa dessa relação que se queria próxima da área de projecto. [GF] - O que interessava é estruturar o Projecto, porque depois as outras associam-se à estrutura do Projecto. [DT] - A especificação da natureza do trabalho formativo inicia-se na área de projecto desde o 1º ao 5º ano (começou por ser do 1º ao 6º ano, mas, mais tarde tiraram-nos o 6º ano). Assenta principalmente numa formação de carácter geral, um enunciado da problemática da transformação e compreensão do espaço. Problemática geral em que é preciso compreender a totalidade e à medida que os alunos vão passando do 1º para o 2º ano e daí para os seguintes. O 1º ano seria de formação geral e abstracta, em que se trata de tudo, desde a compreensão da cidade à problemática da criação da forma, tomando o desenho, essencialmente, como instrumento de trabalho. [GF] - Tudo através do desenho. [DT] - Tudo desenhado. Mas desenhar cidade logo no primeiro dia de aulas, criando uma situação de choque. Depois no 2º ano intervém-se organizando, amarrando, estruturando as componentes parciais da cidade. Uma chamada ao projecto nos interstícios da cidade, aumentando a complexidade: procura-se uma compreensão já possível dos elementos que dão o carácter a cada sítio. Depois, no 3º ano, como uma natureza semelhante, aprofunda-se a especificidade do problema da habitação, ou seja, já não é tanto projectar formas num contexto articulado de cidade, preenchendo vazio, mas construir a própria cidade. [GF] - É também expansão; com mais escala e por vezes repetição? [DT] - Isso é agora. Na altura a ideia era introduzir programa como complexidade de projecto. [GF] - O programa no 2º ano era intervir na cidade consolidada. [DT] - Não havia um programa específico no 2º ano. Lembro-me que a Praça de Lisboa, junto aos Clérigos, foi o projecto que mais vezes entrou como objecto do trabalho desse ano. Tratando-se de zonas muito indefinidas, com espaços abertos a precisar de projecto, no coração da cidade consolidada, permitia que o estudante se aproximasse de uma solução num contexto em que se tratava de descobrir as referências, que estavam lá todas. / No 3º ano é que se fazia a introdução do factor “programa”. [GF] - Quando se diz privilegiar a habitação no 3º ano, tem a ver com o facto de se trabalhar com um programa homogéneo. Isto foi a ideia inicial, não quer dizer que tenha corrido exactamente assim. Mas não foi muito diferente... [DT] - Haverá, naturalmente, muitas nuances ao longo da experiência docente e muitas coisas que vão mudando. [GF] - O 4º ano. [DT] - O 4º ano trata a cidade especial, digamos a intervenção necessária para além dos contextos urbanos, mais específica e centrada na complexidade especial de equipamentos com impacto na função social. [GF] - O 4º ano visava projectos de equipamentos de maior significado enquanto constructor de urbanidade. [DT] - Trata-se de intervir fora das condicionantes perfeitamente consolidadas, mas com equipamentos capazes de mobilizar a urbanidade. Daí que o programa incida em teatros, cinemas, bibliotecas, sempre à volta desse tipo de equipamentos significativos. [GF] - O 5º ano amplia-se numa dimensão urbana. [DT] - É a afirmação da complexidade e a dimensão urbana da intervenção da arquitectura. Dentro da ideia de que é a arquitectura que configura a cidade, faz-se a chamada ao plano geral e de pormenor, e outras exemplificações do desenho urbano a todas as escalas. [GF] - Esta era a ideia geral da organização da coluna de “Projecto” como ponto central da estruturação do resto./ Mas ia querer que voltasse à problemática das “Listas” e às “Bases gerais”. [DT] - Mas as “Bases gerais” saíram, naturalmente, desse conflito. [GF] - Mas eu pedia que aprofundasse a questão das listas. Para se perceber como surgiram as duas listas. As composições de cada uma delas é conhecida, mas há relação disso com algum posicionamento político ou não?/ E depois que abordasse uma questão específica: se ocorre uma alegada “recusa do desenho” e, em momento posterior, um consenso à volta do mesmo desenho aquando do SAAL. [DT] - Há que ter em atenção que a escola estava altamente envolvida no seu presente e no futuro em geral. [GF] - “Cinzentas” e “amarelas”. Volto outra vez… [DT] - A tua observação faz sentido. Mas atenção às listas Cinzenta e Amarela. [GF] - A escola está então altamente politizada. [DT] - A maioria dos estudantes estava altamente politizada e os professores, até o digo com alguma ingenuidade, estavam presos ao entusiasmo dos estudantes que eram os mais politizados. Não eram os professores na política. Não se está a ver o Távora como maoista ou equivalente./ Efectivamente não era essa a questão. [GF] - Muitos professores estavam solidários com os estudantes e muitos dos estudantes encontravam-se altamente politizados. Maoistas ou Trotskistas. [DT] - Nessa época, entre antigos e modernos, quase todos eram de esquerda. E é verdade que na lista cinzenta predominava um campo de ideias oriundas do Paris de 68 de modo claro. Enquanto na lista amarela eram mais os simpatizantes do PC. Não quer dizer que fossem todos activistas, não. Mas era a simpatia principal. [GF] - Dentro deste clima de esquerdas, na altura complexo. Mas o PC tinha supostamente tipos no meio. [DT] - Não estás a pensar se este ou aquele eram do PC. Não importa, agora, a ideologia de cada um, porque as questões do ensino da arquitectura e da organização do curso, com o natural sentido da responsabilidade social que todos abraçavam, era a real matéria do debate. [GF] - E as composições das listas. [DT] - Todos os integrantes das listas são conhecidos e constam dos documentos de todo o processo. [GF] - Todos pretendiam encontrar um posicionamento quanto ao sentido da formação em arquitectura. O vosso problema era comum e, em termos das propostas, eventualmente, eram movidos pelo mesmo objectivo. [DT] - Os caminhos para lá chegar é que subentendiam estratégias diferentes. A luta entre os dois campos não tinha razão de ser. Quando surgiu a primeira dificuldade, todos se juntaram. [GF] - Pelo… [DT] - Começaram todos a trabalhar para o mesmo lado. Tinha a ver, de facto, com algumas circunstâncias da luta política externa. Cada um queria enquadrar-se politicamente, o que pode ter tido algum peso. Mas, no essencial, penso que do lado da lista amarela havia claramente a noção de que o importante, nesse processo, era a formação escolar no sentido da aquisição de bases para a competência profissional, a ser posta ao serviço da sociedade. Era a posição que eu também representava. [GF] - A noção que o desenvolvimento do ensino da arquitectura assenta na capacidade de aquisição de instrumentos para projectar, i.e. o desenho ou a teoria e história. [DT] - O desenho e a competência correspondente, ou seja a composição, a cultura histórica, o desenho instrumental. Portanto, a aquisição de competência era para nós um elemento fundamental a orientar a acção da escola no sentido de formar os arquitectos, que depois vão à vida. O que queriam os da lista cinzenta: numa posição semelhante, queriam que a questão da responsabilidade social aparecesse, sempre e obrigatoriamente, à frente de tudo. No fundo era essa a visão mais politizada. [GF] - Sim a lista “cinzenta” tinha uma visão mais politizada, e focada nas responsabilidades sociais, etc. [DT] - E talvez ninguém estivesse a actuar em nome de partidos. [GF] - O Alcino Soutinho foi o único de vocês que foi preso antes de 1974, não foi? [DT] - Sim, tinha sido preso antes do 25 de Abril. [GF] - Ah. [DT] - Tem a ver com os momentos. Há momentos mais críticos e momentos menos críticos. Esse acontecimento com o Soutinho, já tinha acontecido quando eu cheguei ao Porto em 1962. Intelectuais e estudantes reuniam no café Majestic à noite, depois da hora do jantar, mas em convívio para conversar e tomar café. [GF] - Era aquilo que habitualmente se chama uma tertúlia. [DT] - Onde apareciam activistas do PC e outros que não o eram, evidentemente. Foi gente dessa tertúlia que organizou um grupo, para fugir à guerra e à Pide. Arranjaram um barquinho e foram para Marrocos. Porque não podemos esquecer a contestação consciente à guerra colonial. [GF] - Pois, a guerra colonial. [DT] - O que me lembro é que o Soutinho, era um dos frequentadores dessa tertúlia. No meu tempo aparecia com frequência o Michel Giacometti, que também tinha sido preso algumas vezes. Mas não vinha fazer política, era conversa. O antropólogo, como todos, era personalidade importante e gente de uma certa cultura, formando um ambiente mais ou menos homogéneo. Nas tertúlias em geral não há conflito./ Nessa época eu não tinha qualquer actividade política. Quantos estudantes a tinham, eu não sei. [GF] - Vinha de Aveiro, há um núcleo por ali forte. [DT] - Aveiro, sim, pode ter algum significado na minha formação. Fiz o curso liceal todo nessa cidade e conheci muitas pessoas de lá. Em Aveiro havia um grupo de democratas, gente de espírito aberto. Alguns integravam o MDP (Movimento Democrático Português) e entre eles um advogado, director do jornal semanário “O Litoral”, cuja redacção funcionava no seu escritório. [GF] - Ah. [DT] - Nessa época escrevi uns poemas e alguns textos para publicar nesse jornal. Foi aí que conheci um jovem da minha idade, ambos com 18 anos, que trabalhava no escritório desse advogado, encarregado de organizar o material para a publicação no jornal. Alguns anos depois reencontrei-o aqui no Porto, ligado às lides políticas como funcionário do PC. Pertencia à redacção local do jornal “O Diário”, que foi lançado a seguir ao 25 de Abril, enquanto publicação da iniciativa do PC. Ele pediu-me para escrever alguns artigos e eu escrevi uns textos curtos, umas notas locais sobre arquitectura e cidade, como caixas de primeira página. Quando este jornal foi encerrado ele foi para Lisboa e chegou a director o “Diário de Lisboa”, um vespertino bastante antigo de grande circulação no país. Sei que está agora reformado, mas eu nunca mais o encontrei. Ficaram as memórias de Aveiro. [GF] - Sim, Aveiro também. Mas o Domingos ainda não estava filiado. Na altura das “listas”, podia ou não haver relações. [DT] - Haveria ou não, isso não interessava. O que havia era uma tendência natural por parte de cada um, mais próxima daquilo que poderíamos designar as práticas ou as ideologias. O que não permite dizer que este ou aquele pertencia a alguma organização política. [GF] - E a que ganhou foi a menos “cinzenta”. [DT] - A amarela ganhou e tomou a direcção da Escola. Mas seguiu-se uma contestação brutal. [GF] - Os votos? [DT] - A votação foi por um voto. [GF] - Pois e foi quem tomou conta. [DT] - Foi, foi./ A votação decidiu-se por um voto. Eu não me recordo dos números, mas foi a amarela que ganhou. [GF] - Montou a direcção da escola, e a direcção do curso passou a pertencer à “amarela”. [DT] - E naturalmente o outro grupo começou rapidamente a contestar tudo que se fazia. Essa contestação levou uma série de episódios, assembleias gerais, discussões várias e debates organizados. [GF] - E vou à direcção do curso... [DT] - Sim. Aqui estamos a falar de direcção do curso. Porque o curso de Belas Artes tinha uma direcção própria, para além dessa. [GF] - E depois. [DT] - Procurou-se montar uma estrutura e os esquemas de funcionamento. [GF] - Depois, o desafio do SAAL, criado pelo Nuno Portas. Organizam-se então em “brigadas”, e vão para a rua. O Alexandre Alves Costa, entra como coordenador para o norte? [DT] - O SAAL foi iniciativa do governo, de carácter nacional. A ideia e o plano pertenceram ao Nuno Portas, então Secretário de Estado do Urbanismo. [GF] - Havia um “Fundo de fomento da habitação”. [DT] - O Fundo de Fomento da Habitação, como organismo dependente do governo, integrou o Programa SAAL. Na época estava na direcção dos serviços no Porto a arquitecta Margarida Coelho, especialmente próxima de alguns colegas de curso, como o Alexandre Alves Costa que ela mobilizou para a coordenação. Ao receber o encargo de montar a máquina administrativa para pôr as coisas a funcionar como delegação do norte, instalou uma equipa para coordenar a operação. [GF] - Previa, ainda que não fosse exclusivamente, a possibilidade de autoconstrução, etc. Isso tudo é que leva à participação. [DT] - A Margarida procurou mobilizar os colegas, e na escola o pessoal começou a organizar-se. Era preciso organizar e repassar palavra, fazer propostas e trabalhar. Tratou-se de organizar os grupos de trabalho e enfrentar a situação concreta. A Comissão de Coordenação do Norte tomou conta do processo e vários dos arquitectos mobilizados já eram professores na Escola de Belas Artes, gerando o natural envolvimento de grande parte do curso. [GF] - Surgiu pelo facto de que esses estudantes já andavam na política antes do 25 de Abril, e/ou envolvidos na questão dos bairros sociais. [DT] - Eram operações várias ligadas com associações de moradores contestando a regulamentação dos bairros camarários. Apoiavam as comissões de moradores no tratamento as suas questões. Essa, sim, tinha sido acção política. [GF] - Os estudantes já tinham proximidade a essas realidades sociais, e incluso conheciam os moradores dos bairros. [DT] - As comissões de moradores foram movimentadas ou apoiadas por estudantes, da escola ou de outras Faculdades. Essas comissões de moradores enquadraram os estudantes com quem já estavam a trabalhar, para apresentar candidaturas de modo a montar uma operação no seu bairro. [GF] - Organizam-se para apresentar propostas. E é também nesse desafio que se reconhece a necessidade de competências, havendo um consenso de retorno ao desenho, recurso necessário ao projectar? [DT] - O papel dos estudantes de arquitectura, apoiados por um ou mais arquitectos, era o de realizar projectos para a construção de novas habitações. [GF] - Algo como o Sérgio Fernandez me partilhou: de que foram os estudantes que reconheceram a necessidade de saber projectar./ Ou também os professores que então actuavam como coordenadores?/ Tenham sido os alunos, os professores, ou tenha sido a circunstância... [DT] - Não interessa. Porque eram os alunos, que tinham proximidade com algum professor, que sentiam a sua própria fragilidade. [GF] - Eles começaram a ter um ensino mais formal, digamos assim. [DT] - Precisavam disso… [GF] - Precisavam disso, provavelmente. [DT] - Mas o SAAL acabou demasiado depressa, para poder produzir efeitos palpáveis. [GF] - Um ano e meio. [DT] - Exactamente. Mas essa movimentação gerou a necessidade do conhecimento, da competência para projectar, trabalhar, relacionar os interessados com os projectos e com a capacidade de definir os programas. [GF] - As “Bases gerais”. [DT] - Com as alterações políticas no país e na cidade, a questão das Bases gerais acabou por se tornar uma questão interna. Isto é, com a saída de novas leis, tudo se alterou e o regresso à “escola” passou a ser o mais importante. [GF] - Uma Lei que estabeleceu os princípios do funcionamento mais democrático das escolas. [DT] - Das Universidades. Foi uma Lei de gestão do ensino superior, com um entendimento muito diferente da democracia aberta instalada no ensino. E isso implicou uma série de iniciativas de reorganização no sentido de encontrar um acordo com a Lei. Foi por isso que na nossa escola os alunos voltaram, para aprender a desenhar e projectar. Nestas matérias já não havia divisões. [GF] - A partir do momento em que se começou a tratar da questão das “Bases gerais”, não houve mais divisões dentro da escola. [DT] - Eu diria que a partir do momento em que regressou o movimento interno, estávamos, em geral, de acordo. Foi a partir da nova situação que se montou todo o esquema das Bases gerais. [GF] - E nessa altura que o Fernando Távora ganha uma grande primazia. [DT] - Eu suponho que foi designado como responsável por uma prevista Comissão de Gestão, quando saiu a Lei e se tornou necessário reorganizar a gestão da escola. Não só era o professor mais qualificado de entre os que se mantiveram no activo, o mais velho, como era, reconhecidamente, a personalidade em que todos confiavam. /II. [GF] - Mas vamos fazer uma pausa e recuar./ Do período do regime “experimental”, às Bases gerais..../ Após a saída do Carlos Ramos, ficou a actuar como director da escola o arquitecto António Brito. [DT] - O arquitecto António Brito, era uma pessoa cordata, talvez um pouco passiva perante os acontecimentos internos e com pouca capacidade de iniciativa. Entretanto surgiu toda a contestação relacionada com a demissão dos professores em 1969. Deve ter atingido o limite de idade, talvez em 1973, no auge da contestação. O Ministro nomeia para o seu lugar o historiador Jorge Pais da Silva, professor na Faculdade de Letras de Lisboa, que já fora um respeitado professor da casa. [GF] - O Pais da Silva, que era o professor de história, e que saíra em 1966. [DT] - Pais da Silva tinha sido um competente professor de História de Arte, muito atento às questões da arquitectura. Tinha uma atitude muito formal, mas uma boa relação com os estudantes, apesar de um modo de estar distinto dos hábitos da casa. Em 1966 saiu da escola. [GF] - Concorreu para Lisboa. [DT] - Concorreu para professor de História de Arte da Faculdade de Letras de Lisboa e era já um ilustre professor quando o Ministro o nomeou. Porquê? Era uma pessoa muito rigorosa, investigador de arquivos, tudo muito bem organizado e cronometrado. [GF] - Ah. [DT] - Teria uma sensibilidade de esquerda? Não sei quais seriam os seus enquadramentos políticos, mas era senhor de uma mentalidade claramente compatível com o funcionamento dos estudantes na escola. Por isso havia a convicção de que o Pais da Silva poderia ser um elemento de consenso e de estabilização interna. Mas houve ali um problema muito complicado. O Pais da Silva chegou e reuniu o Conselho escolar, que existia desde a Reforma de 57. [GF] - Reuniu o Conselho escolar, que era constituído pelos professores e pelos primeiros assistentes? [DT] - Parece-me que era assim: o Conselho escolar orienta, organiza e suporta a acção da direcção da escola. Mas evidenciou-se um detalhe muito negativo. Foi a contestação de alguns professores qualificados que não estavam de acordo com o processo encetado e se tinham afastado, discretamente, do ambiente experimental. Octávio Lixa Filgueiras, Alfredo Viana de Lima e Duarte Castel Branco. [GF] - Diz que os arquitectos Alfredo Viana de Lima, Octávio Lixa Filgueiras e Duarte Castel Branco, expressaram um relativo afastamento. [DT] - Repara. A conotação ideológica dos três identificava-se com o modo de ser de Pais da Silva. Eram tipicamente personagens de uma certa esquerda, de compromisso e conciliação. [GF] - À “esquerda” relativamente a hoje, diz... [DT] - Relativamente a hoje sim, não perto do PS, mas daqueles grupos que querem acabar com radicalismos inconsequentes. [GF] - Como no PC, também há os seus renovadores. [DT] - Claro, essas coisas. [GF] - No meio de toda essa balbúrdia que vocês tinham na altura. [DT] - Aconteceu que Pais da Silva chegou convencido que Távora seria a oposição predominante ao grupo de revolucionários da escola e que lhe daria um certo apoio. Mas Távora não lhe manifestou esse apoio. E porquê? [GF] - Porque o Fernando Távora precisamente tinha proximidade a esse grupo “revolucionário”. [DT] - Távora estava comprometido com toda a movimentação, que procurava orientar o ensino na linha que ele próprio defendia. E porque tinha convicção nos seus princípios. Percebeu que havia uma atitude de autoritarismo por parte de Pais da Silva, com o objectivo de impor a ordem. Resultado, fizeram-se meia dúzia de reuniões, a situação durou uns meses, poucos, e Pais da Silva demitiu-se, não querendo intervir na disputa. [GF] - O Pais da Silva demite-se, e vai daí o Ministério nomeia como director o escultor Joaquim Machado./ Foi meu professor de Desenho no início dos anos 90. [DT] - Joaquim Machado, escultor, pouco atento às diferenças de sensibilidade dentro do corpo escolar e apoiado pelos 3 professores empenhados na reposição da ordem interna, entrou a matar. O que é que ele fez? Enviou uma carta a todos os docentes em final de contracto, informando que não haveria renovação. Tinha consciência que por essa via expulsava alguns dos activistas da experiência pedagógica. [GF] - Ele já estava na escola, como era professor de escultura. [DT] - Joaquim Machado formou-se em escultura e, mais tarde, dedicou-se à composição gráfica. Na época não havia artes gráficas na escola, razão por que trabalhava no ensino do Desenho. [GF] - Deu aulas da Arca ou ESTAC. [DT] - Pois deu, ele teve de se reorientar. Aconteceu que a Arca surgiu na fase de lançamento de Universidades e Escolas privadas do ensino superior, dando emprego a personalidades disponíveis no mercado da educação. [GF] - No Porto, houve a distinta Árvore. [DT] - Não é bem igual. A história de Árvore é mais ideológica. A Arca seria mais uma oportunidade de criar um negócio com algumas perspectivas. [GF] - Mas retomemos o tema - da imposição ministerial, de uma nova direcção, com apoio de alguns internamente? [DT] - Joaquim Machado foi nomeado em Janeiro ou Fevereiro, e a escola estava ainda sem aulas, na expectativa do despacho anual com vista ao início de novo ano lectivo. [GF] - Pois, mas acabou por não ter significado nenhum, porque a seguir veio o 25 de Abril e foi afastado. [DT] - Esteve na direcção menos de três meses. Foi saneado em Assembleia Geral de Escola a 28 de Abril. [GF] - E as tais pessoas que o apoiavam na escola? [DT] - Afastaram-se simplesmente. Viana de Lima foi dar aulas para a Escola de Belas Artes de Lisboa, mantendo o título de Professor. Enfim, cada um com as suas vidas./ Octávio Filgueiras pertencia à Junta Nacional de Educação e encontrou pretexto para se afastar. [GF] - Falando de Octávio Lixa Filgueiras, poder-me-ia falar sobre o agitado Arnaldo Araújo. [DT] - O Arnaldo Araújo, tal como Filgueiras, foram produto da escola que se formaram sob a atenção de Carlos Ramos, que os convidou para a docência. Os dois eram amigos, solidários que conviviam muito entre si. [GF] - O Arnaldo Araújo era próximo e assistente de Lixa Filgueiras. [DT] - O Arnaldo Araújo era assistente, mas não especificamente de um qualquer professor efectivo. É preciso ter em atenção a estrutura específica do corpo docente das Escolas de Belas Artes. [GF] - O Octávio Lixa Filgueiras era professor efectivo do quadro. [DT] - Os outros eram assistentes ou primeiros assistentes. [GF] - Havia os assistentes e os primeiros assistentes (com agregação). [DT] - Assistente era o primeiro grau de docente e, após prestação de provas públicas de agregação, passava à categoria de primeiro assistente. Corresponde ao que hoje é o professor auxiliar. Depois havia os professores efectivos, como vencedores de concurso de agregação para preenchimento de lugar no quadro. [GF] - E os professores únicos quem eram, o Octávio Lixa Filgueiras? [DT] - Nessa fase o único professor efectivo em arquitectura era o Octávio Filgueiras. [GF] - Porque no tempo do Carlos Ramos, primeiro ficou professor o Octávio Lixa Filgueiras e não o Fernando Távora. [DT] - Houve um concurso público para preenchimento de lugar de professor do primeiro grupo. Na carreira docente, o acesso aos lugares professor efectivo faz-se por concurso. [GF] - Concorreram o Octávio Lixa Filgueiras, o Fernando Távora e o Carlos Loureiro. [DT] - Foram os 3 concorrentes a esse concurso. [GF] - 1961? [DT] - Aconteceu nesse concurso ter sido seleccionado Octávio Filgueiras. Ficou em primeiro lugar e os outros 2 aprovados por mérito absoluto. Todos aprovados por mérito para serem professores, mas como só um podia tomar conta do lugar, foi Filgueiras o escolhido pelo júri. É nesse sentido que se diz que foi Carlos Ramos a fazer a escolha, mas tal não faz sentido. Quando muito ele era um dos membros do júri, como presidente, mas foi um Júri que decidiu. Só depois houve movimentações, impressões de amizades e outras considerações. Sobre tudo isso não faço nenhuma ideia. Todos podem fazer leituras, mas é tudo muito relativo. Por exemplo, em Lisboa tinha havido um concurso para professor efectivo de arquitectura na Escola de Belas Artes a que concorreu Carlos Ramos, e nesse concurso foi escolhido Cristiano da Silva. [GF] - Esse concurso do Carlos Ramos e Cristino da Silva terá sido muito anos antes. [DT] - Mas para o mesmo grau. Carlos Ramos classificado em mérito absoluto não foi escolhido, e considerou que tinha sido excluído. Na realidade, tratava-se de um concurso e não de uma escolha. [GF] - Ah. [DT] - É que, para quem perde, surge essa reacção. [GF] - E foi nessa altura que Carlos Ramos veio para o Porto. [DT] - Concorreu para o Porto e ficou. [GF] - Outro concurso em Lisboa foi a história que envolveu o professor Nuno Portas e... [DT] - Sim. Nuno Portas fez 2 concursos e não foi seleccionado nas duas vezes. Ainda assim, conservou-se como professor na qualidade de primeiro assistente e foram-lhe sendo atribuídas responsabilidades de professor de Projecto. [GF] - Exactamente. [DT] - A situação no Porto era esta: Octávio Filgueiras era o professor titular em Arquitectura. Muito amigo de Arnaldo Araújo, que era claramente um homem de esquerda. Quando o conheci era muito próximo do Partido Comunista. A proximidade com Filgueiras permite pensar que este teria alguma simpatia por essa linha política. Não sei se tinha ou se não tinha e isso não será agora muito importante. O Arnaldo Araújo tinha realmente um discurso teórico muito claro, que eu sempre considerei engraçado. Afirmava a necessidade do conhecimento em arquitectura e a competência técnica nos domínios da construção que dá segurança ao cumprimento das responsabilidades sociais do arquitecto. [GF] - Sem práctica, ou com pouca práctica? [DT] - Ele praticava o projecto em grupo. Vamos lá ver, os jovens arquitectos normalmente começam a trabalhar em grupo. Nessa época era uma situação frequente. Um arranja uma encomenda e desenvolve o projecto dentro do seu grupo. Muitas vezes há uns que se sobrepõem aos outros, por força de uma dinâmica pessoal, mas estão todos ligados ao desenho. [GF] - Por exemplo, o Nuno Portas era sócio do arquitecto Nuno Teotónio Pereira. Trabalhavam os dois em conjunto. [DT] - Mas Teotónio estava sempre próximo do trabalho no atelier, era o arquitecto do estirador. Portas complementava: dava opiniões, fazia considerações teóricas e recomendações, defendia estratégias que Teotónio compreendia, dado que havia uma boa sintonia entre os dois. Mas Teotónio arriscava muito mais na evolução das ideias de projecto./ É nesse sentido que não se pode dizer que Arnaldo Araújo não tenha feito projectos. Ele entrou em vários projectos com diferentes colegas. Poderia não ter uma posição determinante na concepção ou no desenvolvimento dos trabalhos. Mas isso eu não tenho elementos para avaliar. [GF] - E como professor? Tinha conhecimentos teóricos e técnicos. [DT] - Como professor ele era senhor de elevada competência, quer enquanto comunicador, quer na clarificação dos saberes e capacidade de mobilizar os alunos na formação de capacidade crítica. Montou uma teoria assente nesses princípios da eficiência e da técnica. [GF] - E o Octávio Lixa Filgueiras, dava “Arquitectura analítica”. [DT] - Filgueiras era o professor de Arquitectura Analítica no 1º e 2º anos. Arnaldo Araújo era professor de teoria no 3º ano. Como disso, Arnaldo Araújo montava uma disciplina de teoria da arquitectura assente nos pressupostos da competência técnica. [GF] - A disciplina chamava-se teoria da arquitectura? [DT] - Exactamente. Na realidade o exercício prático de projecto só começava no 3º ano, porque os dois primeiros eram preenchidos com análises formais e sociais, além do desenho como disciplina autónoma e o programa entregue à Faculdade de Ciências. [GF] - O Domingos entretanto, foi para Lisboa em 1965. [DT] - Por razões particulares, fui para a Escola de Belas Artes de Lisboa no ano lectivo de 1965/66. [GF] - Ele sai em 1964? Ou? [DT] - Ele dava essa matéria quando eu entrei para a escola em 1962. [GF] - Na primeira parte dos anos 60, e depois continuou a dar na segunda? [DT] - Suponho que sim. Só reentrei na escola praticamente em 1969, no ano da crise. Porque fiz o 2º e 3º ano em Lisboa. [GF] - Digamos assim: ele era um dos ou o teórico da escola? [DT] - Para nós, estudantes iniciais, ele representava a dimensão teórica da arquitectura. [GF] - Houve algum empurrão que o afastasse?/ Depois esteve na criação do curso da Árvore. [DT] - Que eu saiba, não. O Arnaldo Araújo foi um dos demissionários de 69. Mas o que aconteceu foi que no contexto da nova organização, não se sentiu envolvido. Fez o que entendeu dever fazer. Sempre conversei com ele na escola, e julgo que nessa época ele não se afastou. Durante algum tempo esteve deslocado para a Direcção de Urbanização de Bragança. Na saída da crise do curso de arquitectura, opunha-se à transferência do curso para a Universidade. Não admitia a separação da arquitectura em relação às artes e não acreditava na versão científica universitária. Foi um dos impulsionadores iniciais da criação do curso de arquitectura na Cooperativa Árvore, que deu lugar à Escola Superior Artística do Porto. [GF] - Assistiu a aulas do professor Fernando Távora, mas não do Arnaldo Araújo. [DT] - Do Arnaldo Araújo nunca assisti. Interessavam-me as de Távora, que eram muito mais estimulantes. [GF] - Porque diz mais “estimulantes”? [DT] - Porque versavam temas da cultura arquitectónica numa perspectiva muito aberta, enquanto Arnaldo Araújo se concentrava muito na dimensão técnica do pensar para construir. [GF] - Portanto, era uma teoria mas dirigida para o projecto. [DT] - Teoria pura para a realização do projecto. [GF] - Não era baseada na história e etc, como se calhar a cultura de Fernando Távora? [DT] - Era claramente teoria do projecto, como se organiza o programa, como se faz o levantamento, como se estudam os materiais. [GF] - Ele tinha um enfoque ou propósito social? [DT] - Não se preocupava, a não ser pessoalmente, mas subentendido no discurso. [GF] - Como a história da “Função social do arquitecto” do Octávio Lixa Filgueiras… Estou a dizer por causa dessa proximidade deles. [DT] - Não, porque mesmo no caso de Filgueiras, os assuntos não eram tratados em discurso directo. O objectivo do professor era estimular os estudantes no sentido da realização própria e sobre a responsabilidade social do arquitecto. [GF] - Mas fazia uma “Arquitectura analítica”, em que se empreendiam levantamentos dos lotes e condições do habitar? [DT] - Punha todos os alunos a fazer os levantamentos em grupo em áreas e prédios de habitação degradada, e não fazia nenhum discurso sobre isso. Não precisava de fazer discurso ideológico, porque a degradação das situações sociais desses lugares eram gritantes. [GF] - Na vossa geração não deixava de haver também uma elite económica e burguesa. [DT] - Sim. [GF] - Havia diversidade. O Domingos vinha de um sítio mais pequeno e, quiçá outros, até de ambientes rurais. [DT] - Não. Repara, eu era um menino da pequena cidade, o que Ovar era na prática./ Sou de Ovar, a Aveiro ia todos os dias de comboio para o liceu, às 6 da manhã. [GF] - Diz Aveiro, pensei que o Domingos era de Estarreja. [DT] - Mas não. Isto para dizer éramos 30 alunos do primeiro ano, que me lembre. Desses, posso avaliar que 10 eram filhos ou familiares de arquitectos ou construtores. 4 ou 5, ou talvez mais, seriam da elite urbana do Porto. Depois havia os provincianos vindos de mais ou menos longe, de outras terras de província. [GF] - Quantos? [DT] - É muito difícil dizer-te. [GF] - Dez eram filhos de arquitectos? Dez da burguesia do Porto. Portanto, assim um terço… e depois da província era equivalente aos que eram do Porto. [DT] - Talvez por aí. [GF] - Era o que eu achava. [DT] - No 1º ano integrei um dos grupos para fazer o levantamento na Quinta da Conceição. Nesse ano, Matosinhos foi o tema de trabalho para todas as disciplinas do curso. Nas férias do Natal constituímos outro grupo para fazer reconhecimento de aldeias da Serra do Marão, mais exactamente no Vale da Campeã. Eramos 5, dos quais um era altamente politizado, um colega de Freixo de Espada à Cinta, que veio estudar medicina para o Porto três anos antes mas que, muito envolvido na política, mudou-se para arquitectura. Outro veio da Madeira, era um moço muito calado, simpático, atento e trabalhador. Outro era um jovem aqui do Porto, ou talvez da zona da Maia, de família da média burguesia. Não me lembro se o grupo está completo, mas isto dá-te a ideia da diversidade entre os alunos. [GF] - Mais diversificado do que tinha pensado. [DT] - No conjunto do ano tínhamos o padre Manuel, o senhor Pacheco que era o mais velho de todos, que trabalhava no gabinete de desenho do Porto de Leixões e tínhamos a filha de um engenheiro, director de serviços na Câmara, uma das duas meninas do ano. O professor perguntou-lhe, no primeiro dia de aulas: “Porque é que a Senhora veio para arquitectura?”. Ele fazia essa pergunta a todos os alunos. [GF] - Eu interrompi-o quando estava a falar de Arnaldo Araújo./ Então… esse dava teoria da arquitectura, com premência da técnica, dirigindo aquela para o projecto. Mas também tinha sensibilidade à artisticidade da arquitectura. [DT] - Arnaldo Araújo tinha uma profunda convicção quanto à importância da ligação entre a arquitectura e as artes. Achou inadmissível a saída do curso para a Universidade, porque rompia com as artes e, no fundo, todo seu esforço no sentido da competência técnica do arquitecto subentendia uma ligação visceral com o mundo das artes. [GF] - Isso coincide com a saída de professores da ESBAP para a Árvore. [DT] - E daí o aparecimento de um curso de arquitectura na Cooperativa artística, a Árvore, com a colaboração do Arnaldo Araújo e a ajuda do Zé Rodrigues, entre outros. [GF] - Portanto, ele dava uma teoria, atenta à técnica mas amplamente completa, acreditando que arquitectura era uma arte… a qual robustecia a disciplina? [DT] - Exactamente. Esse é o enquadramento de Arnaldo Araújo. [GF] - Não aceitou a saída para a Universidade…/ Teve-se um reitor - penso que foi proveniente primeiro de engenharia e depois de letras - que terá levado ou pedido a Fernando Távora para resolver o problema da ESBAP? Será 1979? [DT] - Creio que o reitor era o engenheiro Campos e Matos. [GF] - Então o Arnaldo Araújo saiu quando? [DT] - Arnaldo Araújo, eu diria, não chegou a sair da Escola de Belas Artes. Neste processo, em 1982, ele faleceu. [GF] - Mas a criação do curso na Árvore é logo no início dos anos 80? O Arnaldo Araújo diz que faleceu em 1982. [DT] - A criação da Árvore, não sei. Mas entre processo e legalização, podemos considerar 1982. Refiro-me à criação na Árvore de um curso de arquitectura. [GF] - Sim, porque a Árvore, enquanto associação cultural e artística, é uma coisa dos anos 60. O curso terá sido criado pelo Arnaldo Araújo, pelo José Guimarães, e ainda pelo José Pulido Valente? [DT] - Não estou por dentro desse assunto. Mas lembro também Calvet Magalhães. [GF] - Há dois Calvet. Um acho que também foi meu professor. [DT] - Estou a falar do mais velho, que foi professor e foi o principal impulsionador do curso de Artes gráficas na Escola de Belas Artes. Do Calvet Magalhães, filho, não tenho informação suficiente para o enquadrar neste processo. A ideia foi formar a Cooperativa de ensino artístico no âmbito da Cooperativa Árvore. [GF] - Digamos tratar-se de uma tentativa de alegada reposição da tradição artística da escola de Belas artes do Porto na organização Árvore./ E porque é que os artistas saíram das Belas artes? O escultor José Rodrigues, com que também cheguei a contactar, era professor nas Belas artes. [DT] - O José Rodrigues nunca deixou de ser professor, desde a fundação da Árvore. As duas situações não eram incompatíveis. [GF] - Chegamos aqui, ao final dos anos 70. Portanto, estávamos a falar de Fernando Távora, etc… Tenho aqui o número de uns ofícios, designadamente de uma reunião da Assembleia de representantes dos estudantes do curso de arquitectura em 26/06/1979. E, em Março, de uma carta endereçada ao reitor, por um grupo de 29 docentes? [DT] - Não me recordo de nada disso. [GF] - Não deve ser de docentes do curso de arquitectura, mas talvez da Escola de Belas artes do Porto. Porque aparecem demasiados./ Antecede 3 meses isto… as instalações, em Março. [DT] - Março de 1979. [GF] - Depois de uma reunião da Assembleia de representantes de 26 de Junho. Algo já se debatia em Fevereiro, de 1979? Parece estar aqui um ofício…/ Depois surge uma referência de 7 de Abril de 1979… ou de 1984?/ Vocês não estavam nesta Comissão Instaladora pensada pelo reitor Luís Oliveira Ramos, de letras, pelo que percebi? [DT] - O problema da composição desta Comissão Instaladora só se pôs em 1982. Qualquer nomeação anterior foi sempre recusada pela escola. Até aí só se tinha concretizado a nomeação de membros externos para o Conselho Científico da ESBAP. Fernando Távora só foi convidado pelo Reitor Oliveira Ramos. [GF] - Fernando Távora terá sido convidado pelo reitor Oliveira Ramos./ Dispôs-se a aceitar o encargo se pudesse indicar para membros uma maioria de arquitectos. E vem o professor Alexandre Alves Costa e o Domingos fazer parte dessa comissão./ Eles no início são - corrija-me se estiver errado - outros engenheiros etc e percebem rapidamente que os arquitectos são boa gente. Isto foi o que você me disse uma vez: “passado algum tempo já estavam do nosso lado”. Pelo menos, deixavam que vocês encaminhassem o processo. Como me disse, talvez por perceberem que realmente o caminho podia valer a pena. [DT] - Há aí uma questão. Um pormenor que quando falámos disso, e agora estou a lembrar melhor, eu estava a misturar os nomes e só agora estou a perceber a diferença. Depois da crise das demissões dos professores em 1969, mas antes da integração da arquitectura na Universidade do Porto, houve pressão do Ministério para colocar no Conselho Escolar da Escola de Belas Artes professores de engenharia, o que só aconteceu depois da publicação da Lei da Gestão das instituições do ensino superior. E alguns dos que me estava a lembrar vieram a pertencer ao Conselho Científico que substituiu o Conselho Escolar do Decreto de 1957. [GF] - Alguns engenheiros, por exemplo o Rui Póvoas, terá estado em algum órgão, em 1979? [DT] - Não sei se esteve em alguma Comissão directiva antes de 1983. Poderia estar nessa Comissão, não me lembro. [GF] - Em… meses antes da nomeação da Comissão Instaladora da nova Faculdade, ou similar, numa situação eventualmente transitória. [DT] - A Comissão instaladora só foi nomeada em Julho de 1982 e tomou posse em Janeiro de 1983. Este episódio só se conclui em 1983. [GF] - Pois, o que pode ter acontecido em 1979 ou mesmo depois foi a publicação de algum Decreto para fundação das Faculdades de Arquitectura no Porto e em Lisboa. [DT] - Mas que não teve concretização imediata, e terá sido nesse contexto que apareceram os professores da Faculdade de Engenharia na Comissão Científica. Foram o engenheiro Aristides Guedes Coelho, o arquitecto-engenheiro Barbosa de Abreu e o engenheiro Joaquim Sampaio. [GF] - Num período transitório, poderá então ter estado na Comissão Científica o engenheiro Aristides Guedes Coelho, Barbosa de Abreu e Joaquim Sampaio./ A comissão então surgiria depois em 1982. [DT] - A Comissão Instaladora foi nomeada por Despacho do Ministro em 20 de Julho de 1982. Antes desse ano a escola viveu primeiro em regime de comissão directiva, até à publicação dessa Lei do regime democrático para a gestão das Universidades portugueses. Foi essa lei geral que estabeleceu os órgãos directivos. [GF] - O estabelecimento de órgãos como Conselho científico, ou o Conselho directivo, etc. [DT] - Quando se montou o processo de transição, foi o Manuel Correia Fernandes e o José Grade que ficaram no Conselho directivo da Escola Belas Artes, pelo menos na arquitectura./ [GF] - Diz que na transição ficaram no Conselho directivo da Escola de Belas artes, pelo menos o arquitecto Manuel Correia Fernandes e o escultor José Grade?/ As aulas ainda estavam inicialmente do lado das Belas artes. [DT] - Quando foi empossada a Comissão Instaladora as aulas continuaram nas Belas Artes. No ano letivo seguinte começou a transferência dos alunos para o novo curso na Universidade. Primeiro o 6º ano, e nos seguintes prosseguiu a mudança para o respectivo plano, ano a ano, até à conclusão da transferência. [GF] - Vem o plano de estudos. A organização do curso de arquitectura penso que corresponde a uma portaria de 1984./ Houve um Encontro de arquitectura um ano antes, ainda em 1983, aquando da apresentação de posições sobre o ensino de arquitectura. [DT] - Organizamos esse encontro sobre o ensino da arquitectura, para promover a coesão entre os docentes e introduzir pontos de vista alternativos. [GF] - E o que é que o Domingos recorda desse encontro? [DT] - Cada um foi vender o seu peixe. [GF] - E quais foram os “peixes” que se venderam? [DT] - Nem tudo me lembra. Recordo, vagamente, a posição do escultor Alberto Carneiro, muito interventivo mas, nessa época, já estava muito afastado das nossas posições. Tinha trabalhado muito bem com o Alexandre Alves Costa na conjugação das disciplinas de Projecto e Desenho, mas em certo momento começaram a não se entender. Ele considerava-se marginalizado por não poder implantar as suas ideias, assentes na sensibilização dos estudantes para a compreensão abstracta das formas. No fundo era um professor de Desenho que seguia outros conceitos e separou-se, igualmente, dos outros professores de Desenho. [GF] - Então o Alberto Carneiro apresentou ideias nesse Encontro. Lecionara antes com ideias ainda articuladas então com o professor Alexandre Alves Costa. Trazia também provavelmente do seu estágio como bolseiro em Londres conceitos e princípios da “Landscape” e “Body” arte etc. [DT] - Próximo disso, mas era mais ou menos à volta da capacidade de criar, nos alunos, a exacerbação da sensibilidade./ Eu tenho muita dificuldade em falar dos artistas que trabalhavam connosco, especialmente os professores de Desenho, sempre muito autónomos quanto às ideias sobre didáctica. O pintor António Quadros também era outra personalidade desse mundo, aparentemente mais próximo do Alberto Carneiro. O próprio Joaquim Vieira, mais estável na pragmática de ensinar a desenhar, revelava-se muito interveniente mas muito ortodoxo. Afirmava que os alunos têm de aprender a desenhar, desenhando. Isto pelo lado do Joaquim Vieira. Todos os professores de desenho fizeram as suas apresentações, defendendo as suas teorias sobre como se devia ensinar arquitectura. [GF] - Provinha das artes e os outros da arquitectura? [DT] - Eles eram das artes. [GF] - Quais eram as posturas que surgiram neste encontro sobre o ensino, na altura em que avançava uma Comissão Instaladora. [DT] - A Comissão Instaladora apresentou o seu plano e as ideias que lhe estavam subjacentes. [GF] -A Comissão integrava o professor Alexandre Alves Costa e você. E na Direcção não sei se permaneceu o Manuel Correia Fernandes./ Curiosamente, nos anos 80 o professor Alexandre Alves Costa protagonizaria como director da FAUP, o Manuel Correia Fernandes fá-lo-ia nos anos 90, e o Domingos fá-lo-ia na transição dos anos 90 para os anos 2000. [DT] - A Comissão Instaladora cumpriu o seu mandato e seguiu-se o processo normal de eleições para os órgãos de gestão. [GF] - A 2ª direcção depois pode ter criado alguma situação em redor da anterior. [DT] - Dessas divergências, se existiram, não me apercebi. [GF] - Retomemos estão o Encontro sobre o ensino de 1983. Quais foram os posicionamentos apresentados quanto ao ensino? Se ocorrera um “consenso” na década anterior, depois cada um foi vender o seu “peixe? Só do lado da arte sobressaía uma posição, ou houve também posições distintas entre os arquitectos? [DT] - Repara, a Comissão instaladora apresentou um quadro geral sobre o ensino da arquitectura e a sua tradução no Plano de Estudos que acabou por ser aprovado. De entre os principais discordantes, lembro o José Pulido Valente, que já se tinha afastado das nossas posições. [GF] - Mas havia uma proposta, ou era para as pessoas apresentarem posições? / A Comissão Instaladora levava uma proposta. [DT] - Como disse, a proposta era o Plano de estudos. A discussão estava aberta, porque era o momento de não considerar o plano fechado. [GF] - Vocês lançaram qual a ideia a discutir no encontro? [DT] - A proposta apresentada dava continuação a tudo o que tinha sido desenvolvido a partir das Bases gerais e, nomeadamente, os esquemas de conteúdos nas áreas de projecto, desenho e cultura arquitectónica. Um tema controverso foi o da possibilidade de especialização no ano final do curso, com três variantes opcionais. [GF] - Discussões na questão da especialização no final do curso com 3 variantes opcionais. / O esquema de funcionamento do curso, tinha então sido experimentado a partir das Bases gerais, isto é, entre 1976 e 1981/82. [DT] - Essas experiências não foram interrompidas. O que apresentávamos era uma continuação assente num princípio muito claro. Estávamos a transferir o património pedagógico da arquitectura da Escola de Belas Artes para a Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto. Com todas as consequências que isso poderia acarretar. Alguns colegas estavam convencidos que todo o curso se alteraria com a entrada na Universidade. Ainda estava fresca a memória da Reforma de 57. [GF] - Alguns estavam receosos que afectasse a pedagogia do curso de arquitectura como tinha sido até aí… com a passagem para uma Faculdade integrada na Universidade. [DT] - E passava a ser um curso de engenharia. Isto era claramente declarado como medo. “Vocês vão ser comidos pelos engenheiros”. [GF] - Seria por isso que alguns temiam entrar na Universidade. [DT] - O argumento era simples e claro, mas nós não estávamos disponíveis para ceder nesse ponto. Nessa sessão o debate andou muito à volta destas questões, portanto, seria a confirmação, ou se quisermos, o ajuste em continuidade do que vinha sendo preparado a partir das Bases gerais 1976/77. Começou nesse ano lectivo e foi-se praticando durante os anos seguintes, com ajustes pontuais. Resumindo, era este, também, o meu discurso: transportar para a Universidade o património pedagógico da Escola de Belas Artes. [GF] - O Domingos diz: “transportar para a Universidade o património pedagógico da Escola de Belas artes”. Vocês tinham uma comissão, independente, e não temiam o plano de ir para a Universidade. Mas parte do corpo docente ainda expressava receio. [DT] - Não era a maioria. Os que contestavam, faziam-no nessa base. Já citei o José Pulido Valente e o Arnaldo Araújo. Havia outros com certeza, mas recordo as principais figuras. [GF] - Refere o José Pulido Valente que era assistente. E o Arnaldo Araújo que, como aludiu antes, tinha uma posição teórica convicta sobre o que devia ser o ensino da arquitectura no que tange à sua relação com as artes. [DT] - No que se refere ao José Pulido, era para mim uma posição mais abstracta. Nunca se percebe muito bem o que ele quer e o que ele diz, mas no fundo invocava o argumento de que os engenheiros tomavam conta do curso. [GF] - Disse há pouco: “Os engenheiros vão-vos comer”. [DT] - O encontro foi muito à volta disto. Se não aparecessem os artistas com as suas idiossincrasias especiais, a fazer também comunicações sobre o ensino do desenho, teria sido um debate muito limitado. [GF] - Mas havia mais alguma posição, para além da oficial, da Comissão que despoletava este encontro? Algum posicionamento de resistência, ou como aludiu, contestatário? [DT] - Não tenho isso como muito perceptível. A maioria dos colegas estava mais na expectativa do que em alguma convicção contrária. Houve intervenções interessantes, mas não em direcção contrária. [GF] - Eu imaginava este encontro de pessoas da arquitectura, como compreendendo dezena de pessoas com as suas sensibilidades. [DT] - Não diria uma dezena, mas quase todo o corpo docente de arquitectura. E nem todas estavam dispostas a falar. [GF] - Mas quem falou ou falava? [DT] - Os que quiseram, naturalmente. Mas não foram muitos a explanar ideias sobre o assunto. [GF] - Também acho curioso que isto coincide com a vossa “viagem” a Lisboa (e com o contexto de uma exposição alternativa). A exposição dos arquitectos do Porto em reacção à exposição “Depois do modernismo” também de 1983. [DT] - Janeiro de 1983. [GF] - Podia explicar a reacção do Porto? Este quadro que tem aqui na parede do seu atelier, foi uma das coisas que esteve lá? Ou? [DT] - Não. Isto são já materiais da exposição “11 arquitectos do Porto”. [GF] - A “11 arquitectos do Porto” na Árvore. [DT] - Sim. Para essa exposição em Lisboa, os organizadores convidaram 7 arquitectos do Porto. Tratava-se da parte da exposição sobre arquitectura pós-moderna, que aliás era apenas uma parte da exposição de pós-modernismo. [GF] - Essa parte eu sei, sobre as artes, havendo uma secção que tinha os arquitectos./ Quiçá ressoando um pouco o que tinha acontecido em Veneza… mas em Lisboa com casinhas, digamos assim. E vocês recusam-se a embarcar simplesmente… E fazem um manifesto - o Domingos, o Sérgio Fernandez, o Álvaro Siza, o Alexandre Alves Costa, etc. [DT] - Eu, o Alexandre, o Siza, o Sérgio, e ainda o Adalberto e o Eduardo. [GF] - Assinam todos o manifesto, de “resposta”. [DT] - Aquilo não foi uma carta, nem um manifesto. Foram painéis expostos, cada um com uma fotografia e a respectiva legenda. [GF] - Sim sei, são umas quantas fotografias, que fazem a história da arquitectura portuguesa. Os arquitectos do Porto respondem ao convite para participar na exposição “Depois do Modernismo” com um texto, que integra os painéis em vez de desenhos. [DT] - Eram painéis de fotografias das aulas sobre arquitectura contemporânea em Portugal. Imagina que o primeiro painel-fotografia era o Hotel Palace, ao lado da estação do Rossio em Lisboa, de José Luís Monteiro. [GF] - Sim. [DT] - Imagina a história da arquitectura portuguesa a partir José Luís Monteiro e acabar no bairro de Caxinas de Álvaro Siza. Em sequência as fotografias faziam uma leitura da arquitectura que se vinha produzindo em Portugal no século xx, em que cada fotografia tinha uma legenda. O texto que tu conheces são as legendas das fotografias. [GF] - Claro, e vocês reuniram-se para escrever o texto. [DT] - Sim. [GF] - Mas depois foi fragmentado em legendas, ou como é que foi? Foi a partir do texto, e depois começaram a compor as imagens e as respectivas legendas para elas. [DT] - Reunimos, concordamos e passamos à concretização. [GF] - Foi coisa que demorou algumas noitadas. [DT] - Foi mais de uma noite. Foi à noite, em casa do Alexandre. Talvez umas três ou quatro noites. É muito difícil escrever em grupo, quando são várias pessoas a escrever é dificílimo. Eu lembro que aquilo foi uma operação intensa. [GF] - Mas o texto é um A4 e meio, se se compilar as legendas todas juntas. Penso que isso apareceu mais recentemente no “Jornal dos arquitectos”? [DT] - Não é um texto comprido. [GF] - Simultaneamente ao pensar na selecção das imagens a usar. [DT] - Discutimos a modalidade de resposta, demos todos sugestões, eliminamos, acrescentamos, na procura de uma síntese perceptível da história da arquitectura em Portugal no século XX. E combinava-se alguma distribuição de tarefas para a noite seguinte. Eu faço isto, tu fazes aquilo, e na sessão seguinte lá nos desentendíamos outra vez. [GF] - Para responder ao convite. [DT] - Lembro-me que levava coisas escritas anotadas das conversas para poder acelerar. Faz muita impressão estar na reunião toda a discutir, e não surgir um texto, como por magia. [GF] - E depois penso que há outra exposição, em 1984 e no Porto, também com arquitectos portuenses. Esta não tem alguma relação com a anterior e…? [DT] - Houve uma exposição na Árvore depois deste episódio. Para nós, os mesmos que tinham sido convidados, mas agora 11. Pensamos uma resposta que fosse lida como alternativa. Fizeram a expressão na Árvore que diz: Onze arquitectos do Porto. [GF] - Já com projectos? Dispostos em painéis. [DT] - A minha participação foram estes três painéis. Cada arquitecto apresentava um projecto em três painéis desenhados. Foi o Armando Alves que montou o conjunto./ Foi na Árvore, uma associação cultural e éramos todos sócios, suponho. [GF] - A associação Árvore é ali, atrás do Palácio da Justiça, aquele edifício que... Há relação desta com a escola homónima? [DT] - Acontece que havia uma relação. A direcção da cooperativa “Árvore, actividades artísticas” tinha, inicialmente, alguma coincidência com as direcções dos cursos artísticos, que passou a ser Árvore 1 Artes e Árvore 2 Arquitectura. Mas foi uma coisa muito rápida, depois passou a ter nomes próprios. [GF] - A associação constituía um ambiente cultural onde se expunha, sendo que dessa variadas pessoas fariam parte./ Não havia relativamente a isso qualquer incompatibilidade, pelo que percebo./ Avançando no tempo, virá a ser em 1986 que se publica o “Páginas brancas” com projectos de professor da escola do Porto. A primeira edição, e que resultou de uma iniciativa de estudantes. [DT] - Isso é outra coisa. Iniciativa autónoma de estudantes. [GF] - Em determinado momento haverá uma segunda “Páginas brancas”, também iniciativas de estudantes. [DT] - Foram sempre iniciativas de estudantes. [GF] - Já a comissão tinha término em meados dos anos 80./ Nos tempos que se seguiriam o Domingos continuaria com as suas aulas. Nessa altura, o Domingos integraria algum órgão. [DT] - A seguir dava aulas./ Em termos de direcções, não… Era membro do Conselho Científico e presidia ao Conselho Pedagógico, não sei se logo a seguir./ A Comissão Instaladora concluiu a sua tarefa com a publicação do Estatuto. [GF] - A Comissão deve ter tomado posse em 1983 ou 1984, e actua até 1987. [DT] - Como disse, a Comissão Instaladora tomou posse em Janeiro de 1983 e encerrou em 1987, não recordo a data, que deve ter sido publicada em Diário da República. [GF] - O Domingos esteve como director da Faculdade na transição dos anos 90 ou já nos anos 2000./ [DT] - Iniciei essa tarefa em 2000. Nunca construí essa história, nunca fiz o meu curriculum com esses detalhes. Às vezes aparece referenciado o ano, mas haverá documentos para refazer a história pessoal. [GF] - Por volta de 1988, protagonizava a direcção do professor Alexandre Alves Costa. [DT] - Sim, em 1988 já estava na direcção o Alexandre Alves Costa. [GF] - Tendo como vice-presidente o Sérgio Fernandez? O Sérgio, antes já tinha dado apoio ao professor Fernando Távora. [DT] - O Sérgio tinha sido com o Távora? Acho que não. A seguir à Comissão Instaladora ficou o Alexandre na direcção, com o Sérgio a vice-presidente. [GF] - Talvez, que ele entra nas Belas artes em 1974. [DT] - Nas Belas Artes, mas antes da comissão instaladora. Entra em 1974 e pode ter integrado alguma função ou comissão. [GF] - Atrás eu fazia referência já ao período em que na direcção da escola protagonizou o professor Alexandre Alves Costa. [DT] - Não recordo essa situação. /III. [GF] - Retomava agora também a outra personagem que atrás referia como tendo sucedido ao professor Alexandre Alves Costa como director… e que o fez no período antecedente ao em que o Domingos protagonizou na direcção. / Isto é, refiro-me ao professor Manuel Correia Fernandes./ Constituem as 3 personagens que - em subsequentes e específicos períodos -assumiram a direcção da escola. [DT] - O Alexandre trabalhou bastante. [GF] - O Alexandre Alves Costa envolveu-se, e trabalhou bastante em prole da escola. Chamou para junto de si outros, em quem tinha confiança. Como o caso do professor Sérgio Fernandez. [DT] - Esses beneficiaram do seu envolvimento. Mantiveram uma relação muito homogénea. Quer dizer, no fundo cada um tem a sua personalidade, ainda que as coisas nem sempre demonstrem a dependência constante dessa relação de amizade. [GF] - Atrás fiz referência ao professor Manuel Correia Fernandes. [DT] - E nesse sentido, por exemplo, eu senti que na altura o Manuel Correia Fernandes se afastou um pouco das posições do Alexandre. Mas o tempo, de um modo discreto, vai evidenciando diferenças, mesmo que não haja quebra de solidariedade. [GF] - Diz da direcção do professor Alexandre Alves Costa ou Sérgio Fernandez. Em que coisas, administrativas? [DT] - No fundo podem até ser coisas irrelevantes. Faz parte do sistema. É aquela história de que quem chega diz que está tudo mal. Também passei por essa situação quando dei lugar a quem me substituiu. [GF] - A expressão deve ser essa. Tipo: detalhes que tenham sido feitos de forma distinta./ Mas o Domingos quando chegou, também encontrou detalhes distintos feitos? [DT] - Não. Nunca tive essa preocupação de evidenciar contradições ou discordâncias com quem me antecedeu. Não quero dizer que alguma coisa não possa ter acontecido sem eu ter a percepção disso. [GF] - Não perdeu muito tempo com miudezas. [DT] - Mas sabemos que é comum procurar orientações distintas. Quem chega, para ser afirmar, tem tendência a desvalorizar quem estava antes, para poder marcar a sua própria posição. E, por vezes, nem são os próprios a provocar as situações./ Comigo aconteceu algo desagradável quando eu substituí o Manuel Correia Fernandes./ Ele cumpriu a sua parte, organizou a sua vida e não foi coisa que o preocupasse. No entanto houve uma pessoa que, talvez por lhe ser próxima, me hostilizou de um modo absolutamente agressivo. [GF] - Diz substituir. Eu lembro-me, como aluno, de ter estado numa reunião na Casa cor-de-rosa em que o professor Nuno Portas e o Domingos estavam. E eu tinha a ideia de que foi dali que o professor saiu como director. Eu devia estar como aluno, a representar qualquer coisa, mas não me recordo bem. E claramente alguém disse: “Vai ser o Domingos que vai tomar conta da escola”./ Eu era muito novo, e estava ali a assistir aquilo no meio dos professores. [DT] - Mas eu estava presente? [GF] - Estava. Lembro depois até de estarmos cá fora, e também o Nuno Portas. [DT] - Isso eu sei, conheço muito bem o Portas, há muitos anos. [GF] - E havia lá dentro 2 grupos de professores que ele, aparentemente, estaria a conciliar. Fiquei com a ideia que o professor estava a ser dos últimos a saber… [DT] - De que forma? [GF] - Eu era aluno, foi há muito anos… [DT] - Acontece que o Nuno Portas é um político. Apesar de, na época, ser ainda novo, era já uma pessoa de grande experiência e que gostava de dominar as situações. / Entrou para a Escola de Belas Artes e daí para a Faculdade, quando já tinha sido professor muito qualificado na arquitectura das Belas Artes em Lisboa, foi governante, investigador do LNEC, dez anos na direcção urbanística de Madrid. [GF] - Entrou para a Escola ainda no tempo do professor Fernando Távora, em meados anos 80. [DT] - Entrou ainda para a ESBAP em 1983. [GF] - Ele correspondia a uma linha de orientação intelectual, ou cultural... [DT] - Que não coincide com as leituras que se fazem da Escola do Porto. [GF] - Tinha um ênfase científico./ Uma vez contou-me já que tinha contactado, enquanto estudante, com os “design methods”./ Penso que o professor Álvaro Siza, ainda experimentou algo similar um ano cá, quando começou a dar projecto. Mas presumo que tenha abandonado essa experiência… [DT] - Não. Acontece que o Nuno Portas tinha tendência para tentar estabelecer condições para que as coisas corressem da maneira que ele considerasse favoráveis./ E como entendeu que eu iria, provavelmente, ser o substituto do Manuel Correia Fernandes, tratou de se colocar em posição para aproveitar possibilidades de orientação do trabalho no sentido das suas convicções. [GF] - O professor Nuno Portas estava no Conselho científico e continuou. Presumo que seja por se possuir uma boa relação entre científico e o executivo, etc. [DT] - Primeiro ponto. Nuno Portas chegou à Faculdade de Arquitectura com o objectivo de impor a ciência urbanística. Tinha as suas convicções, que nunca escondeu. Tinha os seus amigos, gente ligada a uma certa intelectualidade lisboeta, e formou grupo no Porto de interessados nessa orientação. [GF] - Tinha tido experiência urbanística ao longo de uma década em Madrid. E antes escrito o livro da “cidade” também. [DT] - Mas havia uma coisa que comandava, a vida do Portas: as mulheres. Um dia o Portas estabeleceu contacto com o Távora sobre a possibilidade vir para o Porto. [GF] - Sim veio para a escola, ouvi alguém dizer, defendido pelo Távora que estaria em Guimarães já? [DT] - Quando o Távora nos anunciou essa possibilidade, manifestamos todos o nosso acordo. [GF] - Bem, conversa sobre esses temas, comigo, foi mesmo só sobre uma sua relação. Acho que alguma relação próxima ao IIAS do Peter Eisenman talvez. [DT] - Agora era uma paixão no Porto, razão por que ele queria vir. Veio trazer alguma renovação ideológica à Escola do Porto, sem impor, mas defendendo um novo programa urbanístico fundado nas suas experiências. [GF] - Bem, comigo só falou da América do Sul. [DT] - Dessa não sei. Da paixão madrilena sei, porque estive em casa dela com ele, em Madrid. Parece dizer que o que comandou a vida de Nuno Portas não foram questões de ideologia, que sem dúvida tiveram importância, muito menos relacionadas com arquitectura. [GF] - Mas como profissional… [DT] - Como profissional, ele tinha uma forte tendência para valorizar as componentes científicas e a dimensão da vida colectiva em contexto urbano./ O que levou o Távora muitas vezes a dizer: “O problema de Nuno Portas é que não gosta de arquitectura”. [GF] - O professor Nuno Portas passou pela investigação no LNEC e pela habitação, pela historiografia da arquitectura moderna e pela crítica, pelo SAAL e pela política, e foi do meta-projecto até ao urbanismo… / Há pouco já fizemos referência, do ponto de vista académico, aquele concurso que o professor Portas integrou Lisboa. Começou inicialmente por ser um crítico de arquitectura, e chegou a ser um consultor, um urbanista, etc. [DT] - A questão é outra. Nuno Portas começou por ser crítico de cinema, não te esqueças. O sentido da avaliação crítica nas artes e na vida social constituíam o fundamento do seu pensamento filosófico. Não era um produtor ou o intelectual que toma conta dos problemas do universo. E como professor de arquitectura fez um esforço para fazer o melhor possível. Fui aluno dele quando era professor de Projecto de arquitectura. [GF] - Eu sei, quando esteve em Lisboa. [DT] - Tinha as suas qualidades e virtudes, não é isso que está em causa mas, no plano das ideias foi adepto de valorizar a dimensão experimental e os problemas suburbanos./ Por exemplo, entende que não são os arquitectos que fazem a cidade. Desenvolve a tese dos arruadores, isto é, são os tracejadores quem define as formas da cidade. E não tem nenhuma convicção sobre a capacidade da arquitectura para caracterizar o espaço urbano. [GF] - Como alunos usufruímos de excelentes aulas de urbanística. [DT] - Estou a simplificar, evidentemente, mas é a dominante que explica a maneira como o Portas funcionou dentro da Faculdade. [GF] - Por outro lado, também recordo muitas discussões do Plano de estudos em que se frequentemente discutia o peso das cadeiras do urbanismo. Tal encaixa dentro do plano até depois, à sua direcção. [DT] - A ideia foi deixar um território para Nuno Portas trabalhar, em benefício da riqueza do património cultural da escola. [GF] - A ideia foi ter o Nuno Portas no território urbano. [DT] - Para se concentrar nas matérias do território e deixar livre o espaço para os outros professores trabalharem, também, com o máximo de coerência./ Manter o programa estruturado que tínhamos para o desenvolvimento da formação em projecto de arquitectura, entregando o 5º ano ao Nuno Portas. [GF] - Na vossa altura, a urbanologia, também estava no 5º ano. [DT] - Pois é isso mesmo. [GF] - Já era a tradição. / Tive o Nuno Portas como professor. Penso que não só a uma teórica de urbanística, salvo erro do 3º ano, mas também a projecto-planeamento no 5º ano, penso que em co-regência com o professor Manuel Fernandes Sá. [DT] - Apoiávamos Nuno Portas nessa posição, que já tinha muito antes de eu estar na direcção da escola./ Naturalmente, o desenvolvimento das práticas de ensino na Faculdade viviam também dessa contradição, mantendo um grupo muito associado ao projecto urbano e ciências do planeamento. [GF] - Algumas pessoas associadas às disciplinas de desenho de projecto quiçá, por vezes, resistiam ao desejo de promoção do enfoque urbanístico dentro da escola. Presenciei esse tipo de discussão nos anos 90, enquanto monitor e depois docente. [DT] - E que sempre tentaram não perder o controle da formação em desenho de projecto arquitectónico, mesmo que reduzindo as problemáticas de inserção em território alargado. [GF] - “Território” tão pequeno quanto possível. [DT] - Que o Manuel Sá tratou de, mais ou menos, condicionar o quanto possível, para que Nuno Portas tivesse o seu próprio espaço para introduzir as problemáticas do território. [GF] - Mas também “território” que tinha potencial para ser mais amplo./ Por outro lado, havia o Mestrado. E trabalhos desenvolvidos no CEFA, etc./ Mas em que sentido refere “condicionar”? O Manuel Fernandes Sá é um grande urbanista. [DT] - Porque o Manuel Sá é um arquitecto que trabalha com forte presença da problemática urbanística. Às vezes é difícil de entender isto. [GF] - Eu fui aluno dos 2 juntos em co-regência, se bem me recordo./ Foi uma experiência muito interessante, em que me fizeram atender simultaneamente a distintos programas (no meu caso numa área incluso com indústria e comércio etc( privilegiando a capacidade estruturante do espaço público, etc./ Recordo-me do enunciado, que era muito interessante e inovador na altura. Tenho de o encontrar... [DT] - O Manuel de Sá é um arquitecto inteligente, brilhante mesmo, mas como pessoa é muito discreto. [GF] - Vê-se pelo desenho e humilde inteligência. [DT] - E como urbanista, trabalhou com muitos municípios, serviços e estruturas de planeamento. Teve uma actividade profissional muito associada à gestão urbana e a montagem de estruturas para a gestão urbana. Nestes casos, com atenção à concepção urbana. Mas percebia que o urbanismo é um passo do que nunca se realiza. [GF] - Projecto urbano e/ou planeamento estratégico? Muitas vezes é encontrar as estruturas de gestão e não propriamente desenhos congelados no tempo, que permitam absorver tomadas de decisão pontuais. [DT] - Esse é um pouco o ponto de vista do Manuel Sá e que o Portas apreciava, porque era suficientemente inteligente para perceber que o Manuel Sá tinha uma grande clareza nessa leitura. [GF] - O professor Nuno Portas, em determinado momento, discutiu muito os instrumentos de planeamento, do loteamento ao PDM, PU e PP, etc. Penso que terá dado contributos decisivos incluso para a legislação. Interessou-se ainda por esse planeamento de escala variável. Bem como pelo contributo que pode aportar o planeamento estratégico. Começa cada vez menos a falar em desenho e mais em estratégia etc, não é?/ Do ponto de vista práctico, depois de trabalhar na grande escala de Madrid, trabalhou como consultor da reabitação de Guimarães, como consultor para Vila nova de Gaia, e até no 1º plano da Expo 98./ Teoricamente é muito admirado, incluso em Espanha, Itália, etc. [DT] - E fez notáveis conferências, como uma em Braga a que muitos assistimos e foi realmente um acontecimento. Vinha de Madrid e trazia o princípio estratégico da NPU, «nova política urbana». [GF] - Não só fazer planos, mas ter estratégias reais. [DT] - Para o desenvolvimento de uma determinada área, que tivesse controle real para uma política urbana. [GF] - E atender a uma sociedade com direito à e da cidade. [DT] - Exactamente. Era acompanhar o acontecimento, para gerir. Gerir o quotidiano. [GF] - Gerindo a realidade que ia acontecendo. [DT] - Vai-se observando, registando, gerindo, corrigindo. Isto era a nova política urbana. E como Portas falava bem, com uma grande clareza no discurso, entusiasmou o pessoal, como não podes imaginar. [GF] - Sim, grande clareza teórico-critica, concorde-se ou não. [DT] - E isso que tu assististe é um pouco o resultado dessa conjugação entre uma linha político-filosófica, se quiseres, e a maneira muito prática como o Manuel Sá geria as situações. [GF] - Isso é muito claro, que o professor Manuel Fernandes Sá desenhava com muito inteligência, e contemporaneidade por exemplo no caso do PDM do Porto. [DT] - Só que o Manuel Sá tem uma coisa que ultrapassa muito a posição de referência de Nuno Portas. É que o Manuel Sá tem a convicção de que, no fim do estudo está a arquitectura como a concepção global do espaço. Um nível que ao Nuno Portas já não interessa./ Tu foste aluno do 5º ano? [GF] - Dos 2 juntos! [DT] - E puseram-te a fazer um trabalho, com certeza que, como habitualmente, para o Manuel Sá. [GF] - Com várias escalas ao mesmo tempo. [DT] – Sim, com várias escalas ao mesmo tempo, em que se insistia: na dimensão do inquérito, na compreensão do espaço global sob uma estratégia, na caracterização das situações particulares, no desenho específico para a parcela especial, como sendo um factor dinamizador daquele sector e do outro, e dos outros. Esta é a visão do Manuel Sá. Enquanto propostas é o mais, a estratégia é o só. [GF] - O Nuno Portas falava também muito em pensamento estratégico. / IV. [GF] - Mas Domingos, retomando um assunto que uma vez falámos. Para além da Comissão de instalação da FAUP, a seguir também houve a Comissão de acompanhamento do projecto e da obra. [DT] - Sim. [GF] - E aí estamos em meados dos anos 80. [DT] - A comissão preparou o programa para o novo edifício da Faculdade, a construir na Quinta da Póvoa junto à via panorâmica, durante o ano de 1983. Depois acompanhou os trabalhos de projecto e a obra até ao encerramento da Comissão Instaladora em 1987. [GF] - O Domingos falara no processo de desenho, bem como no conceito do modelo espacial adoptado pelo arquitecto Álvaro Siza. [DT] - Foi um trabalho de acompanhamento à luz do programa definido pela comissão e aos limites do orçamento condicionado pelo reitor. [GF] - Tinham toda a confiança nele, mas dúvidas relativamente ao modelo pedagógico imposto. Portanto passou-se de um grande salão para uma organização em torres com pequenos ateliers? [DT] - O que estava em causa, fundamentalmente, era a convicção, ou se quisermos a estratégia, que Siza assume nos seus trabalhos, no sentido de produzir uma obra perene. E produzi-la de forma segura, tão garantida quanto possível. O que implica, realmente, a consideração de muitos aspectos particulares que são condicionadores do seu desenvolvimento futuro. Ou seja, o que vulgarmente se designa na literatura, como na arquitectura, por “obra aberta”. Isto é, identificação à partida de elementos geradores de circunstâncias possíveis e alternativas quanto ao uso futuro da obra. Para Álvaro Siza a obra de artista deve preservar o seu carácter definitivo./ Será isso legítimo? [GF] - A criação desse modelo. [DT] - O modelo, eu quase diria conventual, porque o Távora falava muito dos conventos, era a proposta que nós, arquitectos na comissão de acompanhamento, queríamos impor. Tínhamos a experiência do pavilhão de arquitectura da Escola de Belas Artes e todos conhecíamos exemplos de espaços didácticos para o ensino de projecto arquitectónico em ambiente de trabalho colectivo, integrando estudantes de vários níveis de desenvolvimento formativo. [GF] - Ah. [DT] - Falávamos de um claustro para o universo aberto da prática de projecto./ Tentávamos a criação de um grande espaço homogéneo, um espaço único total, onde se organiza toda a vivência, complementado por áreas adjacentes para aulas de natureza distinta. [GF] - Toda a vivência do ensino? [DT] - Neste caso do ensino de projecto. Lembro que, alguns anos depois, ainda marcado por esse tipo de ideias, eu, o José Quintão e o Lúcio Parente, ficámos com o encargo de um projecto realizado no Centro de Estudos da FAUP. [GF] - O seu projecto para a Faculdade de Medicina Dentária. [DT] - Esse projecto. Desenvolvemos essa ideia do espaço didáctico colectivo como um grande salão. Está lá a funcionar, o edifício construído. [GF] - Lá no pólo universitário da Asprela. [DT] - Combinámos, antes de decidir o que iria ser a nossa solução para uma escola de dentistas, visitar por essa europa fora, outras escolas de medicina dentária. Estivemos em Lisboa a ver a solução recente na cidade universitária. Achamos que não nos servia./ Conversamos com os professores, o director da escola era o Dr. Fernando Peres, um médico corredor de automóveis. Dizia-nos que em Ourense, havia uma escola nova impecável e outra em Copenhaga que era do melhor que havia no mundo. Acabámos por fazer um roteiro para ver algumas escolas da especialidade. [GF] - Como é que elas se organizavam, as particularidades técnicas, como funcionavam, etc. [DT] - E começamos por ir a Ourense para ter uma entrevista com o director da escola. Começamos por dar uma volta na cidade e entramos no edifício do mercado, que é sempre um equipamento esclarecedor do ambiente local. Era um daqueles mercados fechados, coberto, de planta quadrada e organização em cruz. [GF] - Estava a pensar no mercado Barcelona, que é igual. Residi em Barcelona aquando da frequência do meu mestrado. [DT] - Uma galeria periférica e uma ponte intermédia, que passando por cima, a eixo, liga as duas partes da galeria, parecendo o nosso mercado do Bolhão. Para encurtar os caminhos da Galeria, era essa ponte envidraçada ao meio de onde se observava tudo o que se passava cá em baixo. [GF] - Pois, porque é um mercado aberto, com uma galeria tipo Bolhão. [DT] - Dos primeiros contactos que fizemos com os professores de medicina dentária, percebemos que aqui a razão principal do ensino para os médicos dentistas é o estabelecimento de umas boxes. Onde existe um professor dentista e um assistente, em geral estudante terminal que vai ser o futuro dentista. [GF] - Portanto... [DT] - Ficámos encantados com aquela solução. [GF] - O projecto dessa Faculdade é posterior à FAUP. [DT] - É posterior. [GF] - E falava a propósito da ideia de um “grande salão”. [DT] - A ideia do grande salão do ensino tinha sido uma perda, na consideração dos modos de realizar a obra da nova Faculdade de Arquitectura. [GF] - Mas o Domingos, o Alexandre Alves Costa e o Fernando Távora, no início também concordavam com a proposta do arquitecto Álvaro Siza. [DT] - Estávamos de acordo que devia ser um grande espaço, ao modo de um claustro. [GF] - Tipo uma Ala magna. [DT] - Ala magna para práticas, sem palco de comando./ E, na altura da formulação do programa, eu tinha ido aos Estados Unidos ver escolas de arquitectura. Tinha estado em Harvard, um grande espaço de plataformas sucessivas em degraus, onde todos se podiam ver, mas de contactos limitados. [GF] - Ou Illinois, de Chicago pelo Mies van der Rohe… [DT] - Um espaço grande com biombos separadores. Mas muito descaracterizado. Uma obra muito interessante, onde se percebe a solidez de concepção, com o rigoroso detalhe construtivo em ferro e vidro, mas não dá para interpretar como espaço único de projecto. Como em Harvard, fez-me muita impressão porque é também um espaço aberto, mas a funcionar sectorizado. [GF] - Ali. [DT] - Em Harvard os estudantes tomam a sua galeria, tendo vista apenas para as de baixo. Está um bocadinho mais hierarquizado. É uma solução relativamente ambígua. Mantém alguma autonomia em cada uma das unidades de ensino. Apesar de estarem todos no mesmo espaço, cada aluno só se mexe na parcela do seu grupo de ano. [GF] - Relativamente à primeira fase, relacionada com a construção do pavilhão Carlos Ramos, vocês tiveram alguma influência? [DT] - Tivemos influência na iniciativa. [GF] - Antecede a fase do grande projecto. [DT] - O reitor disponibilizou uma verba para adquirir um pré-fabricado ligeiro, para funcionar como provisório até que a obra nova se concluísse. [GF] - Como é que se punha o curso de arquitectura a funcionar simultaneamente à construção de um edifício que demorou anos? [DT] - Começámos pela recuperação da Casa cor-de-rosa, dos anexos no jardim e pensamos nesse primeiro pavilhão. [GF] - Fez-se a adaptação da Casa cor-de-rosa e das cavalariças. [DT] - Eram as antigas cocheiras. Chamam-lhe cavalariças mas ali não era o lugar dos cavalos. Era a garagem dos coches, as cocheiras, que é uma coisa diferente. [GF] - Onde se também deram as primeiras aulas. [DT] - Como queríamos que fosse montado um pavilhão, uma coisa qualquer que servisse transitoriamente, o reitor mandou dizer que dispúnhamos de uma verba para comprar um pavilhão pré-fabricado. [GF] - E surgiu a ideia de fazer o pavilhão Carlos Ramos em vez de um pré-fabricado transitório. [DT] - E para mim foi sempre claro que com o mesmo dinheiro se fazia uma obra definitiva. Todos estivemos de acordo. Optamos, à boa maneira portuguesa, por um provisório definitivo. E encarregamos o Siza, que já era responsável por todo o projecto das adaptações do existente, incluindo o jardim, para desenhar o pavilhão. [GF] - O arquitecto Álvaro Siza já estava a tratar da casa da Quinta da Póvoa, etc. [DT] - Já estava a tratar da recuperação da casa, das cocheiras e do jardim. [GF] - E já havia desenhos para o resto? [DT] - Quiçá era tudo e o projecto geral da nova Faculdade. A primeira operação foi imediatamente adaptar a casa para poder dar aulas e continuar a fixar o programa, estabelecer critérios, definir os primeiros estudos e por aí fora. Siza era o nosso arquitecto. [GF] - Pensou em posicionar o pavilhão lá, no fundo do terreno… [DT] - Com a condição de ser um pré-fabricado, mas feito com tijolo e vidraça para depois ficar lá definitivamente. Conversa nossa, tendo em conta o orçamento. / Não tivemos dúvidas. E o Jardim, peça impecável, era fundamental. [GF] - Pois, o jardim. [DT] - Pusemos como condição encostar o pavilhão ao fundo junto ao muro para não estragar o Jardim. [GF] - Aquele muro que está na separação da propriedade. [DT] - O muro alto, a norte, na separação com a auto-estrada. Siza já havia estudado muito bem a casa e sua envolvente por causa da posição nova do portão que antes existia nesse muro ao lado da Rua do Gólgota. O actual portão de entrada para a Casa cor-de-rosa foi transferido quando se construíram os acessos à Ponte da Arrábida. Antes estava no fim do carreiro, onde agora é muro. Entre aqueles eucaliptos que faziam parte do cenário da antiga entrada da casa. [GF] - E quando valorizou tal percurso axial? [DT] - Ao apanhar a casa assim pelo ângulo, com uma visibilidade lateral, introduziu o pequeno pátio. Porque estudou o local com muita atenção, Siza assustou-se com a nossa proposta. Vai escacar todo o sistema. E rapidamente, fez uma contraproposta, que é o que lá está. Retirou o empastamento da perspectiva de fundo, e permitiu garantir um escoamento visual para as laterais, o que torna a presença da construção muito mais subtil. [GF] - A ideia era um pavilhão, e ele dobra a sua forma. [DT] - Constrói com a mesma área, dobra a forma e coloca-a numa posição muito mais delicada. [GF] - Inclusivamente encaixa as árvores no meio do pavilhão. [DT] - É o princípio da autoridade de quem estuda e sabe resolver um problema de arquitectura, impondo-se ao próprio programa. O programa estava lá: a mesma área, as mesmas salas, a quantidade de alunos necessários. A diferença é a dobra da barra. [GF] - Dobrou o volume da barra e resolveu o problema. [DT] - Qualquer de nós tinha respeito pelas soluções arquitectónicas que Siza inventava. Ele domina muito bem os processos de estudo do território onde vai intervir. [GF] - Não deixa de tudo elevar, em grande medida e valorização. Também o que aconteceu nas Belas artes, se pensarmos nas intervenções iniciais e nos pavilhões. [DT] - Andar, observar e encontrar as coisas pelo caminho. [GF] - Só que temos aí linguagens diferentes nos pavilhões e, aqui constitui-se uma obra una. [DT] - Siza faria a sua obra, não faria as obras dos outros. [GF] - E depois como é que se evoluiu para a organização das torres? / No outro dia dizia-me que tal processo arrastou-se no tempo. O pavilhão é de meados de 1987, mas as obras, já começaram nos anos 90. [DT] - O pavilhão Carlos Ramos foi inaugurado em Outubro de 1987. O projecto geral de toscos estava entregue em 1989 e a obra estava em construção em 1991. Lembro que em 1992 se terá concluído a obra de toscos, toda em betão armado. [GF] - Aquando da direcção do professor Alexandre Alves Costa. [DT] - No tempo da direcção do Alexandre Alves Costa. Depois aconteceu a crise dos empreiteiros. [GF] - Pois, chamou “problemas” com as obras. [DT] - A primeira questão foi a seguinte: nós queríamos o grande salão central e a primeira solução proposta pelo Siza era o grande bloco em forma de cubo, pousado sobre a pendente da encosta, na margem direita do rio. Mas ao introduzir outros factores relacionados com a observação da envolvente, achou que um bloco ali não fazia sentido, era uma violência e tinha de partir tudo. [GF] - O professor Álvaro Siza fragmenta o grande volume em vários, presumo que por razões que incluem o perfil que se percepciona desde Vila Nova de Gaia. [DT] - Surge socialmente sustentado por outras situações que ele conhecia. Estou a lembrar, sem fazer ideia se isso teve alguma influência no caso dele, no Museu Louisiana em Copenhaga, de Vilhelm Wohlert. Não sei se tens essa obra presente. Essa é uma arquitectura extraordinária. [GF] - A ideia de um percurso que vai ligar os edifícios. [DT] - É uma solução muito sensível quanto à composição arquitectónica, porque domina o território com pouca construção visível e marca a totalidade, numa área paisagisticamente muito sensível. Eu não sei se foi isto. Sei que Siza apontou para a ocupação do terreno em extensão, somando a diversidade de parcelas na configuração da escarpa. [GF] - Em determinado momento o projecto seguiu por aí, agarrando o terreno, como um animal contorcido. [DT] - O Siza apareceu depois com a solução alternativa, que é mais ou menos a versão final adoptada. [GF] - Com o corpo ao fundo, ligado num percurso alongado, com início na entrada numa das extremidades, as torres, e o edifício administrativo, a sala de exposições e o prolongamento até à biblioteca. [DT] - É o chamado corpo ligado anteposto aos blocos da frente. [GF] - As torres constituem-se como empilhamento de salas dimensionadas como pequenos ateliers. [DT] - Mas com a particularidade de tudo se articular ao nível inferior. [GF] - O percurso enterrado que tudo une numa verdadeira “learning street”. [DT] - E a comissão achou muito bem. Aceitou, naturalmente, mas ficamos um bocado incomodados com a inversão do conceito de salas de trabalho fechadas e bloqueadas. Desapareceu o grande salão único, mas aceitámos. Surgiu, então, um problema complicado. A reitoria fixou programa total de 8.000 m² para a construção e a versão estudada ia já nos 10.000 m². O reitor pôs os pés à parede e disse, nem pensar. Era a questão do orçamento limitado para a obra. [GF] - O abandono do conceito de volume compacto em prole de uma nova disposição capaz de agarrar o terreno. O que disparou a área elencada no programa prévio. [DT] - O Reitor fazia as contas a partir do custo do metro quadrado e não autorizou nem mais um metro para além do que estava no programa. Eram problemas de gestão orçamental. Siza entrou em pânico, a pensar que tinha de deitar fora todo o trabalho feito para aquela solução. Távora aconselhou: Se o reitor exige redução das áreas, você resolve isso bem. Tem aí quatro torres, ou quatro blocos de salas. Quanto mede cada bloco? 10m de largura, 12 ou 15 de comprido. Basta tirar um metro à largura e ao comprimento. É muito, porque somando o número de andares, reduz os 2.000 m² que tem a mais. / Siza reagiu, invocou a proporção entre cheios e vazios, invocou a medida de referência na tradição da construção urbana, repugnava-lhe o afastamento excessivo entre prédios. Foi pensar no assunto e na sessão seguinte veio com esta solução. [GF] - Veio com a solução de tirar uma torre, onde ficou a “piscina”! [DT] - Não foi tirar, foi manter o afastamento entre os blocos sem alterar a extensão total, libertando aquele espaço onde está o arranque de um quinto bloco, que foi baptizado de piscina. / Cortou na largura, aproximou o necessário entre os blocos e deixou um espaço vazio. Justificou que seria a reserva para a ampliação futura da Faculdade. [GF] - Diz que o propósito do vazio seria para prever qualquer futura ampliação. [DT] - A chamada quinta torre. É evidente que são jogos discursivos para se fazer o que o arquitecto pretendia. [GF] - E depois a construção, faseadamente. [DT] - A construção foi uma componente interessante. O reitor entendeu ser uma boa solução separar o processo por empreitadas de especialidade. A execução foi dividida em 2 grandes operações. Enquanto se executava a obra de toscos (a totalidade em betão armado), que permitia começar a obra muito mais cedo, desenvolviam-se os projectos e os concursos de acabamentos, que apareciam numa segunda fase. A primeira fase só considerou o concurso para a obra de pedreiro. [GF] - A 1ª fase, no caso, era quase só betão armado. [DT] - Incluía movimento de terras, toda a estrutura e infra-estruturas enterradas, portanto todo o betão armado. Correu bem, esta parte da obra. Chegou ao fim e seguiram-se os concursos para a segunda fase. [GF] - A 2ª fase, de acabamentos, já foi mais complexa. [DT] - Enquanto a 1ª fase foi um sucesso. O Luís Ferreira Alves realizou um documento geral, fotografando tudo para registar a visão geral do edifício. [GF] - A sua formulação e visão do edifício em betão armado. Onde estará esse levantamento fotográfico feito pelo Luís Ferreira Alves? [DT] - Talvez no arquivo da Faculdade. Foi na segunda fase que surgiu o grande drama. Não me lembro quem eram os empreiteiros. Nessa fase já não funcionava a comissão de acompanhamento do projecto. [GF] - A data deve ser? [DT] - Não tenho presente. Era a direcção que acompanhava o processo. Aconteceu que a obra avançou, mas foi o empreiteiro da electricidade que faliu. [GF] - O problema adveio da falência do empreiteiro de uma só especialidade? [DT] - Toda a obra começou a ficar muito presa, umas coisas implicando a paralisação das outras. Enquanto a electricidade não se resolvia, era difícil acabar com os acabamentos de trolha, incluindo os estucadores e os outros revestimentos. Era preciso instalar as canalizações e, sem elas, praticamente não se podia andar. O Siza ainda tentou o projecto de puxar toda a canalização de águas para circuitos visíveis, porque não interferia com o condicionamento da parte da trolharia. [GF] - Deve ter sido então também disso que decorrem os tubos à vista, etc. [DT] - Para além da decisão de critérios de facilidade, mas também basicamente tentar superar algumas dificuldades na articulação entre os diferentes intervenientes, os subempreiteiros. Na primeira fase o empreiteiro geral, a empresa galega Construtora San José, portou-se muito bem. Na segunda fase, com a entrada de empreitadas independentes para algumas especialidades, a situação complicou-se. Nesses negócios de empreitadas há muita jogada financeira, relações complexas entre empresas de diferentes capacidades organizativas e os subempreiteiros começaram a cair. Que me lembre foi o da electricidade. Barrou a obra durante anos nos tribunais. Situação que complicou a arranque de uso da nova Faculdade, mas preocupou a própria reitoria, que geria o processo, numa situação insustentável. Afectava os contractos com o empreiteiro geral que, naturalmente, não assumia a responsabilidade. Mas como o empreiteiro de especialidade declarou falência, surgiu o conflito jurídico. A escola ficou a assistir à cena, numa situação complicada. [GF] - Quanto tempo demorou esse impasse pelo conflito jurídico? [DT] - Pareceram anos. A minha sensação é que não deve ter sido mais que um ano ou dois. Mas a verdade é que foram impasses complicados. Só quando a obra se concluiu foi possível pôr as aulas ao funcionar, a escola instalou-se. [GF] - Eu lembro-me vagamente. [DT] - Tu já devias ter entrado, pelo menos andaste na Casa cor-de-rosa, ou tiveste aulas já na parte final da obra. [GF] - O 1º ano ainda era quase tudo lá em cima, acho eu. Mas depois o 2º ano já foi cá em baixo. / Os auditórios e o espaço administrativos terão ficado prontos ao mesmo tempo que as salas de aulas? [DT] - Não tenho essa certeza. [GF] - Foi durante a direcção do professor Manuel Correia Fernandes. [DT] - Toda essa fase crítica foi no tempo de Correia Fernandes. [GF] - E no que tange ao número de alunos, quando é que tal se terá exponenciado? [DT] - O aumento foi uma coisa absolutamente descontrolada. Nós não podíamos controlar esse processo a não ser por cálculo a longo prazo. [GF] - Havia quem dissesse que constituiu uma estratégia para obter mais dinheiro com as propinas, ou para… [DT] - Não. Isso era a teoria do Zé Grade, que queria mais alunos para aumentar as receitas com o dinheiro das propinas. [GF] - O escultor José Grade era o vice-presidente do professor Manuel Correia Fernandes./ Chegou a ser da sua direcção. [DT] - Foi vice nos dois primeiros anos da minha direcção. [GF] - Então foram três os vicedirectores, porque ao José Grade seguiu-se o Rui Braz e depois o António Madureira./ Foram 2 mandatos, compreendendo menos que oito anos? [DT] - Não. Foram seis anos, mais quase um. [GF] - Quando o Domingos iniciou a direcção, qual era a quantidade de alunos? / E quais eram as experiências… por exemplo isto do Centro de estudos, etc. [DT] - Essas questões, quer a estratégia quanto ao número de alunos e modo como se organiza o sistema, passa tudo pelo Conselho Científico. É tudo discutido nesse âmbito. / O Conselho Pedagógico praticamente não interfere nessa matéria, mas como tem de dar parecer obrigatório, pode gerar alguma negociação. [GF] - O Domingos tinha assento no Conselho Científico, nesta fase. E também passou pelo Conselho Pedagógico. [DT] - Estive também muito tempo na direcção do pedagógico, já não lembro quanto, mas isso talvez não tenha importância. O Conselho Pedagógico do tempo da Anni Gunther fazia questão de afirmar a importância que tinha no contexto da gestão. [GF] - Sim, a professora Anni Gunther esteve muito tempo, incluso quando o professor Francisco Barata me convidou para montar a UC de “Teoria 1”. [DT] - No científico procurava-se não atender muito ao pedagógico. Por uma razão muito simples: o pedagógico valorizava muito a posição dos estudantes que o integravam. / Porque a representação dos estudantes determinava muitas decisões, ou pelo menos as orientações que preconizava ao nível de interesses estudantes. O científico considerava que muitas dessas posições eram circunstanciais, por muito legítimas que fossem. Circunstâncias de cada grupo, de cada geração que por ele passava. [GF] - O Conselho Pedagógico tinha valor consultivo neles. [DT] - Tentávamos encontrar algum espaço de decisão para o Conselho Pedagógico. Questões de horários, acabar aulas mais cedo ou mais tarde e algumas outras coisas mais úteis e gerivéis. [GF] - As direcções antes e depois. Teve procedimento similar à sua? [DT] - Do antes eu não sei, mas como estava no científico onde a maior parte das coisas são discutidas, acompanhei. Por exemplo, a determinação do “numerus clausus” é uma responsabilidade do científico, assim como a distribuição de serviço docente. [GF] - O Conselho Científico é responsável por parte das decisões chave. [DT] - Qual é a componente importante. Qual é a parte da direcção que pesa? É a parte orçamental, por exemplo. [GF] - Quando se define a distribuição de serviço, analisando o corpo docente disponível. [DT] - Perceber quantos professores temos ou estão disponíveis. Depois pode-se definir alguma estratégia. [GF] - Por exemplo, abrir concursos, contratar convidados externos, definir dispensas de serviço de sabáticas, etc. [DT] - Há muitas coisas desse tipo. Que a Lei orienta, pois há um conjunto condicionamentos legais, mas muita decisão passa pelo Directivo. Quando dizendo respeito ao Científico, pode avançar ou não. Acontece o seguinte: [GF] - O cabimento orçamental é alvo de análise pela direcção, pelo Conselho Directivo. [DT] - As decisões do Conselho Científico, quando interferem com questões pedagógicas (o pedagógico não decide), terão de ser validadas pelo cabimento orçamental em processo de gestão. É dessa forma que a direcção pode interferir e interfere sempre, até estimulando. É um fenómeno estranho que caracteriza muito a nossa escola, mas está na linha de quem vem praticando no ensino superior, um esquema altamente fechado. Todos se protegem uns aos outros. E a introdução de corpos estranhos é algo que incomoda. [GF] - Porque altera o status e a relação de forças... Muitos que estão em posições de algum poder parecem por vezes estranhamente temer perder a sua importância. [DT] - Isso faz parte de toda a máquina organizacional do Estado. [GF] - Nós já fomos estatutariamente uma instituição pública, mas depois tornámo-nos numa fundação. [DT] - Nestes assuntos essa questão é de somenos. Uma das minhas batalhas, quando estava no Conselho Directivo, era fomentar a abertura de concursos para alargar o corpo docente. [GF] - E fomentar a entrada de gente nova que regenere a escola. [DT] - E não dar validade às tentativas de bloqueio, que eram muito frequentes. [GF] - Agilizar. [DT] - Era a estratégia que eu tentava seguir, coisa que foi muito difícil. [GF] - Agora lembrei-me também de outra coisa, do Domingos não ter durante algum tempo apoio de assistentes, dando aulas sozinho. [DT] - Não. Mesmo nas disciplinas com aulas teóricas ia tendo assistentes para as aulas práticas e dava-me bem com eles. [GF] - Aconteceu no meu 3º ano de estudante. / Mas avançando, a imagem de guardo do Domingos relativamente a um período posterior é uma agilidade de despacho. De em conversas no bar, logo permitir iniciativas, por exemplo de algumas que eu propus. Desde que não envolvesse gastos. / Penso que tal agilidade, era reconhecida até pelos funcionários. / Mas há outra coisa que me recordo. Foi quando teve um problema de doença. E do Domingos, ainda afectado com uma paralisia (apenas iniciara a fisioterapia), já estar na escola como se nada tivesse acontecido. As pessoas estavam mais preocupadas que o Domingos, por já estar a retomar o trabalho. / Perdeu-se algo no que concerne a essa flexibilidade e proximidade com que geria a faculdade. / Relativamente ao seu período de direcção, que questões e desafios é que o Domingos recorda dos seus e mandatos? O executivo é um órgão distinto do científico e pedagógico - compete-lhe a gestão de manter a casa a funcionar. [DT] - De acordo com o que estavas a dizer, aconteceu que houve uma transformação da composição do corpo docente ao longo do tempo. Por essa altura começou o aumento do número de alunos. Era uma situação que nós não controlávamos. Tínhamos um “numerus clausus” fixo, que já existia. Começou a existir essa regra logo a seguir à revolução de Abril, com a gestão democrática. Quando entramos para Universidade, mantivemos o número de alunos de referência. Esse número foi fixado em função de uma estratégia considerada razoável para o ensino da prática de projecto. [GF] - Saliento o aumento de alunos e transformação do corpo docente./ Pretenderam uma relação professor/aluno nas aulas de projecto adequada? [DT] - Daí a tal intenção de fixar 15 alunos por turma. Nunca conseguimos essa relação de alunos por turma. Mas se conseguíssemos não ultrapassar os 21 ou 22 já não estava muito mal. Em aula teórica a situação era diferente. [GF] - Em Projecto penso que os números seriam superiores. Em teóricas eu estive sozinho 1 década com 170 alunos, com turmas que por vezes foram superiores a 40 alunos. / Após a sua direcção. [DT] - Mas dizia. Portanto, o corpo docente teve que ser dimensionado em função dessa necessidade. E o número de alunos também era um factor condicionante, porque para garantir esse tipo de… [GF] - Esse rácio de professor/alunos adequado. [DT] - Era preciso não ultrapassar muito, o número de alunos que estava inicialmente programado. Começámos por 500. [GF] - A faculdade começou por ter 500 alunos? [DT] - Quando iniciamos o programa para o projecto planeamos que a Faculdade não teria mais que 500 alunos. [GF] - Para que houvesse uma relação próxima entre professor e estudantes, etc. [DT] - Essa foi a nossa primeira teoria. [GF] - O edifício foi concebido tendo em conta números e ambição de um rácio adequado de 2 dezenas por turma. [DT] - O primeiro “numerus clausus” foi fixado pelo Conselho Científico nessa perspectiva. Imagina 80 alunos novos no 1º ano, gerava serem 60 no 2º ano, 50 no 3º ano, 30 no 4º ano, 20 no 5º ano. Fazíamos umas tabelas com base nos índices de aproveitamento, tentando determinar qual seria o modelo de progressão. Aconteceu verificarmos que existiam muitos factores incontroláveis e os números ficaram muito abaixo. [GF] - E presumo que por questões orçamentais, foi preciso aumentar o “numerus clausus” para garantir… uma rentabilidade e eficácia em termos de gestão da escola. [DT] - E passamos de 80 para 100. [GF] - Passou a 100. [DT] - Resultou daí uma ligeira subida [GF] - Mas quando, em que período da direcção? [DT] - Não sei. Esta avaliação era feita no Conselho Científico, não recordo os momentos dessas avaliações em concreto. Mas o princípio passa por essa sensibilidade. O “numerus clausus” determina de uma forma muito evidente o número total de alunos, mas a consequência da variação “numerus clausus” só se dá, definitivamente, 5 anos mais tarde. [GF] - Quando se formam muitos alunos retrai-se o “numerus clausus”? [DT] - Esse reflexo começa a ser muito maior do que se imagina. Quando se verifica um abaixamento do número de alunos aumenta-se o “numerus clausus”, para voltar a aumentar o número global de alunos, mas verifica-se mais tarde que volta a subir descontroladamente o efeito dessa variação. Não sei se já se usam algoritmos ou outros métodos mais eficazes. Para nós foi muito difícil de ajustar em função dos números que considerávamos ideal. [GF] - Mas a pressão já se verificava antes. [DT] - Isso ainda no tempo do Zé Grade. Lembro que na direcção do Manuel Correia Fernandes, se pressionava muito no sentido de aumentar o número de alunos. [GF] - Não sei se já tinha começado pelo menos na direcção anterior. [DT] - Quem, o José Grade? O José Grade trabalhou com Manuel Correia Fernandes desde a direcção da Escola de Belas Artes. [GF] - Foi meu professor e demo-nos sempre bem até falecer. / Qual foi sendo o critério para escolha dos vice-directores? Por exemplo no caso do professor José Grade foi para assegurar uma transição? [DT] - Não. Habitualmente quem propõe a composição de uma lista candidata à eleição considera as relações pessoais ou outro tipo de representações nas escolhas dos nomes. A eleição em Assembleia de Representantes subentende muitos consensos. / Nesse caso, a relação do Manuel Correia Fernandes com o José Grade era antiga e dava continuidade à experiência na Escola de Belas Artes. Repara que quando o Alexandre tomou conta da direcção, a primeira coisa que fez foi chamar o Sérgio para seu braço direito. Pode valorizar-se a relação pessoal. O José Grade já fora o braço direito do Manuel Correia Fernandes. No meu caso não tive essa preocupação, porque sempre considerei o José Grade um gestor eficaz e um amigo de confiança. [GF] - Sim o professor Alexandre Alves Costa teve o Sérgio Fernandez como vice director e o Correia Fernandes o José Grade. Entretanto o professor José Grade a uma determinada altura deve ter atingido o limite de idade. [DT] - Com o processo estabilizado essas coisas já não eram determinantes. Com o Rui Braz eu tinha alguma confiança e ele, como economista social, seria muito útil. Depois a situação complicou-se e não correu muito bem. Quando terminou o primeiro mandato, propus a substituição e o assunto ficou por ali, não se falou mais no assunto. Ficamos amigos e ele lá foi tratar da vida. [GF] - O Rui Braz foi vice-presidente entre o José Grade e o António Madureira. O António Madureira também era muito dedicado. [DT] - Sim, é um colega e amigo de grande confiança. Assumiu dedicação total. [GF] - Quanto às instalações, houve alguma questão? [DT] - Houve sempre para algumas pequeninas coisas, mas não teve grande importância. [GF] - Quando iniciou direcção, o exterior estava completamente terminado… todos os muros e arranjos exteriores. E em termos de acabamentos e equipamentos? [DT] - Tudo isso vinha das empreitadas. Tivemos um problema complicado que tinha a ver com a questão das mesas. [GF] - A história das salas com 15 estiradores aparafusados ao chão, que tornava difícil o trabalho com 20/25 alunos. [DT] - Portanto soltaram-se os estiradores, que ainda assim dificultavam a ideia de uma mesa para cada aluno. Viraram-se ou encaixaram-se as mesas, mas a compressão era evidente. Mas surgiu um novo tempo salvador. A desvalorização do trabalho de estirador como mesa para máquina de desenho. [GF] - Pois. O trabalho em computador permitiu que as salas funcionassem com mais alunos./ Começou a privilegiar-se a mesa horizontal em vez do chamado estirador inclinado, não é? [DT] - Até que os computadores portáteis pessoais vieram revolucionar as condições do trabalho de desenho. /V./ [GF] - Mas agora recordei-me de outra coisa, a qual implica recuarmos no tempo novamente. Com a separação do curso de arquitectura, tentou-se protocolar com as Belas artes a divisão dos bens. [DT] - Propusemos um princípio muito simples e houve concordância das duas partes. / Todo o material, biblioteca, arquivos, armazéns, o que quer que tivesse a ver com arquitectura; passava para a Faculdade, tudo o que se relacionasse com as artes plásticas, ficava do lado das Belas Artes. E nomeamos os representantes da arquitectura para uma comissão de partilha. Lembro o nome da Beatriz Madureira, com alguém das Belas Artes para fazer um trabalho de inventário e propor a respectiva partilha. A coisa não resultou muito bem porque a comissão fez uma proposta muito incompleta. Além de que havia material de interesse comum e essa era a parte mais difícil de acordar. Depois de uma fase inicial com a transferência do que não levantava dúvidas, foi mais difícil. Do lado das Belas Artes, porque ficavam com a casa, fizeram por esquecer não valorizando a partilha. [GF] - Isto é… [DT] - Queriam ficar com o que lá estava e não tratar de mais nada. [GF] - Mas algum papel positivo o José Grade desempenhou, porque estava na direcção da Escola de Belas artes, na direcção do lado da arquitectura, e trouxe coisas para cá. [DT] - O José Grade conhecia a casa por dentro, sabia onde estavam as coisas, identificava o seu valor. Mas com o encerramento da Comissão directiva após a transição, já não podia fazer mais nada. [GF] - Conhecia todo o material que por lá havia. [DT] - Andava pelo sótão à procura nas velhas arrumações. [GF] - E tudo o que encontrava, que tivesse a ver com arquitectura, mandava para a Faculdade? [DT] - Metia na mala do carro, trazia. Todo o material que acabou por vir foi sempre a pretexto de que fazia parte do consenso do que é da arquitectura, incluindo livros da biblioteca, que não eram muitos. Nunca foi uma responsabilidade pessoal. A comissão não teve jeito de actuação, de se entender e pôr as coisas a funcionar. Foi nessa altura que optamos por duas medidas. [GF] - Por um lado, inventariaram aquando da publicação esse património. [DT] - Organizamos em 1987 a Exposição do Património da Escola de Belas Artes do Porto e da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, para garantir a identificação dos documentos, quer a existência, quer a fixação de uma referência. [GF] - O que é o que se considerava mais valioso? Os desenhos da arquitectura? [DT] - Não era uma questão de valor, mas o que tivesse a ver com as artes. [GF] - Isso ocorre a pretexto de uma exposição também. [DT] - Foi uma exposição relacionada com a produção escolar. [GF] - Do património da Escola de Belas artes. [DT] - No interesse da arquitectura, houve o cuidado de listar suportado numa leitura tão completa quanto possível, porque nós estávamos mesmo empenhados nisso. [GF] - E o Centro de Documentação, para que muito contribuiu o Manuel Mendes? [DT] - Nesse caso nomeamos o Manuel Mendes para organizar e gerir o Centro de Documentação, que era assim constituído. Nos estatutos da Faculdade ficou a definição do que seriam o Centro de Documentação e o Centro de Estudos. Foi um suporte estatutário no momento da definição da instituição. Foi matéria muito discutida e concluída. / Ficava assente um Centro Documentação integrando a biblioteca e a documentação de carácter histórico. [GF] - Pois, nos estatutos da Faculdade ficou também definido ainda a existência de um Centro de Estudos. / A Biblioteca não está separada estatutariamente do Centro de Documentação? [DT] - Tínhamos uma bibliotecária e um responsável pelo Centro de Documentação. E um centro de produção, que nós defendemos também bastante ainda no tempo da Comissão Instaladora. Foi muito contestado pelos corporativistas da profissão, para ser um centro de realização de tarefas profissionais para encomendas externas. [GF] - Pois, e ainda o CEFA, para prestação de serviços. [DT] - Era o CEFA, Centro de Estudos da Faculdade Arquitectura. Tinha como objectivo e como programa a realização de tarefas profissionais, na condição de prestador de serviços. Destinava-se, essencialmente, à comunidade universitária e a quem quisesse recorrer ao Centro de Estudos para a prestação de serviços profissionais. / Qual era a ideia? Fixar tanto quanto possível profissionais interessados, a trabalhar na Faculdade. Em vez de terem a sua própria loja. Isto foi muito polémico, porque, evidentemente, o que os mais… [GF] - Já se pensava num perfil de arquitecto como investigador-projectista? [DT] - O pessoal com loja, com negócio, foi sempre contra, porque era concorrer pela encomenda. [GF] - Era tirar mercado à profissão liberal. [DT] - Portanto, os adeptos da liberal sempre contestaram isto. Um dos principais contestadores desta estratégia foi exactamente o Nuno Portas, que entendia que a instituição não se deveria dedicar ao exercício da profissão, protegendo os liberais. Então o Nuno Portas, que tinha muita influência e amigos na área do poder, contrapropôs e assumiu a criação do Centro de Investigação de Arquitectura e Urbanismo. [GF] - Surgiu então com o professor Nuno Portas o CEAU - Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo - dedicado à investigação. [DT] - Repara, qualquer coisa que tivesse origem na nossa acção (Comissão Instaladora ou a sua continuação) não entrava a palavra urbanismo. Essa palavra aparece porque o Nuno Portas fez questão de a introduzir dentro do conceito da especialização. Portanto, o CEFA é outra coisa, que se decida à investigação, pura ou aplicada, com ou sem contractos, mas não produz trabalho profissional no sentido da acção própria da arquitectura. E o Nuno Portas ficou como o agente responsável pela montagem dessa outra infra-estrutura. [GF] - O professor Nuno Portas entrou na escola nos anos 80, e poucos anos depois criou-se o CEAU? [DT] - Essa criação foi já no final dos anos oitenta. Mas aconteceu que, como sempre, Nuno Portas delega. Pela sua confiança em Manuel Sá, e pelo reconhecimento do seu mérito profissional nesse domínio, alinhou com ele a montagem do centro. [GF] - Mais tarde quando o professor Nuno Portas saiu da Faculdade, penso que o professor Manuel Fernandes Sá esteve a dirigir o curso. [DT] - O Nuno Portas não saiu do CEFA. Mas o Manuel Sá também foi responsável pelo CEAU. Tinha muitas ligações aos municípios, desempenhou muito bem essa tarefa. [GF] - Bem, o professor Nuno Portas também teria incomensuráveis ligações. [DT] - E essa ajuda foi constante. Ambos desenvolveram estudos e abriram perspectivas que deram lugar a realizações diferentes. Como, por exemplo, actividade regular de investigação e publicação no âmbito de projectos com a Fundação Calouste Gulbenkian, ou com a Fundação Ciência e Tecnologia. [GF] - O Mestrado de planeamento urbano foi criado em determinada altura, e durante considerável tempo foi o único existente. Tinha ligação à Faculdade de Engenharia. [DT] - Esse mestrado conjunto foi uma pressão da Faculdade de Engenharia. Não era uma iniciativa nossa, mas da Faculdade de Engenharia, que não queria perder o controle da formação em urbanismo. Em engenharia tem-se uma visão muito mais materialista da formação e, além disso, percebeu que o mestrado era uma boa fonte de receita. Por isso oferecem mestrados em várias áreas. Tinham também um campo de actividade para dar trabalho a muitos dos professores da casa. Nós nunca tivemos tantos professores, em proporção, como a Faculdade de Engenharia [GF] - A ideia deles era de um mestrado conjunto, em torno do urbanismo. [DT] - Era muito interessante para os engenheiros porque eles, muitas vezes, também querem ser urbanistas. Nuno Portas entusiasmou-se com a hipótese, e surgiu esse programa articulado entre as duas Faculdades, envolvendo mais uma vez o Manuel Sá, que tinha boas relações nesse espaço. O mestrado avançou por esse lado, apoiado pelo grupo Portas e Manuel Sá. [GF] - Eram esses os “especialistas” urbanos. [DT] - Depois dos primeiros anos separaram os cursos, porque o esquema não resultava. As relações foram muito difíceis, porque os engenheiros não têm a mesma maneira de pensar dos arquitectos. Basicamente foram questões ao nível da organização, da disciplina administrativa, mas também havia discrepâncias nas exigências ao trabalho dos estudantes, decorrentes da visão científica ou criativa. Os mestrados nasceram aí. Depois apareceram as nossas próprias variantes. [GF] - Durante algum tempo penso que o mestrado alternou entre as instituições… Era um mestrado nessa “especialidade”. / Mais tarde entra-se noutra discussão, a questão de assegurar-se uma maior “especialidade” em termos de rehabilitação e património. Fruto da preocupação de pessoas como o professor Francisco Barata? Bem como de outros como os professor Manuel Correia Fernandes, o Bernardo Ferrão, ou numa segunda fase, o Rui Póvoas, etc. [DT] - O Francisco Barata queria por força uma especialização na área do património. Ele próprio se considerava um especialista da intervenção no património edificado. [GF] - Da mesma forma que o “urbano protagonizou nos anos 90, o património protagonizou uma ou duas décadas depois. [DT] - Era o que estava a dar. Coisa que os mais velhos da casa, nunca acharam graça, essa coisa de distinguir projecto arquitectónico da intervenção no património. [GF] - Pois. Havia opiniões divergentes. / Outros com o professor Alexandre Alves Costa continuavam a defender um arquitecto generalista, etc, à semelhança de outros. [DT] - Essa discussão entre o Alexandre com o Barata, foi muitas vezes excessiva. O Alexandre dizia: “Que é que o património tem a ver com o assunto, se qualquer arquitecto trabalha sobre um programa, seja ele intervir directamente no construído ou em contextos de outra natureza”. [GF] - Diz que era o que estava a dar… a questão do património era agitada já pelo menos desde meados dos anos 90? [DT] - Foi discussão acesa que teve outros intervenientes. [GF] - Vários intervenientes afirmavam então o património - como antes acontecera com a questão do urbano - como uma especialidade… Algo como faces de um arquitecto de cariz “generalista”. [DT] - Em arquitectura trabalha-se com materiais de vária ordem, entre os quais as construções que é preciso recuperar, evidentemente. [GF] - Era também a opinião do Domingos de que isso não constituía especialidades. [DT] - É claro que não. O conhecimento aprofundado das matérias técnicas que ocorrem no tratamento de temas específicas podem interessar a especialistas concretos. Mas isso está para além da arquitectura. O saber especializado afasta-se do sentido complexo da concepção arquitectónica, que tem a obrigação da síntese como suporte de qualquer especialidade. Essa era a grande divergência. [GF] - Acompanhava essa posição. [DT] - Obviamente. [GF] - A discussão, antes, tinha-se centrado na divergência entre arquitectos e a “especialidade urbana”. Presumo que o professor Nuno Portas não acompanhasse a opinião dos arquitectos generalistas e anti-especialização noutras áreas como a reabilitação. [DT] - Não se trata de ser contra a reabilitação urbana, mas de conhecer as bases da competência de criar em arquitectura, seja qual for a circunstância exterior ao processo da invenção da forma na caracterização do espaço de vida. [GF] - Recordo presenciar reuniões em que a discussão acabava na questão do arquitecto generalista vs especialista. A opinião de professores como o Nuno Portas devia ser de que poderia haver também várias especializações. [DT] - Por isso ele entendia o urbanismo como uma especialidade, confundindo ciência urbanística com projecto à escala ou em contexto urbano. [GF] - Para esses, se calhar, poderia abrir-se no limite outros cursos? [DT] - Exactamente. [GF] - Duas facções. [DT] - Sim. É um velho problema no quadro da didáctica em contexto de ensino da arquitectura. [GF] - E isso não viria já de trás, desde que houve um plano de estudos da Faculdade em que o último ano tinha 3 opções… aquando do primeiro 6º ano do programa da Faculdade de Arquitectura. / Seria projecto, restauro e urbanismo? [DT] - Lembra-te que a primeira transferência foi dos alunos do 6º ano. Serviu para testar essa ideia que não podia resultar. [GF] - Frequentava-se um programa genérico mas, no último ano, experimentava-se a frequência de uma de 3 opções, no contexto do projecto do 6º ano. [DT] - Projecto de obra nova, se quiserem chamar-lhe assim, projecto de recuperação de construção, também não sei se já se chamava património, é bem possível. E projecto urbano. [GF] - Terá sido algo em meados dos anos 80? [DT] - Foi no ano lectivo 1984-85. Se resultou no primeiro, segundo ano ou terceiro ano? Foi por ser o Távora o professor, que nunca teve esse interesse por uma tal especialidade, mas sim pelo tratamento dos problemas à luz da cultura histórica. [GF] - Nem todas as opções tinham a mesma procura. [DT] - Resultou que no primeiro ano. Começou com algum relativo equilíbrio, mas o património morreu rapidamente, por falta de alunos. Nuno Portas ainda assegurou alguns alunos interessados na opção urbanismo, mas durou pouco tempo. [GF] - Houve mais procura pela opção do projecto “tout court”, o que levou a acabar-se com as opções no Plano de estudos? [DT] - Estávamos numa escola de arquitectura. Os estudantes querem ser arquitectos, não escolhem opções menos conceptuais, de uma qualquer especialidade, seja ou não prestigiada, com a qual ficam bloqueados no futuro. Eu argumentava neste sentido: quando um jovem se forma, seja em arquitectura ou numa qualquer especialidade, não sabe ainda se pode ter preferência e simpatia por trabalhar em desenho de cidades ou fazer urbanismo, ou mesmo encontrar outros caminhos. Até pode ter esse tipo de interesses, não é o que está em causa. O que está em causa é o potencial enquanto probabilidade de emprego e de vida futura. [GF] - Prestigiava, mas também castrava à partida a saída aos formandos. [DT] - E ele rapidamente arranja um emprego em que é empurrado por outra coisa qualquer, que não tem nada a ver com o tipo de formação. [GF] - Portanto, privilegiou-se uma formação generalista, que abrisse perspectivas, mais do que canalizasse para especialidades específicas. [DT] - Porque depois dá desencontros terríveis. Um jovem forma-se numa especialidade para a qual não tem destino. Tem capacidade, mas não tem respostas… [GF] - Na escola seria essa a posição dominante./ Mas continuou a haver interesse em variantes, para além da que constitui a inclusão pelo Nuno Portas. [DT] - Não. Praticamente só a do Nuno Portas. A pressão do Francisco Barata para o tema da intervenção no património, foi sempre considerada como formação pós-graduada, então curso especial ou variante em curso de doutoramento. [GF] - Mais tarde surgiu o mestrado em reabilitação e património. Mas sim, embora a questão tenha continuado a ser posta, parece ter havido maioritariamente, salvo algumas excepções, consenso quanto à questão. [DT] - É verdade. Eram os mestrados pré Bolonha. [GF] - A questão das especialidades é uma coisa transversal a toda a Universidade. [DT] - Quando a gente começa a trocar impressões sobre essas matérias noutros contextos, envolvendo outras formações, o assunto é mal-entendido. /VI. [GF] - Propunha agora falarmos da Teoria. A estrutura da formação compreende várias áreas científicas. A da “arquitectura”, compreende o projecto, a teoria e a história. De facto, há uma coluna vertical de teoria ao longo do curso, desde o 1º até ao 6º ano, a coluna vertical do projecto é central, etc. / Outra coluna, é a das técnicas de apoio. Ainda outra coluna consiste no desenho. Sendo que podemos ainda dizer que há a variante do urbanismo, etc. Mas recentemente, verifica-se uma exponenciação de disciplinas opcionais complementares. [DT] - As opcionais, nunca foram muito fortes nem tiveram um peso muito grande. [GF] - Sim. Antes quase nem havia opcionais… Mas isso já não é assim há algum tempo./ Por outro lado, há a predita coluna da história e da teoria. Em determinado momento, penso que nos anos 90, retornou a existência de uma coluna de teoria, ao lado da de história. / Penso que também foi uma reclamação de estudantes e professores que pretendiam mais reflexão na formação. Se o Domingos me puder explicar? [DT] - Enquanto tive contacto com estas matérias, pude perceber alguma vantagem para a existência de disciplinas opcionais, ocupando uma pequena parcela do horário disponível, sendo entre si alternativas em matérias afins da arquitectura ou mesmo apenas de cultura. Constituía campos de conhecimento que pudessem constituir informação inicial de caminhos alternativos, capazes de mobilizar estudantes para formações futuras. Esta iniciativa nunca obteve sucesso. Nasceu e morreu depressa. Quanto à exigência de ensinar a História da Arquitectura como matéria chave do curso, que vem de longe desde o ensino clássico nas Belas Artes, foi claramente definida desde as Bases-gerais e assente por nós como matéria essencial. Mas entendida como matéria de formação do campo teórico da arquitectura. Em geral serão os arquitectos mais habilitados nestas matérias, o que não exclui que um historiador não possa adquirir competências no entendimento dos processos do pensamento arquitectónico para melhor ensinar nesta perspectiva. A história como instrumento do ensino teórico da arquitectura. [GF] - Portanto, não pode ser como em tempos… em que havia história, da arte, dada por não arquitectos. Precisava-se de uma história da arquitectura. A qual também se desenha, etc. [DT] - Insisto. O recurso à história entendida como a componente diacrónica da teoria. Rapidamente se percebe que os estudantes exigem um campo da formação teórica com muita informação. É sobre o que poderíamos chamar a componente sincrónica da teoria, isto é, muito mais próxima das circunstancialidades do projecto do que simplesmente da leitura diacrónica dos acontecimentos. [GF] - Percebo a distinção entre teoria e história. [DT] - Portanto, mais interpretativa e menos descritiva, quer a teoria, quer a história da arquitectura. Por outro lado, este duplo entendimento dos saberes é bastante necessário a acompanhar as especificidades dos projectos. Foi por isso que montamos uma sequência de teoria que se pudesse relacionar com a programação do projecto. Foi um tema sempre defendido pelo Manuel Mendes. [GF] - Pois, por exemplo havia MLAC… e recordo-me de um email (penso que do João Pedro Xavier que talvez já estivesse a actuar como vice-presidente do Carlos Guimarães), a indagar se não via problema de se mudar a designação para “Teoria 1”, sendo que o Manuel Mendes já assumiria ser o professor de “Teoria 2”. [DT] - Uns cumpriram melhor, outros cumpriram menos bem, porque tudo depende da sensibilidade de cada professor. Mas há uma coisa que não se pode contestar, é a autonomia do professor para organizar a sua matéria. Portanto, quando se insistia nas reuniões de coordenação, no debate conjunto dentro de cada ano e também no debate vertical, para se perceber o que cada professor deve fazer no interesse do processo colectivo do ensino e não aquilo que lhe interessa individualmente. Tudo isto passa pela exigência de muita conversa, muito acerto. [GF] - Muita gente manifesta disponibilidade após tal acerto, mas depois nem sempre tem tempo de execução produtiva. / Por exemplo, houve uma altura em que tentei discutir as obras que refiro em teoria com os professores de outras cadeiras, e de poucos tive “feedback” . [DT] - Essa seria a força dinamizadora da escola como espaço de ensino. Mas sempre notamos o fechamento, digamos, o bloqueamento quer pessoal, quer dentro de certos sectores. É mesmo uma tendência muito grande nesta Faculdade, como talvez em toda a Universidade. [GF] - No ensino em geral, mas também na nossa Escola do Porto? Que já não é uma família de 15. [DT] - Já são muitos, há muitas sensibilidades. Depois existe uma tendência para o bloqueamento, para enquistamento. [GF] - Retomando o que falava, como é que surgiu a predita coluna de Teoria? [DT] - Surgiu exactamente logo na primeira versão do plano de estudos. [GF] - Foi porque os professores achavam que era importante? Porque projecto queria? [DT] - Toda a gente estava de acordo com cadeiras de Teoria. Foi mais difícil estabelecer acordo quanto ao facto de serem professores arquitectos a assumir as aulas de História da Arquitectura. [GF] - Porque haveria a presunção de que quem saberia história eram os historiadores. [DT] - Isso é verdade. Mas é para ensinar história. [GF] - Mas não ensinar história da arquitectura numa óptica orientada para a formação de arquitectos. [DT] - Na linha de orientação que planeamos, em geral os historiadores não estão muito preparados. [GF] - A coluna de teoria não surgiu como uma parente ou subárea pobre da coluna ou área científica da arquitectura (projecto)? [DT] - Não, era uma coisa diferente. Essa distinção explora temas de que nós tínhamos consciência clara desde as Bases gerais, tal como com o Projecto. [GF] - Há teoria que se ministra de forma geral, mas também enfoques intrinsecamente relacionados com projecto. [DT] - Pretendia-se que pudesse ter relação directa com o Projecto. [GF] - As UCs tinham títulos como MLAC, EHFR, EFQ mas, em determinado momento, essas designações desapareceram. [DT] - Perdeu-se por falta de comunicabilidade entre as pessoas, simplesmente. [GF] - Recentemente. Acho que com o Bolonha, passou a ser só Teoria 1, 2, 3 etc. [DT] - O processo de Bolonha introduziu muita perturbação e perda de qualidade no ensino da arquitectura. Inclusivamente, forçou a alteração dos objectivos na formação dos arquitectos. Essa questão do 1, 2 ,3 é apenas um detalhe do retrocesso de valores. [GF] - Para terminar, duas coisas. A primeira concerne com o ensino privado e a montagem de congéneres como a do curso de Coimbra./ Já a segunda concerneria com a relação com personalidades como Álvaro Siza e Eduardo Souto Moura. A gente esteve aqui tantas horas e ainda não os mencionámos muito! [DT] - Vamos ter outras oportunidades. [GF] - Disse-me que quando se montou as Bases gerais em meados dos anos 70 você acreditava que aquilo era um esquema que.... [DT] - Era um esquema para agir, traduzia bem o sentimento que tínhamos quanto modo de ensinar arquitectura e, a partir dele, organizar o ensino na nossa escola. [GF] - E depois a escola entrou em velocidade de cruzeiro, cada vez mais alunos, e cada vezes mais professores. Disse-me uma vez que alguns se queixavam que a escola nem sempre estava a seguir os esquemas combinados... Dúvidas se tal não comportaria algumas perdas de qualidade… [DT] - Sobre a maior parte das questões que se foram levantando, tentavam-se resoluções através de debates, em reuniões gerais de docentes para maior compromisso do colectivo. Lembras a reunião de Esposende? E outras situações da mesma natureza: discutir os problemas. Evidentemente, nessas discussões, partia-se de uma base. [GF] - Foi incrível, porque a gente isolou-se, para conversarmos todos abertamente./ Lembro por exemplo do Fernando Lisboa á noite, no corredor, ainda a conversar. [DT] - Essa foi uma iniciativa minha, porque tinha vivido uma experiência semelhante em Coimbra. Quando cheguei à direcção propus o modelo de discutir, em seminário fechado, como se fora o recolhimento em claustro de mosteiro. Acertamos um fim de semana, longe da cidade e da família. Senão, todos teriam compromissos, ir jantar a casa, nesse dia não posso porque não sei quantos, há sempre muitos compromissos. Então se o grupo já não sabe se ainda está a fazer bem, ou não sabe o que quer, vamos discutir para mudar ou ajustar o que o colectivo entender. O objectivo era responder a esse tipo de dúvidas. Terminavam sempre estes debates, ou mais abertos na Faculdade, ou mais recolhidos, por concluir que no essencial, as estruturas eram para se manter. Essa é a experiência que eu tenho. Muitas das questões que se levantavam, mesmo a matéria do processo Bolonha e outras também complexas, eram tratadas no sentido de defender uma estrutura de base. [GF] - De antes, inspirada na discussão que remonta às Bases gerais. [DT] - Era a concretização ao longo dos anos daqueles princípios. Todos esses processos de discussão ao longo do tempo acabaram por remeter para a manutenção das Bases gerais como estrutura de base, com os ajustes necessários. Lembro que fui várias vezes chamado a intervir em situações diferentes de escolas estrangeiras. Estive no Brasil, nas escolas de arquitectura do Rio de Janeiro, Fortaleza e São Luís do Maranhão, como em Barcelona ou Lille, a expor sobre estas situações e a expor o nosso sistema, a tentar justificar como se ensina arquitectura na nossa escola. Falar sobre a importância do desenho, do trabalho coordenado a partir da ideia do projecto, o ensino de caracterização em atelier, enfim, os nossos enunciados, que são sempre os princípios da arquitectura. Percebia haver sempre alguma atenção e uma grande receptividade a estas linhas de orientação. Claro que é difícil pôr em prática, sempre com muita coisa a fugir. Existem contrariedades, situações que não batem certo, mas que o grupo, quando começa a discuti-las, tenta repor as qualidades que sabe existirem na estrutura base. [GF] - Evidentemente, a crença no desenho, no projecto, na reflexão, na responsabilidade pela organização do espaço. [DT] - Observo um dos problemas típicos. Alguns alunos invocam querer saber mais de construção. Chegam ao fim do curso e pensando que não sabem o suficiente de construção. Mas na realidade já sabem muito de construção, na medida em que sabem pensar arquitectura e estão preparados para enfrentar a realização de obra como um sistema complexo com inúmeras entradas. [GF] - E mais, é o desenho de construção, é o urbanismo, é as teorias e histórias, é... [DT] - Todo o corpo de escola vai discutindo, de um modo ou de outro. Para as questões básicas tenta encontrar soluções de saída. Mas a verdade é que, quando se faz um debate aberto, com muito ataque, muita diversidade, muitas queixas, começa o progresso dos sistemas. Porque é uma força, essa, a da estrutura de base. [GF] - Recordo-o desde estudante e depois monitor ou professor. Lembro-me com saudade das jornadas, e desse especial encontro de Esposende. E falamos de uma debate aberto que, é interminável, como é infinito o potencial de arquitectura. Obrigado professor, pelo seu tempo e generosidade.