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CONVERSA SOBRE DESENHO NA 1º SECÇÃO DA ESBAP, A CRIAÇÃO DO CURSO DA FAUP E ALGO MAIS _ JUNHO 2019

CONVERSA SOBRE DESENHO NA 1º SECÇÃO DA ESBAP, A CRIAÇÃO DO CURSO DA FAUP E ALGO MAIS _ JUNHO 2019 (Joaquim Pinto Vieira, com Gonçalo Furtado). / NOTA INTRODUTÓRIA Com base numa entrevista feita por Gonçalo Furtado foi elaborado o texto seguinte. Considerando que o leitor pode ser orientado, decidimos dividir o texto em 9 partes que tratam matérias diversas mas relacionadas. São elas: I - A CRIAÇÃO DA “ESCOLA DO PORTO” E O MEU INGRESSO NA ESBAP; II - ASPECTOS DIVERSOS; III - A PRESENÇA DO DESENHO NO CURRICULO; IV - DESENHO II; V - OUTROS ASPECTOS MARGINAIS AO DESENHO; VI - A DOCÊNCIA NO UNIVERSIDADE DO MINHO; VII - UM CURSO DE DESIGN INDUSTRIAL; VIII - A MINHA CONDIÇÃO DE ARTISTA E O DESENHO; IX - QUE FUTURO PARA O DESENHO NUM CURSO DE ARQUITETURA OU ARTES NO TEMPO DA “IA”? I - A CRIAÇÃO DA “ESCOLA DO PORTO” E O MEU INGRESSO NA ESBAP / GF - Eras professor em Belas Artes, por convite.  JV - O acesso à docência na ESBAP era feito por convite. Não se sabia quem convidava. Diziam-nos para aparecer. Normalmente eram os docentes amigos que induziam os professores do Conselho Escolar a aprovar o convite e a formalizá-lo. Só quando recebi o documento de aposentação, em 2009, é que soube que o meu pedido foi enviado ao Ministério da Educação em Janeiro de 1974. Mas o contrato só foi feito em Outubro de 1974. Era o procedimento normal, desde sempre, desde o século XIX. GF - O Conselho era constituído por poucos Professores de Arquitectura, de Pintura e de Escultura. JV - Professores esses que eram poucos. 2 pintores, 2 escultores e 4 ou 5 arquitectos, que me recorde. Ocupavam lugar por concurso público. GF - Mas quem eram os assistentes? JV - Eram todos os outros docentes. GF - E o director era então o Carlos Ramos JV - Tudo era orientado pelo arquitecto Carlos Ramos, que vinha de Lisboa, 3 dias por semana, que era Diretor desde 1952 e que tinha feito uma grande alteração no funcionamento da Escola abrindo-a à modernidade e por isso aos jovens formados com destaque. Isso passou a ser dependente da Reforma de 57 que se manteve até ao 25 de Abril. Este aspecto foi decisivo e muitos alunos eram oriundos de Lisboa que a preferiam à escola da terra! GF - Mas no caso de docentes para desenho, era o pessoal das artes que os sugeria? JV - Estamos ainda a falar antes de 1974. A disciplina de Desenho, “desenho de estátua”, no curso de Arquitetura, era dada por docentes de Pintura, com 4 horas semanais, por isso uma parte do seu tempo de serviço e todos os anos mudavam. GF - Quando entravam para qualquer curso ou secção era sempre para as Escola Superior de Belas Artes. JV - Sim. Tinha duas secções. A 1ª- Arquitetura e a 2ª- Pintura e Escultura. Os docentes estavam ligados em exclusivo a cada um dos cursos. A Escola dependia da Direção Geral do Ensino Superior e não do Ministro da Educação, directamente. Os pintores e escultores entravam com o 5º ano liceal e os arquitectos com o 7º, pois tinham que fazer disciplinas na Faculdade de Ciências. Por isso os nossos cursos não eram licenciaturas, eram Cursos Superiores. GF - O professor que dava Desenho também dava aulas em pintura e escultura, para fazer horário. JV - Sim. Bom, isto foi sempre assim até ao 25 de abril, ou até ao fim de 1974. Mas a Escola, mais em particular o curso de Arquitectura, entrou em crise, deixou mesmo de haver aulas porque os docentes e alunos em Assembleias Gerais recusaram o substituto do Carlos Ramos que tinha deixado funções em 1969. O Arquitecto António Brito chegou a ser nomeado mas não foi aceite e a Escola entrou no que se chamou “regime Experimental” e que durou até ao 25 de Abril de 1974. É quase inacreditável como tal tenha acontecido e sido vivido por docentes e alunos. Nos cursos de Pintura e Escultura a situação, pelo que sei, nunca sofreu grandes alterações. Passou tudo ao lado. GF - Pois, os regimes experimentais vigoraram em 1969-74. Na escola aquando do 25 de Abril de 1974 não havia propriamente aulas. Na geração do Eduardo Souto Moura, José Manuel Soares, etc. JV - A geração do José Manuel Soares, do Souto de Moura, etc, não tiveram aulas normais e não fizeram várias disciplinas como História da Arte, Estruturas, etc, porque não havia aulas… Eles fizeram o curso trabalhando nos ateliers, e depois oficialmente conseguia-se as famosas passagens administrativas. Mas por exemplo o Alberto Carneiro era docente em Escultura e no ano de 1969 e 1973 deu Desenho. Como o Souto Moura conta, foi fascinante, uma das coisas que tiveram de fazer foi lamber pedras. GF - A seguir à revolução de 1974 passa a haver Reuniões de Curso. JV - Logo a seguir ao 25 de abril, passa a haver Reuniões de Curso em que professores assistentes e alunos, começaram a propor e a discutir o novo Curso. Isto inicia-se logo nos dias seguintes ao dia 25 e começa pelo saneamento de docentes e funcionários de forma revolucionária. Por voto de braço no ar. Há muita documentação sobre isso. GF - Constitui um processo histórico e académico-institucional incrível. JV - É um processo completamente doido, absolutamente incrível, inacreditável, surpreendente . Acho que não houve nada semelhante em parte nenhuma do mundo, embora em todas as universidades, que não era muitas, só em Lisboa, Porto e Coimbra, houve processos contestatários. Ninguém no mundo viveu um processo institucional, académico, como aconteceu na Faculdade de Arquitectura da Escola Superior de Belas artes do Porto. Talvez o Maio de 68 em Paris tenha sido semelhante! GF - Bem… E qual era a ordem das Bases Gerais nesse ano ou par de anos? JV - O processo tinha uma ordem, que era que em cada início de ano, em Outubro, começava-se a propor e a discutir as famosas “Bases Gerais”, que continham todos ao aspectos. Distribuição docente por anos, disciplinas e suas matérias e regime e avaliação, que era o aspecto mais debatido e complexo. Só depois de aprovado em Assembleia de Escola as aulas começavam, normalmente em Janeiro. O ano só se encerrava em 30 de Julho com uma Reunião Paritária, isto é o mesmo número de alunos e docentes de todas as disciplinas que em votação decidiam os casos dos alunos que tinham ficado com a classificação suspensa em cada disciplina. Por voto de braço no ar nessa Comissão esses alunos eram reprovados ou passados. As reuniões acabavam à meia noite em ponto. Este processo não sei se durou até 1976. Mas uma coisa durou. Foi que a avaliação e classificação dos alunos passou a ser pública e obrigatória e com clara fundamentação do docente. Este aspecto para mim foi a maior conquista democrática cívica, científica, e pedagógica do Curso de Arquitectura. Participei em todo o processo e recordo-me, como tendo sido duro, foi uma lição de como o debate é a base do conhecimento e do saber. GF - O professor José Grade já era professor. JV - Era professor na Escultura… não estava como professor em Arquitectura. GF – E o escultor Alberto Carneiro já entrara na escola como dizias JV - O Carneiro tinha sido docente de desenho nos anos anteriores ao 25 de Abril.   II - ASPECTOS DIVERSOS GF - Retomemos o período (pós)revolucionário. JV - Já la vão 50 anos e há aspectos que perdi a memória mas outros que tenho muito vivos. Como já disse antes do “25 “não havia aulas, praticamente”. Com o 25 de Abril entra a revolução na Escola e no curso, como já referi alguns aspectos. Mas há os mais decisivos para que venha a surgir, a tão famosa Escola do Porto, sabemos agora mas na altura ninguém sabia. Do ano e 1974 até o verão de 1975, dito o “verão quente”, em que ninguém sabia se o PC ia tomar conta do poder na Escola e cidade viviam-se tempos de revolução. Os soldados do regimento de artilharia da Serra do Pilar tinham criado os SUV. “Soldados unidos vencerão”, e tinham tomado o comando do Regimento e posto os generais na rua. Eram as brigadas FECML, MRPP, UDP, PC, e outras. Na Escola apoiaram a origem do SAAL. “Casas sim Barracas não”. Eram feitas reuniões com os moradores dos bairros, etc. Tudo isto está tratado pelos especialistas como o Alexandre Alves Costa. Eu fiz muitos cartazes com 1 metro sobre os temas. Mas na Escola não havia qualquer aula. GF - Muitos professor saíram da escola. JV - Quase todos os professores em Julho de 1975 abandonaram a Escola - Viana de Lima, Castelo Branco, Lixa Filgueiras, e outros. O único que ficou foi o Fernando Távora, que passou a ser conhecido, por isso, nos reacionários da Foz como o “Barão vermelho”, pois tinha ficado na escola dominada pelos comunistas ML. Nunca me esquecerei que numa das salas em conversa com o Engenheiro Leão, docente convidado de estruturas, verificámos que o corpo docente, contando connosco, era de 11 docentes. GF - 11!? Então em Outubro de 1975 a Escola decide em reunião “voltar ao Desenho”, isto queria dizer voltar aos estiradores e a projetar. Começar aulas. Então com os alunos matriculados nesse ano, poucas dezenas que não podiam passar mais administrativamente, porque o regime tinha mudado. O arquitecto Távora decidiu que iriamos fazer um 1º ano até ao Natal e depois começaria o ano lectivo 1975/76. Então ele propôs que seria o professor de Teoria/História de Arquitectura e o Sérgio Fernandez de Projecto (com a sua direção), e eu daria Desenho. Projeto 12 horas, Desenho 12 horas e História 4 horas. Assim foi o 1º ano do novo curso. Estas cargas horárias só poderiam sair da cabeça de um génio. Nunca ninguém o pensaria e decidiria fazer. Esta foi a matriz da Escola do Porto - Escola do Desenho. GF - Só depois outros professores que deram desenho transitam para o curso de arquitectura. JV - E, 1976/77 entra o José Grade pois havia duas turmas e depois no ano seguinte entra a disciplina de Geometria e o Desenho passa a 10 horas. E no ano seguinte começa o 2º ano e por aí adiante nos anos seguintes com entrada de novos docentes e novas disciplinas e cada vez mais alunos. Nesse ano 1977/78 o Alberto Carneiro que dava aulas só na Escultura, muda-se para Arquitectura e com duas turmas no 2º ano passa a ter horário completo. Assim se fixou o modelo no essencial. Só em 1985 a Luísa Brandão entra como docente de Desenho, pois já havia 6 turmas, até ai chegámos eu e o José Grade a ter 2 turmas cada um e a dar 20 horas. GF - Na escola estavam então professores como o Fernando Távora, o Sérgio Fernandez, o José Grade, etc. JV - O Grade é 13 anos mais velho que eu, era da idade do Siza. Então era um jovem. GF - O José Grade era de proveniência algarvia, e próximo em termos de amizade do arquitecto Siza Vieira que provinha de Matosinhos. JV - O Zé Grade era de Portimão, o Siza de Matosinhos, terras de sardinhada. O Zé Grade contou-me diversas peripécias, que não devo revelar, sobre a amizade entre ambos e vida entre colegas na altura. Tinham um grupo de amigos que tinham como centro a Casa Gótica, junto à Sé, o Alexandre, o Sérgio, a Luísa Brandão, o Jorge Pinheiro, e outro mais. Eu passei a frequentar a Casa depois dos anos 1966. O José Grade era o único que vivia na casa. Para os outros era escritório e atelier. GF - Em suma, o ano lectivo que teoricamente começaria em outubro de 1974, começou em dezembro. Retomaram-se aulas de desenho e teoria/história da arquitectura; os alunos que no ano anterior… JV - Os alunos do ano anterior. Não eram 200 (como hoje) ou perto disso. Os alunos antes eram para aí 25, isto é o correspondente a uma turma. GF - E segundo partilhas, não decorreram então outras disciplinas. Aquando da candidatura às tuas provas académicas, decerto tiveste de organizar essa papelada. JV - Eu tenho todos os documentos desde que começaram a ser produzidos, pois a tradição da Escola era não escrever formalmente nada. Então as primeiras fichas são do ano 1976/77 e foram escritas em folhas de papel quadriculado à mão e fotocopiadas e distribuídas aos alunos. Continham todos os aspectos que os alunos deveriam realizar em cada aula. O José Grade até tinha sido meu professor em Desenho quando o Lagoa Henriques era o professor no curso de pintura e ele foi convidado nesse ano de 1964 , como assistente. Mas como lhe disse várias vezes, por chalaça não me lembrava. Mas éramos muito íntimos por isso foi tudo muito fácil e em poucos anos tínhamos estruturado um programa de Desenho para o 1º ano com “pés e cabeça”. Todos esses elementos tenho na minha posse, como todos aqueles até que abandonei o curso em 2009. No meu Blog - pintovieira ensinodesenho, podem ser consultados. GF - O que integraria as Bases Gerais? JV - As Bases Gerais que eram o guião da pedagogia, continham tudo o que era exigido e aprovado nas Reuniões do início do ano até uma data que neste momento não sou capaz de localizar. A partir de certa altura em 1980 começaram a ser editadas e impressas em livro e distribuídas a todos ao alunos no acto de matrícula. GF - Anualmente ocorria a sua divulgação ou publicação. JV - Os responsáveis por cada disciplina tinham que produzir esse conjunto de elementos que constituíam o corpo disciplinar. Matérias, Método, Fases, Calendário e regime de Avaliação. GF - Os professores Alexandre Alves Costa e o Manuel Correia Fernandes, mais tarde, sucederiam à direcção de Fernando Távora. Neste momento não me recordo como se processava ao processo de Direcção da Escola antes da entrada na UP, em 1979. Mas julgo que Távora foi sempre o diretor do curso até ao ingresso na Universidade do Porto, processo que foi muito discutido e com detalhes delicados. Depois aplicou-se o regime de gestão da UP. GF - Ocorreu obviamente a integração do Alexandre Alves Costa na escola, sendo professor de Projecto do 2º ano. JV - O Alexandre tinha sido docente antes de 1974 mas tinha sido saneado, com mais alguns. Mas foi reintegrado logo no dia 25 de Abril e viria a ser, naturalmente, uma das figuras chave da criação do novo curso. Primeiro como responsável pelo Projeto II, e alguns anos depois passou a orientar ou área de Teoria e História com o Professor Domingos Tavares. GF - Teoria e História. JV - Convém referir que eu não tenho a autoridade e a legitimidade e até o conhecimento para tratar dos assuntos que não sejam do Desenho. Mas como vivi intensamente a criação e o crescimento da “Escola do Porto” posso dar a minha visão pessoal. Recordo-me de uma conversa com o Manuel Mendes acerca disso, numa altura em que ele foi encarregado de criar uma disciplina de Teoria de Arquitectura, em 1980 ou em oitenta e poucos. Acerca da questão da Teoria e da História, mas fundamentalmente a questão da Teoria foi sempre na tradição das Belas Artes uma zona encoberta, vaga, indefinida, perigosa e comprometedora, visão minha. Nos cursos de Pintura e Escultura era o mesmo, Tradição Beaux Arts. Falar sim, com cuidado e contenção e por hipérboles - mas pôr o preto no branco sempre de evitar. O Távora tinha escrito um pequeno, mas excelente livro, e não havia mais nada. GF – O Nuno Portas e… JV - Em Lisboa o Nuno Portas era o grande agente de mudança com uma ação de crítica em jornais e atividade editorial, como, julgo eu, o Pedro Vieira de Almeida, e que acabou por vir para a Escola do Porto. Quer dizer, não se tinha consciência. A produção teórica da escola - dos arquitetos, dos pintores e escultores era quase inexistente ou estava “interiorizada”. E fora da escola era ainda pior! GF - Pois, havia o “Teoria geral da organização do espaço” e o “Da função social do arquitecto”, bom como a revista “Arquitectura”. JV - Mas eu estou-me a referir relativamente a um pensamento estruturado. Podemos dizer que existe um pensamento estruturado, que pode ser de natureza estratégica ou tática, em termos de pedagogia e de métodos pedagógicos e temática e de ideologia estética ou social. E relativamente a estas coisas todas, não era hábito para nenhum arquitecto. Mas admito, como já disse sem autoridade, que o Inquérito à Arquitectura Popular Portuguesa e os encontros do modernismo, tenham dado novos alentos. GF - Os arquitectos escreviam menos… JV - A tradição era não escrever, como já referi. Os arquitetos sabiam de arquitetura que tinham aprendido na Escola que vinha do século XIX, e continuando e adaptando-se aprendiam no atelier e davam aulas com esses conhecimentos fazendo passar métodos, modas, referências. Como nas artes há artistas mais ricos ou preparados intelectualmente e outros menos. Foi a integração na Universidade que obrigou, por razões de progressão na carreira ou risco de exclusão, que começassem os doutoramentos. Mesmo os docentes já com a categoria de professores auxiliares, como o meu caso e do Alberto Carneiro, que evitava o doutoramento, tinham que ter algum currículo teórico para fazer as outras provas académicas da Carreira. Assim, apareceram em seguida textos escritos pelo Alexandre, o Domingos Tavares, e outros mais. Dessa geração pouco há mais a dizer, julgo eu, que não sou do meio. GF - Todos esses publicaram provas ou livros por volta de 1980. JV - As primeira edições da FAUP são de 1990. São os novos licenciados que por diversas razões começam a ter necessidade de escrever. Por outro lado muitos até não projectavam e por isso tinham mais tempo para escrever. Porque não fez o Souto Moura doutoramento? Por não ser capaz de teorizar? Não. Porque o trabalho no escritório dava e chegava e esgotava-o. GF - O Souto de Moura escreveu um notável relatório de estágio. JV - Penso que quase só a professora Anni Gunther fez naquele período o doutoramento, que estará publicado. Mas não fazia arquitectura. Assim, em termos dessa idade, só a Anni Gunther é que chegou a fazer, e mais tarde o José Quintão. Outros tendo tido dispensa de serviço para fazer não fizeram mas não interessam aqui ao nomes, nem os casos… GF - Tinham de se assegurar as aulas. JV - Mas nós, os que tinham feito a Agregação nas Belas Artes e eramos já professores auxiliares não podíamos fazer o doutoramento, porque se fizéssemos não podíamos dar aulas, quer dizer, tínhamos de ter dispensa para fazer o doutoramento, a escola fechava. GF - Ainda não era imposto, um conceito de investigação tão estrito e em voga nos dias de hoje … (risos). JV - Este conceito de investigação não existia. E não era só aqui, também em Espanha. E eu não sei se existia nos Estados Unidos, provavelmente…. Nem sei se em Inglaterra existia. No mundo das arte, incluindo a arquitectura, o fenómeno da teorização sistemática, é muito recente, tem muito poucos anos. GF - Bem…   JV - E por isso, quanto a questão que estavas a referir, da teoria na escola… Era um problema complicadíssimo, porque ninguém era capaz de dar. Ninguém queria aceitar disciplinas teóricas. GF - Ninguém queria dar disciplinas teóricas. Porquê? JV - Porque implicava ter que estudar. De recolher elementos, dados, teorias, sistematizar, refletir e, enfim, escrever. Um tipo de trabalho completamente estranho à minha geração de arquitectos e artistas. Desenhar é um processo muito diferente, mesmo naqueles que dizem que investigam a desenhar. GF - Diversos docentes realizaram Provas de Aptidão, sendo que diversos docentes, a partir de determinada data, realizaram Mestrado. JV - Mestrados não havia antes, as Provas de Aptidão havia. Mas depois foram eliminadas do processo. Eu sempre achei que as provas de Aptidão Pedagógica e Científica eram o processo mais interessante da Carreira. Em Desenho, por exemplo, no Porto o Armando Ferraz fez uma dissertação sobre a Cor. Eu não conheço nenhum doutoramento melhor em toda a parte. No Minho os meus assistentes, em 1996, a Suzana Vaz e o Paulo Freire Almeida fizeram dissertações sobre Desenho que são obras de investigação e elaboração formal únicas em Portugal e se calhar no estrangeiro. Todas essas obras estão “enterradas” nas bibliotecas das Faculdades e nalguns casos desapareceram. Eu sempre considerei essas provas excelentes porque tinham que ser realizadas com base na práctica pedagógica do docente e assim orientadas pelo Professor. Eram investigações sobre o real pedagógico e artístico. Era um processo orgânico que vinha enriquecer o processo escolar e disciplinar e que preparava o docente para continuar o doutoramento, com naturalidade. O modelo mestrado/doutoramento permite tudo ao Docente e ele acaba em quase todos os casos por fazer investigação avulsa ou pessoal mas que nada tem a ver com a Instituição e os verdadeiros interesses da matéria do curso. Eu sempre defendi que os doutoramentos deveriam ser feitos em áreas ou temas que interessassem à Escola. O CC deveria só aprovar os doutoramentos com base em parecer favorável dos professores da área. Mas esta conversa tem a ver com a “investigação “ ou estudo dos professores de projecto. GF - Ah. JV - Eu acompanhei bastante o processo da disciplina de Projecto I, pois tínhamos 2 horas por semana em que acompanhávamos os alunos na aula de Projecto. Este processo durou até aos anos 90. E os professores de projecto: toda a teoria dos professores de projecto, era a teoria deles sobre como é que eles pensavam o acto do projecto na sua relação com o trabalho do aluno. Ao olharem para o trabalho do aluno eles olhavam-no como se fosse seu. E eu sei porque assistia às avaliações, por curiosidade e interesse intelectual. Era a ver os alunos, e ver como era a relação entre ensinar e avaliar. E eu via como aquilo era a circunstância e subjectividade, de uma pessoa sobre a circunstância e subjetividade de outra. Um ponto de vista, ou uma particularidade, aplicada a uma realidade, que era um enunciado feito pelo professor, mas um trabalho e uma concepção de outra pessoa; De cada um dos alunos. Era o professor que anunciava um exercício, e depois o aluno respondia, e o aluno tinha que se enquadrar. No que ele ia percebendo que era a “linha do professor”. Não havia uma teoria abstracta, geral para aquela fase de aprendizagem e de formação, para que o aluno se pudesse reportar. A aprendizagem e o ensino eram uma ligação centrada no docente com carácter axiomático, muito pouco explícito. O poder do docente era absoluto, porque só nele residia o início, o meio e o fim – O enunciado, o método, a solução. Nada disto se passava na disciplina de Desenho em que a subjectividade do docente era quase nula. III - A PRESENÇA DO DESENHO NO CURRICULO DO NOVO CURSO / GF - Quando chegaste à Escola não encontraste um programa, tiveste que fazer um novo? JV - Nunca houve programas de Desenho ou Pintura nas Belas Artes. Sim começar do zero. Era a revolução. Há um Programa e uma Matéria. A matéria é, digamos então, Paris. E a questão é esta, mas que programa é que há para ir a Paris. O que é que vou fazer? Quando, como, por onde, com que tempo? O tempo, na acção pedagógica e na acção de aprendizagem, é um dos elementos mais importantes. A matéria do Desenho é a mesma. Mas se tu tens um ano, ou um mês, tens que ter programas diferentes. E o programa depois, para esse tempo exige escalonamento, ou desmembramento, articulação de toda a matéria. Quer dizer, de facto, a matéria não é uma coisa impenetrável, não é uma bola preta; a gente pega na matéria e pode parti-la em três, em quatro e cinco. GF - Que era essas experiências que nós fazíamos quando fui estudante em 1993, havia 3 ou 4 fases, tipos de desenhos, com tempos e… JV - Ora bom, a questão do exercício ainda tem a ver com a outra questão, que não é matéria, é a metodologia. Tu podes estar um ano em Paris mas podes organizar a visita por prioridades. Mas talvez seja melhor dar uma visão mais integrada do processo e depois voltamos a esse tipo de questões. GF - E então. JV - Antes de 1974 a disciplina de Desenho da Reforma de 57 era “desenho de estátua”, 2x2 h semanais. E como já dito, dada por docentes de pintura da “2 ª Secção da ESBAP. Com o Curso surgido da Revolução do 25 de Abril, como já se referiu por iniciativa e desejo do arquitecto Fernando Távora, passou a ter 12 horas semanais e a ter uma orientação nova ou inédita, adequada a nova visão que não sendo clara para ninguém era intuída. O tempo era de mudança. Para mim, senti, recordo, que era um desafio muito interessante pois como estudante do curso de pintura já era muito crítico face ao processo pedagógico decorrente da Reforma de 57. Mas como seguir? Não dispunha de experiência nacional e a estrangeira, em cursos de Arquitectura era de difícil acesso. Tínhamos duas orientações gerais possíveis. Seguir a “Bauhaus” com as metodologias decorrentes da abstração e seguir o “Visual Design”. Ou por outro lado ver a realidade que era para o que interessava aos alunos de desenho, “saber desenhar”. Que o Távora considerava o Desenho a disciplina básica do Projecto, não só da arquitectura, seguindo concepções renascentistas, já eu sabia. Como transformar isso em prácticas de aulas de 4 horas diárias 3 vezes por semana era o problema. Por outro lado era evidente conhecendo os desenhos do Távora que o que ele desenhava era a arquitectura, a paisagem, as esculturas, as pessoas, etc. Então era evidente que o Desenho devia tratar da Representação mas não nos moldes do “desenho de modelo”. GF - O desenho para arquitectura. JV - Assim começamos a dar aulas tanto na sala, como na rua, como dentro dos edifícios públicos da cidade. Mas também começamos, eu e o José Grade, em 1976, a perceber, mais do que a compreender, pois começamos a ter percepção directa das respostas às nossas solicitações dadas pelos alunos aos tipos de exercícios e das variações dos temas. Era necessária uma “ordem”, um caminho orientador que nos permitisse agrupar e aprofundar aquilo que pareciam ser com evidência maior ou menor das matérias do Desenho. A leitura do Livro de Atlio Marcolli, “Teoria del Campo I”, que li em Italiano, mas que não era um livro de Desenho de representação, mas de Educação Visual, foi para mim a parede para me encostar e poder ver as coisas com mais clareza. É dos livros sobre as matéria envolventes do desenho da abastração ou da representação mais bem elaborado e esclarecedor. O livro de Massironi também tem valor. Mas o tradicionalmente mais interessante, simples e claro é o “Elements of Drawing”, de Ruskin, que vinha do século XIX e tinha sido sempre ignorado no nosso ensino do Desenho Académico. Estes aspectos estão por mim tratados no Blog - pintovieira ensinodesenho. GF - O programa foi sempre o mesmo Joaquim? JV - Não o programa foi-se fazendo, como é natural. Ainda antes de abandonar as aulas no último ano propus a inclusão de exercícios novos que iriam criar novas áreas de aprendizagem. A ideia, das “Quatro Fases”, ainda neste momento se mantém, julgo eu, mesmo depois de eu ter abandonado o curso há 15 anos. E eu e o José Grade chegamos lá não por seguir qualquer outro modelo mas porque começou a ser evidente que “ensinar e aprender” são coisas muito diversas embora devam ser concomitantes. Os interesses de quem ensina e de quem aprende são diferentes. Por outro lado as Matérias do Desenho, aquelas coisas que íamos tendo a consciência mais clara deveriam ser ensinadas e aprendidas em tempos diversos e em estados diversos da evolução do processo do estudante. Os exercícios de cada Fase poderiam sofrer alterações todos os anos, porque íamos verificando os resultados alcançados ou falhados. Ter Fases, em tudo, é no fundo a base de qualquer método. GF - Sim, tenho desenhos de 4 fases. JV - Como já referi estes aspetos estão todos disponíveis no Blog, pintovieira ensinodesenho. “1 - Percepção e Observação, 2 - O Reconhecimento , 3 - A Consolidação, 4 - A Consideração”. A Teoria era dada no início de algumas das aulas de cada Fase. Só eu dei essas aulas. Nunca consegui que qualquer outro docente o fizesse. É curioso. As aulas eram dadas no anfiteatro grade da ESBAP e depois da FAUP, a todas as turmas com cerca de 200 alunos. Cada Fase iniciava-se com o lançamento por mim a todas as turmas e depois o docente de cada turma ia desenvolvendo as matérias segundo a sua visão. No entanto os Objetivos da fase e os Factores da Avaliação estavam referidos com precisão na Ficha e eram objeto de debate e esclarecimento entre os docentes antes do início do trabalho. De 15 em 15 dias havia reuniões entre todos que mostravam exemplos dos trabalhos que na sua turma tinham sido feitos. Com isso coordenávamos o processo. A Teoria estava exposta em cerca de 18 temas e dadas as circunstâncias do calendário nem sempre conseguia dar todas. Mas era para mim o suporte conceptual, agregador, não de doutrina para os assistentes, mas de apresentação do universo das matérias que nós éramos inevitavelmente obrigados a contactar quando queríamos ter consciência do que era desenhar. GF - Quando concebeste e montaste isso, inicialmente para 12 horas, não houve discussão com o director ou professor Fernando Távora? JV - O Távora, a mim, disse – “oh artista, você é que sabe”, então, vamos contratar um “gajo e vamos dizer ao gajo o que é que ele vai fazer?” O Távora era um “senhor”. GF - Tiveram um bom relacionamento. JV - Muito bom. Tínhamos uma boa relação pessoal, mas além disso, ainda por cima eu não era arquitecto, ele gostava imenso de desenhar. Eu era o artista, ele chamava-me sempre “oh artista”. Nunca me perguntou uma única vez sobre o que quer que seja, ele aliás não fazia isso a ninguém… O Távora era uma pessoa educada e uma pessoa competente e exigente. Não, fazia (jogos de poder). Como um nobre honrado! O Távora nunca assinava um papel, só assinava um papel se fosse obrigatório. GF - Como decorriam as Avaliações? JV - Eram e são para mim a “pedra de toque” do ensino. Eu costumava dizer que mais do que ensinar o que é preciso, a um docente, é saber avaliar. Eu dizia – posso avaliar o teu trabalho sem te ensinar nada e a partir dessa crítica tu continuares o teu trabalho. Se a avaliação é boa a coisa segue, se é má morre. Mas na realidade como ensinávamos muitas coisas e tínhamos muitos alunos era necessário ter um esquema claro, preciso e coerente para produzir aprendizagem, a única coisa que interessa. No meu Blog, pintovieira ensino desenho, estão todos os elementos e dados para compreender como pensávamos isso. Até publiquei numa Revista Universitaria da Galiza um texto sobre a avaliação de Desenhos. GF - Tu era o regente e avaliavas os professores? JV - A partir de 1995 iniciei esse processo. Quem avaliava os assistentes eram os alunos através de umas fichas inquérito que eu entregava a cada aluno. Ele pontuava o seu docente em cerca de 40 parâmetros. E também me avaliava a mim. Mas isto é só para dizer que a construção dessa realidade toda, era uma construção metódica. Isto era uma questão de lógica funcional. O ensino funcionava? E o que pensavam os alunos do ensino? A única coisa que está em causa é a aprendizagem do aluno. Mas neste caso queríamos dados sobre a outra visão do processo que esse parecia servir. E servia. O resultado das avaliações de cada docente era afixado antes das avaliações finais e os alunos podiam ver como o seu docente era “classificado”, comparado com os outros, e quais eram os aspectos mais valorizados ou mais criticados. IV - DESENHO II / GF - Ah. JV - O Desenho no 2º ano do curso foi uma novidade. Não existia em Lisboa e possivelmente em mais parte alguma. Mais uma originalidade do Curso na área do Desenho. GF - E a presença do professor Alberto Carneiro no curso? JV - É muito simples. Eu sou o primeiro professor de desenho na arquitectura no novo Regime Depois, no ano seguinte, o número de alunos aumenta, havia uma turma só e passa a duas. E é preciso dois professores e o Zé Grade, que detestava estar na Escultura, passa para a Arquitectura. O Alexandre Alves Costa, era amigo deles todos. E quando começa o 2º ano o Alberto Carneiro, que também detestava estar na 2ª Secção, em conversa com o Alexandre que foi nomeado para orientar o novo 2ºano acordam criar essa nova disciplina. Se não erro, foi no ano lectivo de 1977/78 . O Alberto já tinha sido docente de Desenho no dito período experimental. Essa disciplina nada tinha a ver com a disciplina do 1º ano. Era uma concepção particular de fazer articular as duas disciplinas no processo pedagógico do Projecto. GF - O professor Alberto Carneiro realizou também provas académicas, publicadas pela FAUP. JV - O Carneiro, no texto da Prova de Agregação, na “Série Lições”, editada pela FAUP, “Campo Sujeito e Representação no Ensino e na Práctica do Desenho Projecto”, procura explicar o que era essa metodologia e o seu papel na formação do Arquitecto. Eu nunca compreendi bem o processo, que tive a oportunidade de acompanhar nas avaliações dos trabalhos dos alunos. Para mim esta junção do Desenho no processo do Projecto seria uma interferência inaceitável se fosse docente de Projecto. Se eu sou docente de projecto e defendo uma ou duas metodologias de projectar, todos os elementos que aí entram devem ser dominados por mim. Não é semelhante ao processo que se encontra por exemplo numa ópera em que o maestro, o cenógrafo, o coreógrafo, etc; juntam disciplinas diversas para criar uma obra coletiva, embora responda à ideia de um deles, em princípio o Cenógrafo, como o caso clássico e muito apreciado de Bob Wilson. O Carneiro apreciava criticamente segundo a sua concepção do que é projectar e utilizar o desenho nos desenhos que os alunos iam fazendo para a Disciplina de Projecto. Este contexto metodológico entrou, na minha percepção, em dificuldades na altura em que o Alves Costa abandona a Disciplina, por volta de 1985 e desloca-se para as Áreas de Teoria e História. O Alberto Carneiro vai mantendo o processo com dois Assistentes. O Vítor Silva a tempo integral e o Paulo Frade dando também uma turma no 1º Ano. Com a aposentação do Aberto Carneiro em 1999, a disciplina passa a ser orientada pelo Vítor Silva que no ano seguinte já tinha feito o Doutoramento e era Professor Auxiliar. Sem intuito encomiástico, devo dizer, por razões da história institucional, que fui, por acaso, o 1º professor Catedrático de Desenho em Portugal. E também o fui durante 10 anos, o que é menos relevante, ou de lamentar... V - OUTROS ASPECTOS MARGINAIS AO PROCESSO DO DESENHO / GF - Pedia que retomássemos antes o período anterior da ESBAP JV - A vida da antiga ESBAP era particular e tinha alguns encantos. Por exemplo a vida em comum no mesmo jardim e espaços gerais originaram muitos casamentos. O mais sensacional, devo usar o termo, era a Disciplina de Conjugação das 3 Artes que surgia no 5º ano dos Cursos de Pintura e Escultura e no 6º ano do Curso de Arquitectura. Eram formados grupos de trabalho com alunos dos três cursos, por iniciativa pessoal, e depois faziam durante o ano julgo que dois trabalhos que eram avaliados pelos docentes. No ano de 1968 o Responsável pela Disciplina era o arquitecto, Viana de Lima e o seu assistente era o arquitecto Cristiano Moreira. Pela primeira vez e última na minha vida fazia “noitadas” para a entrega nos dois últimos dias antes da entrega. Era um “mundo de loucos”. GF - A História era dada por historiadores de arte consagrados. JV - Sim, que eram historiadores, formados pela Faculdade de Letras. O Flávio Gonçalves, o Flórido de Vasconcelos, e o Henrique Pais da Silva. Eram chamados historiadores, consagrados em história da arte nacional. Não sei se davam mais umas aulas na Faculdade de Letras. Mas este aspecto também vai ser encarado de forma diferente no Novo Curso que começa em 1975/1976 mas, acima de tudo, quando em 1979 integra a Universidade na mesma altura que o Curso de Lisboa. Quem passa aqui no Porto a dar História de Arquitectura são os Arquitectos. E o primeiro a fazê-lo é o Fernando Távora. Isto ainda hoje não se verifica na FBAUP. Quem dá Histórias de Arte, Pintura, Desenho, Design, são docentes formados em Letras e História. GF - Passámos a ter uma história especificamente de arquitectura. Mas que mais disciplinas havia, tinham por exemplo geometria e anatomia. JV - Havia geometria, tínhamos também anatomia. Eu cheguei a ter anatomia, até fui ao hospital São João ver cadáveres, da mão, do braço, etc. Quem dava Geometria era o Arquitecto António Brito que veio a ser o director da Escola, nunca aceite entre 1969 e 73. Também foi meu docente de Geometria práctica o arquitecto Pádua Ramos. E em 25 de Abril de 1974 era director nomeado pela Direção Geral o escultor Joaquim Machado, que foi saneado nessa altura. GF - E no período em que estudaste, entre 1963 e 1968, já andariam pela escola arquitectos que vieram a ser teus colegas como professores, como o Bernardo Ferrão ou o Ricardo Figueiredo. JV - Que estudavam nessa altura e eram os meus colegas. Por exemplo eu sou colega directo de fim de ano - nós tínhamos sempre uma décalage de um ano ou dois idade – do Nicolau Brandão, do Ricardo Figueiredo ou do falecido Bernardo Ferrão. O Manuel Correia Fernandes eras mais velho um ano. Depois há ali uma malta que anda pelo meio, uns anos para trás ou para frente. O Alexandre, o Sérgio e o Siza eram de gerações anteriores. GF - O processo associativo estudantil foi importante. JV - Sim a vida associativa marcou a minha passagem pela escola, como acontecia com outros cursos universitários. Fazíamos sessões de cinema alternativo, apoiados pelo Cine Clube do Porto. Organizávamos as famosas Extra-escolares que eram uma resposta às Magnas que eram as exposições da direção da Escola e fazíamos frequentes reuniões de Estudantes para fazer passar ideias contra o regime da ditadura. Não havia filiação política a expressa. Mas íamos sabendo quem era do PC, dizia-se, do “contra”. Nos dias seguintes ao 25 de abril aparecem logo os FECML, O MMPP e os militantes do PS e PC. No dia anterior ao 25 de Abril, ninguém pertencia a nada a não ser ao PC. GF - Muitos presumo que fossem do PC, antes ou depois da revolução. JV - Claro que eram “companheiros de acção”. Mas tudo clandestino ou não explicito. Mas conheci; em Avintes a terra onde nasci e vivi até aos 25 anos, havia comunistas militantes e muitos deles eram presos em certas datas. GF - Por volta de 1968 foste a Paris. JV - Foi pago pela Gulbenkian… GF - Em viagem subsidiada pela Gubenkian. JV - Subsidiou os alunos de pintura e escultura para irem ver a grande Exposição do Picasso . Em 1968-70, para aí em Março. Eu estava no terceiro ano. Foram grande parte dos alunos, era subsidiado, para aí uns 8 dias. A maioria da malta, homens, ficou lá fora fugindo da guerra e da ditadura. GF - As viagens ao estrageiro não eram frequentes, eram excepcionais. Referes que alguns não voltaram. JV - Por exemplo, o José Barrias, José Calvário e o irmão. A margarida. O escultor Manuel Dias que faleceu há pouco tempo, que é o que fez a escultura do “Ardina”, que está na Praça, o Ara Gouveia que era da Madeira e muitos outros devem ter sido mais de dez! GF - Alguns desertariam, havia a guerra. JV - Sim desertaram para fugir à guerra mais do que ao regime, penso eu. Eu não fugi, decidi que o meu caminho incluía essa experiência b. Fiz tropa, 3 anos, tive dois anos em Angola, mas controlei o processo, alias como muita gente controlou. A malta que fugiu foi um número reduzido relativamente, ao que ficou cá. Penso que fomos os principais impulsionadores do 25 de Abril . O Mao Tse Tung dizia – “se queres vencer o inimigo entra para dentro das suas forças”. GF - Estiveste na guerra em Angola nos anos 70. JV - Eu estive. Três anos, dois anos em Angola. Eu fiz a tropa quase no fim da guerra, vim quatro meses antes do 25 de abril. GF - Outros também estiveram, como o Manuel Correia Fernandes ou o António Madureira, entre outras figuras. JV - Sim, o Manuel Correia Fernandes, coincidimos em Luanda. Com o António Madureira, fui colega em Mafra, eramos da recruta. E muitos outros, gente de letras, de direito, e até alguns políticos e dirigentes desportivos. Eu, com muitas cunhas, tirei a especialidade que menos me penalizava psicologicamente. Eu era artista, e depois de meter umas “cunhas”, consegui a especialidade a “acção psicológica” que me livrou da guerra no terreno. Acção psicológica, era uma área de conhecimento, como artilharia. O meu chefe, no quartel do Lumiar, em Lisboa onde eu fiz a especialidade era o, depois político madeirense, Alberto João Jardim, o especialista maior da matéria. Informação, contra informação e propaganda. GF - Especializaste-te então na área da informação, propaganda e contra propaganda. JV - Ação psicológica era o domínio da chamada propaganda, contra propaganda, e informação. As técnicas que existiam na altura, tinham vindo da França, dos franceses na Argélia. Foram os cientistas dessa matéria, sabiam tudo sobre isso. E tinham passado para as tropas portuguesas essas técnicas de acção psicológica para se usarem sobre o inimigo e sobre as nossas tropas, que hoje em dia são completamente utilizadas em publicidade, não há guerra nenhuma que não as use. GF - Fazes um relativo paralelo com coisas também utilizadas em publicidade e marketing…. Durante o teu período de aprendizagem; nas artes, tinham História da arte e Estética? JV - Tínhamos Estética, e História da Arte. GF - Era ambas dada por alguém de Letras. JV – Só as Histórias GF - No meu 1º ano também tínhamos “Antropologia do espaço” com o Cabral Ferreira, e não sei senão teríamos geografia no 1º ou 2º ano. Os professores de desenho estavam no CC? JV - Sim, desde o início do Conselho científico que era constituído em número restrito e eleito por todos os docentes. Era para nós, eu e o Carneiro, uma prova de apreço e reconhecimento de valor. Porque nós éramos, bom, um pintor e um escultor. Nós estávamos numa faculdade de arquitetura, e fazíamos parte do Conselho Científico, isto é uma coisa nada canónica. Com o Engenheiro Póvoas, ocorreu o mesmo, mas antes dele tinha havido outros. Vários engenheiros, a dar matemática e a dar estruturas. O Póvoas foi o único que consegui aguentar-se. GF - O António Quadros foi docente na ESBAP, acho que foi professor do Ângelo de Sousa. JV - Sim, foi professor do Ângelo Sousa. Quando eu entrei ele já não estava lá, já tinha ido para Moçambique, em 1962 Era uma figura social, sedutora e muito activa, daquelas figuras, que se vestia de uma forma invulgar, roupas compridas, cabelos compridos, todo de preto, linha surrealista. Um poeta, um gajo que escrevia, que não sei o que, muito preveniente, uma figura, isso foi sempre indiscutível. Eu julgo que ele era de idade semelhante ao Siza e ao José Grade. Nasceu em 1933 e morreu em 1994. Eu ouvi um depoimento do Siza acerca do António. Eu achei muito engraçado, de ser o Siza a dizer aquilo. Grandes partes das coisas eu estava de acordo, depois segui o que era o Siza a dizer aquilo, mas a forma como ele via o António era, aquela digamos, que eu também via. GF - O António Quadros teria conhecimentos de várias áreas, como filosofia. JV - Não tinha formação académica fora das Belas Artes, mas era um sujeito intelectual o que não era muito vulgar na altura. Estava muito interessado na arte popular e foi um dos descobridores e promotores da Rosa Ramalho, estrela barcelense da escultura popular. Quando voltou de Moçambique depois de ter estado no Algarve foi convidado a entrar para o curso de Arquitectura, em que pretendia ser professor de Projecto. Mas não foi aceite e passou a dar Desenho com o Alberto Carneiro, mas sem qualquer relação. O António Quadros queria ser professor de arquitectura, o Siza disse, se me recordo bem, que ele podia ter sido professor de arquitectura. Porque ele, lá em Moçambique, tinha feito construções, autoconstruções com bambu, tinha uma metodologia imediata acerca da autoconstrução, que seria interessante, etc. GF - Assistentes. JV - Referes-te aos que trabalharam comigo? Trabalhei com 25, no curso do Porto e no curso da Universidade do Minho. GF - Em determinado momento também surgiram cursos de arquitectura “congéneres”, em Coimbra e Minho. O Olaio, a Teresa Pais, etc. JV - O Curso de Coimbra tem uma génese quase coincidente como o de Minho mas seguiu um caminho diferente pois havia vários professores da FAUL. O Desenho era dado pelo João Dixo durante poucos anos e pelo Olaio. Que se mantém ainda como docente só do 2º ano. Não tinham muito interesse disciplinar no Desenho, estavam interessados em arte e coisas afins. Mas ela é que é professora do primeiro ano. O Olaio é só segundo ano. Mas no 1º ano dava aulas a Arquitecta Teresa Pais que não queria Fazer arquitectura mas fazer e ensinar Desenho. Mas outro docente, que era doutorado, não deixava criar um programa com “tronco”. A Teresa chegou a fazer-me uma entrevista como aos outros professores de Desenho no Porto e Lisboa. O tempo passou e acabei por ser orientador da sua tese de doutoramento que foi feita com base no trabalho que ela fazia com os alunos durante um ano. Foi aprovada por unanimidade e distinção o que revela o valor do trabalho que fez. Hoje é a regente da disciplina de Desenho do 1º ano. Escreve textos, vai a conferências, exposições de desenhos. Por isso, não é o facto de ser arquitecto de formação, que impede seres professor de Desenho. Uma coisa que impede é que não vivas o Desenho. GF - Algumas pessoas pensam que vocês têm… O ensino e a forma como ensinam a desenhar; pressupões uma formação na área? JV - A formação para se ser professor de desenho não existia. Hoje na FBAUP há uma licenciatura em Desenho. Talvez ajude se for boa, senão pode ser um atraso. O curso criado por mim e pelo José Grade foi feito numa Escola/Faculdade que se entrava ou por convite ou por concurso. Iam compreendendo os objectivos do programa e entrando no método. Mas nunca tivemos ninguém com formação em desenho. A sua formação poderia ser diversa. Nós tínhamos designers, escultores, pintores e arquitectos, como a Teresa Pais em Coimbra. Eu e o Carneiro sempre tivemos uma luta dentro do CC contra a intenção de alguns membros de permitir que arquitectos dessem Desenho. Nós sempre nos opusemos. A questão não está na licenciatura, está no interesse e na motivação. Houve um arquitecto que foi assistente um ano e ao afim de algum tempo me dizia que não podia aguentar o processo e ao fim do ano saiu. A única coisa que é condicionante é a posição na cabeça da pessoa, relativamente aos seus interesses. Quem está interessado na arquitetura, não vai interessar-se pelo Desenho. Alguns arquitectos julgam que o desenho é uma “atividade natural”, para a qual “se tem jeito”, que não tem uma ciência e o conhecimento próprios e únicos – uma disciplina. GF - Ah. E escrever… JF - Eu acho que o desenho é capaz de ser mais do que a escrita. E é mais do que a música. Acho que a música, há um especialista que diz que só é possível fazer 68 mil milhões de melodias. Há um número limite. Não sei se alguém sabe quantos desenhos diferentes se podem fazer. Eu acho que é um número infinito. Pois podemos fazer muitos desenhos de cada uma das coisas que existem e outros tantos das que não existem. Eu já fiz mais de 10.000, mas o Munch fez 25.000. Mas a questão central é que o desenho de representação, é uma Imagem. E as imagens estão antes de virem para o papel na mente. O desenho abstrato, por outro lado é há mais de 70 anos feito por computadores. E talvez também sejam infinitos. GF - Limites… A luz. O tempo. Uma infinitude. JV - Penso que para os arquitectos a luz é muito importante. Quando fazíamos desenho de mancha a principal área de interesse era ver e sentir como a luz afecta a forma e o espaço. O mesmo espaço com luz natural ou artificial muda. Isto é, no edifício arquitectónico, ou numa escultura a coisa é o que for a luz. Numa escultura vemo-la de fora e em volta pode estar ao ar livre ou numa sala. E o edifício de arquitectura pode ser um objecto fechado, mas tem exterior e, a todas as horas, a todos os minutos do dia, o edifício é diferente. Mas a questão básica tem a ver com a “percepção” e com a “educação visual”, fenómenos sobre os quais a formação secundaria e mesmo superior na maioria das Escolas é fraca. GF - O espaço vive, vive-se no tempo. JV - E em todos os dias do ano e por aí fora. Pela incidência da luz solar sobre o objecto, e a forma como partes do objecto actuam sobre as outras partes, em termos de cortes, reflexões e etc. Produz imagens sempre diferentes. O Espaço é uma noção e uma experiência psicológica e física. É dever de uma disciplina de Desenho tratar desses temas. GF - Percepcionamos imagens diferentes. JV - Isto de produzir imagens diferentes é uma exigência e uma inevitabilidade. É óbvio que uma das imagens são melhores do que outras, isso é inevitável. Em tudo é assim, quer dizer, há umas coisas que sempre são melhores que outras, nós pomos valor à opinião, mas são porque há uma mutação. As imagens que temos dos edifícios da FAUP, neste momento na tua memória, por exemplo, já pensaste se são da experiência do real ou se são imagens que viste em fotografias? A noção de Imagem é para mim das mais complexas da nossa vida mental, da nossa experiência real e da memória. GF - O espaço muda no tempo. JV - Nós apercebemos que há uma mutação. O mesmo lugar visto em tempos diferentes muda por razões diversas. Por outro lado muda porque nós estamos sempre a mudar. Achamos que determinada coisa é melhor que outra, que há uma mutação considerável, favorável. Com o vinho, se este vinho é melhor que aquele, é porque algumas coisas mudaram. O diferente é a regra vital e deve ser a regra artística. Em qualquer sector a mutação é que é favorável. Se for a mesma coisa não pode ser melhor. A dificuldade extraordinária é onde se joga o que faz a diferença de qualidade. Porque se for a mesma coisa, não pode ser melhor, é igual. A dificuldade extraordinária é, para quem faz, saber o que é, essa coisa que prova essa qualificação. A luz, para mim, quando faço pintura, a luz é a coisa mais relevante. É uma coisa imaterial que conforma e dá sentidos particulares ao que é vulgar e comum. Na natureza, uma singela árvore que vez todos os dias, num certo dia, porque o sol está numa certa posição mostra-te uma árvore que te deixa fascinado GF - A luz no caso da pintura é…. E na arquitectura… JV - A luz no caso da pintura, implica variação de cor e variação do tom. Nas imagens digitais podem ser consideradas a variação de “brilho, contrate, exposição”. Eu faço já sistematicamente o controle desses índices, com maior rigor nas imagens que crio no iPad. Na arquitectura a cor é um fenómeno muito diverso. Está nos materiais construtivos ou na pintura das superfícies. Mas na arquitectura a cor começa a mudar no dia seguinte a ser aplicada. O Sol muda e altera todas as cores continuamente. Mas a questão que nos vai perseguir sempre a todos, pintores e arquitectos é a Imagem. A imagem é uma coisa que conhecemos mal, que os linguistas dos anos 60 achavam que era matéria como o verbo, a escrita, e que podia ser estudada estruturalmente e de forma analítica. Mas que eu como muitos outros, mais competentes também acham que não é. “No princípio era o verbo”. Digo, era a Imagem. Mas se cada vez a conheço melhor mais conheço como a desconheço. É fascinante, como a consciência. VI - A DOCÊNCIA NA UNIVERSIDADE DO MINHO, / GF – Retomemos os cursos ”congéneres” de arquitectura. O curso de Arquitectura da Universidade do Minho inicia-se em 1997. JV - O programa da Disciplina de Desenho é o mesmo que criei e dirigia no Porto. Começa com 2 assistentes escolhidos por concurso. Suzana Vaz e Paulo Freire Almeida. Eu deslocava-me uma tarde por semana a Guimarães e dava as sessões teóricas e coordenava o processo pedagógico e orientava os docentes. Foi um êxito de cooperação e de empenho dos jovens recém licenciados, um pintor e uma escultora. Ao fim de 4 anos tinham feito as provas de Aptidão Pedagógica e Científica com a produção de Dissertações notáveis sobre as matérias do Desenho tratadas no curso. No ano seguinte passou a 3 turmas com novo assistente Carlos Corais. Mas a grande novidade foi que pude criar e orientar a Disciplina de “Desenho 2”, em moldes e concepção completamente diferente daqueles que o Alberto Carneiro seguia no Porto. No ano seguinte 1978/79 lancei um programa de Desenho inédito. A decisão ou parecer dos docentes de Projecto 2 de que não lhes interessava uma ligação entre as duas disciplinas foi decisiva. A matéria desta nova disciplina pode resumir-se em: “1 - O Estudo dos processo, métodos e sistemas que são determinantes na utilização do desenho no processo de intuir, sentir e pensar os projectos 2 - O estudo do Desenho como meio para descobrir e compreender o real. 3 - O estudo dos aspectos semânticos das imagens das formas em geral e das representações arquitectónicas em particular, através dos exercícios de representação de imagens mentais e reais promovendo as capacidades de interpretação e expressão de cada tipo de imagem na formalização inovadora e artisticamente qualificada, 4 - A promoção do gosto pela descoberta formal e plástica e do encontro de uma identidade expressiva”. Chamava-se na primeira ficha “Desenho como significado”. E tinha quatro fases em 30 aulas, 2x4 horas semana. 1 - O Desenho no Projecto – Concepção, Formalização, Ilustração. 2 - Representar o Espaço Imaginado, 3 - O desenho de observação. 4 - O corpo humano. Esta estrutura e formalização foi sofrendo alterações que a práctica ia evidenciando como convenientes. Tudo se estava a fazer pela 1ª vez sobre um terreno de ensino e de aprendizagem completamente novo e ignorado. A experiência revelou-se positiva ao ponto de os alunos estarem interessados num tempo semanal que por um lado os ligava ao projecto num contexto diferente e por outro porque podiam exercer a actividade artística que muitos exercícios permitiam ou promoviam. Como noutros casos já referi no meu Blog, pintovieira ensinodesenho, podem ser vistos todos os elementos do processo. Em 2006 abandonei a colaboração com a Universidade o Minho em termos pedagógicos mas mantive relações académicas diversas. VII - UM CURSO DE DESIGN INDUSTRIAL E A FAUP. / GF - Havia licenciatura de design em Lisboa, acho que no IADE desde 1974. E na Faculdade de Arquitectura de Lisboa abriram vários, acho que nos anos 90. Tipo: Arquitectura de cena, Arquitectura de moda, Design industrial, etc. Na FBAUL também havia uma licenciatura em Design industrial e outra em Design de comunicação. E no Porto? JV - Aqui no Porto não havia nada em Design Industrial. Só a ESAD, em Matosinhos, iniciou no início de 90. A Reitoria no tempo do Reitor Alberto Amaral contactou a FAUP, aí pelos fins dos anos 80, para criar um curso e o Arquitecto Alcino Soutinho foi o indicado para o dirigir. Mas não fez nada. Seguidamente o Vice Reitor Eduardo Oliveira Fernandes solicitou a indicação de nomes e fez o mesmo com a FEUP. A FAUP indicou o Sérgio e a mim e a FEUP o Engenheiro Mecânico J. Balboa. Todos aceitaram e depois de várias reuniões concluímos que fazer uma licenciatura em Design era um disparate e por isso devíamos fazer um Mestrado que formasse os futuros docentes. Fizemos visitas a várias universidades nos USA e concluímos que devia ser esse o caminho. A Reitoria aceitou mas o curso só poderia ser feito sob a dependência da Fundação Gomes Teixeira que era a forma institucional que a UP tinha encontrado para nesses anos dos vastos dinheiros vindos da Europa poder usar financiamentos. Hoje a UP é uma Fundação e a Fundação Gomes Teixeira desapareceu. Isso permitiu dadas as boas relações entre o Oliveira Fernandes e o Ministro da Indústria Mira Amaral conseguir ter acesso ao financiamento do Curso. Fui nomeado diretor do Curso pelo Reitor e iniciei um processo muito complexo e trabalhoso. Tive que contactar pessoalmente mais de 100 empresas, em todo o Norte, até Leiria para apoiarem o projecto. O financiamento só era dado pelo PEDIP, às empresas com o programa que apoiava a renovação do tecido industrial. Então tive que conseguir que as empresas, 40, para apoiar os dois cursos e integrassem nos seus quadros os estudantes que nós tínhamos selecionado para a frequência do Curso. Designado “Pós graduação e Mestrado em Design de Equipamentos e Produtos”. Como é de admitir tenho em meu poder todos os elementos desse longo e às vezes penoso processo, que todos acabaram por achar um êxito. As empresas pagavam todos os meses com o dinheiro recebido do PEDIP a propina de cada estudante. E, oh glória do dinheiro europeu, com esse dinheiro pagávamos tudo e dávamos uma bolsa de estudo mensal a cada estudante. Faziam uma pós-graduação e, em vez de pagar, recebiam! O curso tinha a duração de 5 trimestres efetivos com uma semana de intervalo. Nos dois primeiros a orientação era de docentes nacionais recrutados na FBAUL e nos 3 trimestres seguintes eram orientados por docentes estrangeiros. Finlandeses, Italianos da Domus de Milão, da Universidade de Glasgow, dos Ateliers de Paris e da Universidade de Montreal, no Canadá. Eles deslocavam-se ao Porto 3 semanas e estavam o dia inteiro nas instalações que foram construídas no Pólo do Campo Alegre, junto do edifício do Círculo Universitário. Na primeira semana lançavam os temas e as metodologias, na segunda vinham verificar os resultados e na terceira vinha avaliar e classificar os trabalhos. Em 1993 conclui-se o processo, ficando por resolver a possibilidade de os formandos fazerem o Mestrado que só poderia ser concedido pela FAUP. O processo veia a concluir-se passados alguns anos e a FAUP criou um Mestrado em Design Industrial e os candidatos pediram equivalência. O êxito do projecto foi claro. Dos 40 formandos do dois cursos mais de 15 passaram a ser docentes na ESAD, na FBAUL, na FAUL e em várias Institutos Politécnicos, além de terem desenvolvido muitos deles uma vida profissional mais qualificada. GF - Ah. JV - Deste processo ficam sem explicação e justificação alguns aspectos. A FAUP tinha sido a origem deste processo sugerido pela Reitoria para a UP oferecer um Curso em Design Industrial. Mas recusou-se depois de ter negociado com a FBAUL a criação de um Curso. A UP deve ser a única Universidade no mundo que não tem um curso em Design Industrial. Mas na FAUP o Design era uma disciplina ignorada ou não reconhecida. O arquitecto Távora era a figura mais em destaque nesta ideia. Tinha a concepção expressa diversas vezes e que é partilhada por muitos docentes prestigiados da Escola que o “Arquitecto desenha desde a cidade até à colher de sopa”. Esta concepção é conservadora ou tradicionalista. Acho que mesmo no Renascimento Italiano e mesmo na Idade Média corporativa seria aceite ou cultivada. Com a Revolução Industrial, por toda a Europa o Design, palavra que os Ingleses usam para se diferenciar do Drawing, a produção de objectos dos mais diversos tipos foi afectada, exigindo metodologias, conhecimentos e ligações interdisciplinares que são estranhos aos cursos de Arquitectura. Então para confirmar essa visão o Conselho Científico atribui ao Grau de Mestre a designação de “Mestre em Desenho Industrial”, designação que [dificultou um reconhecimento dos diplomas e ninguém reconhece numa altura em que existia em Portugal o Centro Português de Design, e uma Associação Profissional de Designers. VIII - A MINHA CONDIÇÃO DE ARTISTA PLÁSTICO E O DESENHO. / GF - Antes de ires para as Belas Artes, estudaste na Soares dos Reis? JV - Sim. Desenhar para mim sempre foi completamente natural. Vocacional. O meu pai pôs-me na Soares dos Reis. Com 10 anos devo ter chumbado no acesso ao Liceu ou na Secundária. Depois fui para a Soares de Reis e a seguir fui para a ESBAP. GF - O teu pai era entalhador JV - O meu pai era entalhador. Mas era um entalhador de tal nível, que até lhe fiz um blogue. Fiz um blogue com a obra do meu pai. O meu pai era entalhador, tinha uma oficina de entalhador e de marcenaria, mas acima de tudo era um desenhador. Desenhava os móveis que construía em imagens promocionais e depois fazia desenhos à escala 1/1 como era exigido. Ele começa nos anos 30 depois da crise mundial a trabalhar numa grande oficina no Porto e nos anos 50, 60 tem uma oficina própria. No Blog, “A Talha do Agostinho”, pode-se ter uma ideia do que era tudo isso que desapareceu. Acho que o meu pai deve achar muito boa ideia, pois prezava muito essa actividade. GF - Eu em Paris deliciei-me a ver os desenhos da Arte Nova, desenhos à escala 1:1 para fazer peças em madeira, etc. JV - Isto é tamanho natural, exactos, era para construir. Isto era feito em papel cenário. Os marceneiros e os entalhadores copiavam sobre aquilo, para fazer as peças. Muitos deles ele fornecia em papeis vegetais. GF - E tu, continuas a fazer um desenho por dia em A4? JV - Ainda continuo. O mesmo A4 e tem de ser sempre ao alto, senão a imagem muda muito. Posso fazer ao baixo, e tenho muitos desenhos feitos ao baixo. A orientação do formato é um fator psicológico, mais que estético no desenho, relacionado com a composição da imagem a que a mente está condicionada. A verticalidade ou a horizontalidade são paradigmas na nossa relação com o imaginário, mas só são reais no desenho e na fotografia, mas não são na mente. Nós não sonhamos imagens com formatos. Nós vemos em “esfera” O fundamental nestes desenhos é realmente, não pensar. Só posso fazer os desenhos se não pensar, se pensar não consigo, porque depois é pior. São chamados “Desenhos sem pensar ou a sonhar acordado”, porque é a mais verdadeira. Aliás, eu tenho um blogue sobre isso, drawingdesenhodibujo.blogspot.com, onde publico desenhos recentes todos as semanas e coletâneas dos outros desenhos desde o início e também textos de reflexão sobre o processo. GF - Mas trabalhas, tipo, com o inconsciente? JV - Sim. O inconsciente, é para mim que, como dizia numa das aulas teóricas, assim como um grande reservatório com limites inconcebíveis que se comunica por um estreito canal com essa outras coisa incompreensível e fantástica que é a consciência. Hoje a física Quântica está muito preocupada com o que ela seja pois não se consegue entender o que seja. A Física Quântica também não se sabe o que é! Um pintor normalmente faz uma série de obras dentro duma temática, ou técnica e tem certas balizas, certos limites e um número grande de incertezas. O trabalho depois de iniciado vai dando indicações sobre o caminho a seguir. Isto é assim em todas as artes e em arquitectura também. A pintura que se faz, o desenho que se faz, é o resultado de uma luta, de se conseguir atingir qualquer coisa. Normalmente é insuportável voltar a ver, é muito incómodo. Mas com estes desenhos “sem pensar” é ao contrário, até tenho prazer em vê-los passados alguns anos. Parece que não fui eu que os fiz! Nesta momento são mais de 7000. GF - Quando é que sentes que acaba? JV - Quando não me apetece fazer mais. E isso é uma coisa variável. Às vezes, por exemplo altero ou completo alguns desenhos passados alguns anos mas nunca altero, como faço um todos os dias, todos os dias são diferentes e a minha motivação também tem de ser. Hoje passados quase vinte anos dos desenhos diários, mas já os faço há mais de 40, posso verificar que há períodos com aquilo que poderia dizer como zonas ambientais psicológicas, umas mais ternas outras muito agressivas, ou brutais, etc. GF - O desenho representa, procura? JV - Eu acho que tanto procura como encontra. Eu desenho algumas vezes a procurar e outras a encontrar. Desenho de forma programática quando decido que todos os desenhos devem obedecer a certas condições, ou técnicas ou temáticas ou conceptuais ou morais, por exemplo. A parte programática é categorial, é a chamada parte categorial. Isto é, nós temos valores, princípios, normas, coisas morais e coisas de não sei quê. Decidir que certas coisas que não se devem fazer mas.… Isso é. Num arquitecto é a mesma coisa. GF - Desenhas representações figurativas, no sentido de não abstractas. JV - Eu faço desenhos de representação, não faço desenhos de abstração, são sempre representações, figuras, etc. Isso não quer dizer que não tenha lá quadrados, retângulos, coisas simples, quadrados e essas coisas, figuras. São sempre uma coisa qualquer, mesmo quando é abstracto é uma coisa qualquer. Uma coisa quadrada que é uma coisa qualquer que está no ar. Não é um quadrado abstracto. E uma das coisas mais espantosas é isto, quando fiz a minha Agregação, mostrei uma série de desenhos sobre isso. Foi uma coisa muito engraçada. Pude mostrar situações em que o desenho de representação revela coisas que a abstração não pode. GF - Escreveste uma série de textos e reflexões sobre o desenho. JV - Desde muito cedo que comecei a escrever. Mas não havia onde publicar. Depois que criei os blogs a produção e a publicação cresceram muito. Mas foi com a criação da revista PSIAX, com a colaboração do Vítor Silva que encontramos um meio adequado. Publiquei textos em jornais e até numa revista Galega de Ensino. O livro editado pela FAUP, na Série “6 Lições”, em 2002, é o único livro editado. Prefiro publicar nos meus blogs. O meu livro ao fim de 15 anos não tinha esgotado a edição de 300 exemplares. Os meus 2 blogs principias já foram visitados por mais de 60 000, em 12 anos. E gente de todo o mundo. GF - Chegaste a fazer exposições na escola. JV - Fiz a acompanhar a minha Agregação uma Exposição dos “Desenhos sem pensar”. Fiz um álbum que estava à venda. GF - Demoras-te no desenho… JV - Entre 15 e 30 minutos. Dá-me gozo, por exemplo encher o casaco de um sujeito com padrões, em que o tecido tenha muitos quadradinhos, por exemplo. A existência ocasional de zonas com padrões gráficos é sempre mais demorado e o desenho é mais mecânico ou mais relaxado. Por isso há dias em que eu me sinto tipo costureira. Com espírito costureira, apetece-me estar ali tranquilo. Nos outros desenhos também estou tranquilo, mas acabam mais depressa. Mas não tem nada a ver com o costurar em que também não é preciso pensar. Seguem-se umas regras. Mas o que sai é o que se sabe que vai sair. Comigo não sabe! GF - E eram figurativos. JV - Sempre. É sempre imaginário e ausência do real e do modelo. Há muitos artistas e arquitectos que em reuniões fazem retratos dos colegas, outros aviões de guerra como o Ângelo. Eu estava na reunião do CC, que era sempre “uma seca”, ouvia tudo, não perdia nada da matéria, mas fazia o desenho sem pensar no que estava a desenhar. E ao meu lado, estava o Rui Póvoas, que também fazia a mesma coisa, isto é desenho de formas abstratas ou de estruturas com ferros. Os ingleses chamam-lhes “doodles”. GF - Mas porquê esse processo de desenho? A ideia que eu tenho de ti a ensinar é a tentares explicares-te racionalmente? JV - Ensinar é mesmo o oposto de criar artisticamente. Mas o número grande desenhos que fiz a grafite e a caneta, e muitos que fiz no iPad são “desenhos a Pensar”. Mas não tem a ver uma coisa com a outra. GF - Integraste o Conselho Científico muitos anos. JV - Desde que foi criado. Era-se eleito por todos os docentes. Só nos dois anos em que dirigi o Curso de Design fui “castigado” manobra de alguns docentes para não ter os votos necessários. Mas depois fui sempre eleito, como o Alberto Carneiro e o Rui Póvoas, que não eramos arquitectos. GF - Antes desenhavas, mas há cerca de 20 anos começas-te a fazer 1 desenho todos os dias. JV - Mas antes já fazia, há muitos anos, sem ser todos os dias. Mas mesmo assim tenho, centenas, senão milhares de desenhos. Que não são feitos assim, que são feitos a “doer”, quer dizer, são desenhos programados. São grafites, ou outras técnicas variados, coisas de figura humana, retratos, paisagens, animais, plantas, etc. São chamados “desenhos pesados”, são os tais que custa a ver. Quando vou ver, não me apetece continuar. GF - Também tens desenhos mais programados. Desenhos em que investes ou investiste mais. JV - O desenho é o processo mais expedito para ver surgir a imagem de uma ideia ou de uma imagem. Eu acho que se investe muito, num certo tipo de expectativas, algumas delas são meramente inconscientes, são úteis pela poética, a expressão, etc. E depois por vezes, provavelmente, não se realizam ou não são satisfatórias. Nós ficamos um bocado de pé atrás, Mas não é só o desenho, é um lugar comum, com a escrita também é assim. Está ali qualquer coisa a anunciar-se mas não sai... GF - Nos anos 60 classificaram-te com 20, Joaquim tecnicamente não devias ser mau (risos). JV - Não, toda a gente que era bom aluno tirava 20. Foi em 1969, com a peça de Tese. Mas a classificação considerava toda a obra feita. A Marta Resende, filha do Júlio Resende, que era minha colega, também tirou 20. Eles davam sempre 20 aos melhores alunos, não quer dizer nada de especial. Só quer dizer que eramos os melhores alunos. No final do ano, não era um professor, mas um júri que dava as notas. Eu escrevi na altura um texto, que ainda tenho cópia, que entreguei com a peça questionando o processo. Não fui prejudicado por isso, o que só prestigia os membros do Júri. GF - Não tinha só a ver com a mestria técnica JV - Acima de tudo tinha a ver com a capacidade criativa. Conceção da ideia, desenvolvimento da obra, coerência formal e segurança técnica e relação com obras anteriores. A peça que entreguei era uma novidade técnica para mim e para toda a gente. Por isso não se pode facilmente avaliar o fator técnico. GF - E o júri? JV - Eu acho que os membros do júri também não sabiam quase nada, ninguém estudava nada, não havia livros nenhuns. Havia livros, mas ninguém lia com cuidado e atenção e critério. GF - Ah. JV - Não havia análise nenhuma. Absolutamente nenhuma análise. Havia o conhecimento holístico. Com os arquitectos era a mesma coisa. A qualidade da obra era um reconhecimento de natureza holística, se quiseres. Isto é, o pintor, sabia que era pintor, olhava para uma pintura de outro artista e via logo, se era boa, ou se era má, mas não era capaz de dizer absolutamente nada… Uns quatro ou cinco fatores, não é, para constituir um critério para poder dizer o que é que era bom ou era mau…. Isso não existia, nunca. GF - Como alunos respeitavam essa interpretação holística, porque provinha de um grande pintor? JV - Não davam opinião nenhuma. Eu já te disse, só nos davam a nota no fim. Nunca me davam opinião nenhuma sobre as coisas que eu fazia. Perguntavam - Então, tudo bem?!, Continue!... GF - Resultava numa quantificação, exprimia-se numa classificação. Houve uma crise em 1968, que deve ter tido repercussões. No final dos anos 60, apresentaram-se nas Belas Artes trabalhos extraordinários para a altura, como o teu ou do João Dixo. JV - O meu, está no meu blogue. Estou a falar de mim, mas eu posso falar do Júlio Bragança, do Nuno Barreto, João Dixo, mas não de muitos mais. A nossa obra era de ruptura total com o modelo vigente referido à obra de Júlio Resende poucos mais. Poucos alunos faziam abstração, ou informal ou geométrica, embora não fosse impedida. GF - O João Dixo teria mais alguns anos. JV - Foi meu colega, ele era mais velho que eu 3 anos. GF - Joaquim Vieira experimentaste a Op art. JV - Mais do que experimentar era o meu “campo artístico”, a tendência que eu seguia. Comecei influenciado com o que via nas revistas de vanguarda que assinava – eu tinha uma bolsa da Gulbenkian que me dava para várias despesas. São os meus trabalhos escolares. Começaram no fim do 3º ano e depois foi assim até ao fim do 5º. Só passava para o 5º ano quem tinha média de 14 no 4º . Aí 40 % dos alunos não passavam. GF - Também por isso, é que tiveste aquele interesse ou experiência com o design? JV - Não. Não há qualquer relação. Eu ignorava que o Design existisse. Eu dirigi o curso de Design não por escolha mas por pedido da Reitora e por nomeação. GF - O seu exame de saída, consistiu num trabalho grande, em plástico pintado. JV – Sim, tem 140X140cm. Ainda está na minha posse, mas vou entregá-lo ao Museu da FBAUP que é o seu lugar. Esteve exposto numa Exposição na Reitoria organizada pela professora Lúcia Matos e até pode ser visto no Google se se usar o meu nome Joaquim Pinto Vieira Pintor. Isto é uma obra feita em polietileno, plástico transparente, montado em várias grades de madeira, pintado à pistola com pontos negativos e positivos. GF - Nas paredes da Reitoria acho que estava uma pintura tua. JV - Sim, costumam a colocar várias de muitos alunos, o que é uma boa ideia. GF - Essas obras não eram vulgares ou habituais? JV - Em nenhuma Escola do mundo se fazia isto, creio eu. Isto era a permissão maior… e quando vivíamos em fascismo e ditadura. Em Lisboa, nem pensar. Aí os estudantes faziam a pintura mais convencional, em tela e com temas mais ou menos académicos ou convencionais. GF - Então em Lisboa também era, como em arquitectura, um pouco mais conservador. JV - E na arquitectura era a mesma coisa. Na arquitectura continuou a ser sempre, enquanto a arquitectura aqui mudou. Por causa do 25 de abril. Não foi só por causa do 25 de abril. Em Lisboa, o pós 25 de abril, não teve o efeito que teve aqui em cima. Não houve saneamentos nem dada. Mas aqui foi uma revolução. GF - Rompeste com a pintura abstracta? JV - Eu quando vim da tropa já não fazia pintura abstracta, eu fiz uma ruptura epistemológica, para usar um termo pesado. Isto é, mudei de mundo. Aliás, escrevi nessa altura um texto à Comissão da Sociedade Nacional de Belas Artes que me convidou para participar numa Exposição sobre abstração e eu recusei participar. Recusei pois o abstracionismo já me era estranho. GF - A tua recusa com a abstração foi por a veres como redutor para ti? Teve a ver com a experiência da guerra? Ou? Muitos passavam por exemplo pelo Neo-realismo. JV - Eu ainda não estava em Angola, aliás estava na tropa, já estava cá em Mafra ou em Lisboa. Eu recusei por razões ontológicas. O abstracionismo é um reducionismo, na própria designação. O abstracionismo é uma segregação, é uma redução. Quer dizer, um pintor abstracto é um pintor que só pinta uma parte daquilo que pode fazer e ver. Um pintor da representação é que inclui tudo. A abstração reduz, a representação é tudo, seja a representação mental, seja a representação do real. Não há abstracionismo real e abstracionismo mental. O abstracionismo é só um. E por isso, nessa altura, era insatisfatória para mim a experiência abstracta. Tinha sido muito forte, tinha sido muito forte e muito radical. Foi evidente que eu não ia ter uma vida a pintar que me recusava as experiências para além da sensorialidade, da estética formal. O mundo do sentimento, da simbólica da mítica tinham que ser experimentados e explorados. GF - Bem… E expor minimalismo puro em Lisboa por volta de 1970. JV - É, na Galeria Buchholz, que era a mais conceituada e depois no Porto, na Galeria Alvarez. Em 1970 a pesquisa ou reflexão artística dentro da abstração leva-me ao minimalismo. Tinha havido em Paris uma grande exposição dos minimalistas Americanos, que eu vi, mas já conhecia pelas revistas. Isto é, atrasado 10 anos do minimalismo americano, o que para Portugal é bem bom! Quer dizer ninguém compreendeu o que era aquela exposição. Tinha o destino marcado do esquecimento. A diferença temporal não é nada, não é fazer minimalismo hoje quando passaram 50 anos como a maioria das coisas que eu vejo para aí, é que é. Naquele tempo era um envolvimento intenso num ideário de vanguarda. GF - Joaquim colaboraste com alguns colegas arquitectos com obras decorativas? JV - Tive muitos colegas e outros antigos alunos, como o arquitecto José Cruz com quem colaborei com a realização de vitrais em vidro gravado a ácido, o Alcino Soutinho, o Souto Moura, o Alves Costa/Sérgio Fernandez, o José Quintão e pinturas murais como Manuel Correia Fernandes, o Manuel Sá e outros mais. GF - E o João Dixo ou outros. Havia experiências nos anos 60 com Art Povera, ou por aí adiante. JV - O João Dixo, na escola em 1966, fazia obras de pinturas com sarapilheira colada na tela na linha da “Art Povera”. Mas no ano seguinte fazia pintura figurativa. O Nuno Barreto manteve-se até ao fim numa figuração pop . GF - E o José Grade, em período anterior porque era mais velho, fazia escultura. JV - O Grade, foi conhecido, foi dos primeiros jovens em Portugal a fazer escultura em ferro. E era ele que fazia, soldava e tal. Mas depois quando começou a dar aulas deixou de fazer as construções em ferro. Não fez mais nada. Eu conhecia bem o atelier dele na “Casa Gótica”. GF - O Escultor Barata Feio era um mestre consagrado da escultura, já desse período antes em que a escola vinha sendo dirigia pelo Carlos Ramos. JV - Não. Ele entra para a Escola convidado pelo Carlos Ramos que é director da Escola desde 1952. Era o escultor mais prestigiado na zona do Porto. Em Lisboa havia outros. GF - O Carlos Ramos trouxera para a escola, jovens como o Távora ou o Lixa Filgueiras. JV - Por isso é que foi o criador desta dinâmica toda e que trouxe para a escola o Távora, o Filgueiras, etc. GF - Que memórias tens do Carlos Ramos, que viera de Lisboa, no espaço das Belas Artes do Porto. JV - Nunca falei com ele pessoalmente, ele nem dava aulas, ele era só Director. Só vinha, julgo, segunda, terça e quarta, e a quarta-feira à tarde ia embora e ficava em Lisboa o fim de semana. Mas tinha um papel decisivo e lúcido sobre a evolução da Arte moderna. Era um arquitecto modernista com prestígio e obra. Escrevia uns textos nos Catálogos das Magnas, que vale a pena ler. GF - Introduziu como professores muitos dos melhores arquitectos da cidade. JV - Ele veio e escolheu a malta mais interessante em todos os domínios. Da arquitectura, não há dúvida nenhuma que na escola estavam os arquitectos melhores da cidade. E fez o mesmo na Pintura e Escultura. Foi homem com visão. GF - Na tua altura de estudante ainda ocorriam as célebres exposições Magnas. JV - Sim acabaram em 1966, se não erro. Depois ele abandonou a Direção e nunca mais houve. GF - Passado uns anos, em determinado momento, esteve como director o escultor Joaquim Machado. Chegou-me a dar aulas de desenho… JV - Depois da saída do Carlos Ramos o arquitecto António Brito, foi nomeado Director mas não foi aceite pelos docentes e pelos discentes pois a contestação na Escola depois do “Maio de 68” era tão forte que ele não conseguia aguentar o clima. Mas suportou a situação de caos até 1973. Aí o Escultor Joaquim Machado, que foi practicamente meu colega, foi nomeado pelo Director Geral, Director da Escola e foi imediatamente contestado pelos Arquitectos. No dia 26 de Abril foi saneado da Escola com outros docentes próximos de si e funcionários. GF - Antes, a Escola de Belas Artes do Porto, como a de Lisboa também, dependiam da chamada Direção Geral do Ministério da Educação. JV - Sim. E no Porto nem aviões havia, só havia comboio, que demoravam umas 7 horas... Qualquer coisa que acontecesse no Porto só chegava a Lisboa passado para aí uma semana, a transmissão dos fatos era remota e isso ajudou a que a realidade pudesse ter sido essa. “Lisboa era o que contava e o resto era paisagem”. GF - A realidade do Porto era de maior grande independência relativamente a Lisboa, sobre todos os pontos de vista, positivos e negativos. JV - Por isso tudo o que acontecia no Porto chegava a Lisboa completamente adulterado. E o que acontecia cá, era decidido cá. Agora, se era decidido qualquer coisa que era perigoso para o regime, ou não sei quê, etc, vinha logo a PIDE. GF - Nas Belas Artes do Porto deram-se experiências inovadoras. JV - Isto era um atraso assombroso. É por isso que é assombroso ao mesmo tempo, que eu fizesse aquelas pinturas numa escola de Belas Artes, coisas que nem em Londres se fazia, ou em Nova Iorque. Que coisa maluca, quando olho para aquilo. E não sou eu o responsável, foi-me permitido. GF - Criou-se uma dinâmica de ruptura artística, nos anos, no período do João Dixo e etc. Vi-o a ensinar, em Coimbra, na Arca. JV - Falaste no João Dixo… Foi no ano do João Dixo e do Nuno Barreto, que foi o grande ano da ruptura desta coisa. Eu nunca me esqueço. Ele estava no 3º ano e eu estava no primeiro e ele na Disciplina de Pintura I dirigida pelo Pintor Augusto Gomes pintor maior da cidade e pessoa aberta e de esquerda. E o tema que ele proponha, homenagem ao Pomar era um tema neo-realista, GF - O almoço do trabalhador, do Júlio Pomar? JV - E foi: eu tenho a imagem mental completa, sou capaz de fazer o quadro…. Uma placa de tábua de tabopan com panos colados, coberta de um verniz brilhante, sintético e acastanhado, depois bocados de milho, uma panela de alumínio aparafusada, e bocados de arroz espalhado por cima. Isto foi em 1965. GF - E performance, happenings, etc O Armando Azevedo do “Puzzle” foi meu professor de Estética. JV - Isso é mais tarde, depois do 25 de Abril. O “Puzzle” é um processo a seguir a mim, em termos nacionais. Depois de eu sair para ser pintor minimalista e ir para a tropa, quando passado 3 anos volto para o Porto, em termos artísticos, eu já não conhecia a cidade. Os tempos de outros e tinha começado o negócio da arte com galerias novas e gente a comprara arte. Nunca tal tinha conhecido. Foi o 25 de Abril… IX - QUE FUTURO PARA A PRESENÇA DO DESENHO NUM CURSO DE ARQUITETURA OU DE ARTES PLÁSTICAS NO TEMPO DA “IA”? / GF - O que pensas, depois de teres deixado o curso há alguns anos, sobre o que virá? JV - Hoje passados 50 anos do início do curso e perante os avanços da digitalização da imagem que sempre se colocaram no curso desde o tempo do “desenho apoiado pelo computador”, que o Nuno Portas, para nos provocar, a mim e ao Carneiro, dizia nas reuniões do CC, - “o desenho à mão vai acabar”, qual o papel que o desenho tem na formação do arquitecto? Recordo que como já disse na parte sobre o Curso do Minho que o Desenho serve um projectista, seja Arquitecto ou Designer, em três âmbitos: Concepção, Formalização, Ilustração. Isso é verdade hoje? Eu defenderia isso se estivesse a ensinar? Os alunos acharão isso motivante, necessário conveniente e alternativa substancial aos meios digitais inteligentes? Entrei no Curso com a sua criação e na consolidação de um modelo formativo historicamente marcado. Saí há 15 anos com o aparecimento do “Processo de Bolonha” que destruiu muitas das bases conceptuais da relação ensino aprendizagem e criou outras. Não tenho posição de apoio ou recusa apesar das muitas críticas ou desilusões que ouço. A criação de imagens é a condição da criação nas artes plásticas, incluindo a arquitectura. Esta convicção minha é discutível e possivelmente irrelevante. Mas foi a ela a que cheguei pelas contribuições das ciências neurológicas, psicológicas e quânticas, até, e pela minha experiência pessoal de criador de imagens, elemento justificador mais débil. Também é para mim evidente que o Desenho é a única maneira de aceder às imagens que se formam na nossa mente - chamamos imaginação. Essas imagens são as de tipo sentimental, simbólico e mítico. As imagens da abstração e da geometria que são básicas no universo visual do arquitecto dependem do domínio da geometria e esta depende hoje definitivamente do domínio da informática. A mente humana não tem a mínima capacidade para competir com a máquina digital. Por isso penso que a disciplina de Geometria é essencial e primordial. Mas a Arquitectura é, em última instância, um suporte da qualidade da vida do homem que é, acima de tudo, isso que o Desenho permite. GF - Mas o que vemos em muitas escolas ou países não evidencia essa realidade no processo projectual que parece assentar em outros paradigmas ou motivações. JV - Quando dava aulas havia alunos “Erasmus” que vinham da Holanda de Escolas que não tinham Desenho. Vindo às aulas de Desenho, mesmo sendo alunos do 4º ano, onde a utilização do desenho pelos alunos nacionais do curso era avassaladora, ficavam tão perturbados por não saber como se mexer. Vinham tentar na Disciplina de Desenho aprender alguma coisa. Eram esforços vãos. Eles consideravam que projectar, o básico é ter uma metodologia conceptual. Nas artes plásticas há muitos artistas e correntes em voga que vivem a mesma realidade. Eu sempre achei que para se projectar, seja lá o que for, pode não se utilizar o desenho. A arquitectura orgânica mais robusta usa a construção em directo, como se fosse escultura. E as obras de Mies talvez se possam fazer sem que seja necessário esquissar nada. GF - Mas o ChatGTP? (risos) JV - Se eu disser a um ChatGPT, - faz-me o desenho que achares que te interessa ou que interessa a outros, ele sabe responder? E, se não souber, ficamos como antes. Ele pode responder à pergunta perante o arquivo de dados que o apoia ou a que recorre. Mesmo sendo imenso nunca se poderá aproximar do arquivo que é a mente/corpo de um ser humano normal e menos ainda de um ser humano que tenha estudado e visto desenhos. A 3ª Geração GTP, já experimenta máquinas que são capazes de “criar”, isto é, depois de as deixarmos sozinhas e quando lá voltamos verificamos que elas “pensaram por si mesmas”, não respostas, mas perguntas. Mas para mim a questão básica é aquela que sempre me guiou a orientar o Desenho nos cursos de arquitectura do Porto e do Minho. O que me interessa como humano é a “relação humana”. Não é a relação entre o homem e a máquina. Essa sempre foi um meio a outra é um fim. Eu quero morrer com a memória da minha vida com os outros, não com a memória do meu carro de condução autónoma. GF - Mas na FAUP que caminhos se podem seguir para responder a uma nova realidade que todos desconhecem, mas muitos acham que será cada vez mais impositiva? JV - Sei que não sei. Mas sei que o curso criado em 1975 foi o resultado de uma Revolução, coisa que eu pessoalmente não aprecio, pois as revoluções destroem quase tudo à sua volta e tende-se a retomar o existente. Prefiro as Reformas. Isto é, ter a consciência dessa velha sabedoria Chinesa de que a mudança (I Ching) é o que nos espera, nos salva e nos deve entusiasmar, não amedrontar. Isso implica que a atitude intelectual dominante deve ser a de “Debater”. O debate é uma pergunta, e uma resposta, que se continuam. Quer a pergunta, quer a resposta surgem mais duma atitude proactiva e aberta do que uma programática ideológica e política que são os ingredientes das revoluções. Devemos estar atentos às necessidades. A “necessidade”, como dizia Jung, é “o regulador mais eficaz pois estabelece limites à realidade o que é mais convincente e eficaz do que a pregação doutrinária e moral”. Voltando à Escola de hoje e ao exercício profissional, o que se torna mais evidente como zonas de ruptura, de desadequação, de estrangulamento e de impedimento de avanços e de afirmação da originalidade? Estes parecem-me ser algumas das chaves para abrir essa baú sem fundo que encerra o futuro. Gonçalo Furtado arquitecto Joaquim Pinto Vieira pintovieiradesenho.blogspot.com

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