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CONVERSAS SOBRE A ESCOLA DO PORTO_48 Nuno Grande (com Gonçalo Furtado)

CONVERSA SOBRE ARQUITETURA E ESCOLA DO PORTO _ Fevereiro 2024 (Nuno Grande, com Gonçalo Furtado) I./ [Gonçalo Furtado] - Propunha falarmos de arquitetura e do teu percurso./ A primeira questão seria biográfica. Nasceste em Luanda em 1966./ Como recordas o teu percurso antes de vires estudar Arquitetura? [Nuno Grande] - Pensando um pouco na minha infância e juventude, eu acho que comecei a gostar de arquitetura quando vivia em Luanda, em África. [GF] - Existem muitos edifícios de arquitetura moderna portuguesa em África. [NG] - Que me despertavam uma curiosidade enorme. [GF] - Dizes que Luanda despertou o teu interesse pela Arquitetura. [NG] - Sim. Interrogava-me: “Quem desenhou isto? O que são estes edifícios?” [GF] - “Que proposta de habitar é esta?” [NG] - Eu tinha 8 anos, mas era um fascínio que eu tinha por uma arquitetura que, quando vinha a Portugal nas férias, não via com tanta abundância. [GF] - A tua família era do Porto. [NG] - Os meus avós viviam muito perto da Faculdade, ali no chamado “Bairro Hollywood”, onde dominam umas moradias, estilo “cidade-jardim”. E eu, jovem, achava que Portugal era um país do tipo ruralista, de casas unifamiliares, isoladas. [GF] - Luanda era uma cidade progressista com arquitetura moderna. [NG] - Não estava muito enganado. Claro que havia edifícios modernistas no Porto, fantásticos, mas, para mim, a cidade moderna era Luanda. E rapidamente aprendi que, no fundo, aquilo tinha sido feito por arquitetos da diáspora. Muitos deles tinham ido para a África porque não conseguiam trabalhar aqui, por estarem contra a ditadura./ O meu pai, que era médico e professor universitário, fora para África porque não queria estar aqui, não conseguia imaginar-se na Universidade do Porto de então. [GF] - O teu pai foi para a África ajudar a fundar a Faculdade de Medicina de Luanda. [NG] - Que ainda é hoje a Faculdade de Medicina de Luanda. Portanto, para mim, a ideia moderna, da “Cidade Nova”, era lá, não era aqui. [GF] - E, portanto, esta ideia, se calhar muito moderna, do arquiteto que constrói a “Cidade Nova”. [NG] - Ficou-me no subconsciente. [GF] - Fizeste o secundário todo já em Portugal? [NG] - Eu vim com 8 anos, portanto fiz o fim da primária e o secundário todo cá./ Naquela altura, quando estou a decidir o que fazer no secundário, faço um teste vocacional, no princípio da década de 1980, e dá-me “Arte e Arquitetura”./ E, como a minha mãe gostava muito de Arquitetura, tinha amigos arquitetos… [GF] - A tua mãe era professora de Química, mas tinha uma relação com Arquitetos Portuenses. [NG] - Sim. Enquanto estava na Universidade aqui no Porto, tinha aulas de Matemática e outras disciplinas “científicas” com os arquitetos da Escola de Belas Artes. Com o Alexandre Alves Costa, com o Sérgio Fernandez, com o Pedro Ramalho... A minha mãe era amiga deles, e falava-me muito sobre essa amizade. “Há uns arquitetos no Porto fantásticos, gostam de Cinema, gostam de Arte, são muito progressistas” …/ Comecei a pensar que seria interessante ser, um dia, aluno desses arquitetos… [GF] - E enveredaste por esse caminho. [NG] - Fui aluno de alguns deles. Eles falavam comigo, mas sempre a lembrar a minha mãe. Não tanto a valorizar o meu trabalho. Estou a brincar... (Risos) [GF] - A tua mãe conheceu essa geração que esteve muito ligada à luta anti-ditadura, uma geração muito interessante de arquitetos do Porto. [NG] - Sim, portanto, eu diria que a memória da África misturada com os amigos arquitetos dos meus pais e o meu teste vocacional levou-me a optar por essa ideia de experimentar arquitetura. Mas devo dizer que entrei no curso sem ter nenhuma noção do que me esperava. [GF] - E entraste em 1984. Como recordas o curso? [NG] - Sim. Acho que sei quando descobri, no curso, que queria ser arquiteto. Por altura do 3º ano. [GF] - Quem eram os colegas do teu ano? João Pedro Serôdio, Cristina Guedes, etc. Qual era o ambiente? [NG] - Sim, esses eram alguns deles. Era também colega do Paulo Seco. O Jorge Figueira entra no ano seguinte com o Pedro Gadanho. [GF] - O Jorge Figueira estudava Engenharia. [NG] - Era do curso de Engenharia e mudou para Arquitetura. Ele fez esta transferência através do curso de Engenharia. Em 1984, eu entro ainda nas instalações da Escola de Belas Artes. Ainda não havia o edifício da Faculdade de Arquitetura onde estamos. [GF] - Conheces o ambiente das Belas artes. [NG] - Conheço imensa gente do curso de Belas Artes. Foi uma experiência incrível, conhecer os artistas dessa época, alguns deles, estavam na área da performance. [GF] - Ainda estamos na altura da performance. [NG] -1984/85, e eu achava fascinante como as artes eram muito mais livres do que a arquitetura. Nós tínhamos aquelas aulas com entregas e com horários rigorosos, e os artistas eram livres e faziam performances no Jardim das Belas Artes. (Risos) [GF] - Nesse período as obras da Faculdade estavam a começar. [NG] - Sim. Em 1984 estava a Faculdade a começar. Primeiro pelo Pavilhão Carlos Ramos. [GF] - É o período do início da Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto. Portanto, em 1984/85, estudas no Pavilhão de Arquitetura da ESBAP. Como descreves esse ambiente? [NG] - Subia muitas vezes aos pisos de cima para ver os trabalhos dos colegas mais velhos. Por exemplo, do Paulo Providência, do José Fernando Gonçalves. [GF] - Que eram um bocadinho mais velhos. [NG] - Eu ficava intrigado, porque nessa altura estava na moda revisitar a obra do Aldo Rossi. Eu olhava para aqueles projetos, e eram quase todos “Gallaratese”, de várias escalas, tamanhos e feitios. Uma Escola muito “rossiana”, portanto. [GF] - Muitas gerações esqueceram-se que essa podia ter sido também a/uma via explorada pela escola. [NG] - Mas o rossianismo criou também Escolas muito dogmáticas. Em Itália, há muitas Escolas rossianas que estão num beco sem saída. [GF] - O Rossi pode-se ler a partir do estilo ou a partir do método. [NG] - A maior parte das Escolas italianas liam o Rossi a partir do estilo, copiavam os arquétipos rossianos. [GF] - Teve de facto uma presença esse pensamento na Escola… [NG] - Teve uma presença na Escola, que eu já não apanhei. Eu, no fim, ainda apanhei algumas sombras disso, mas aprendi a gostar do Rossi a partir do seu livro “A Arquitetura da Cidade”. [GF] - Eu lembro-me de que no 2º ano ainda fiz esse tipo de desenhos. [NG] - Devo dizer que havia muito poucas pessoas que compreendiam verdadeiramente o Rossi na Escola do Porto. Talvez a única pessoa que falava dele com conhecimento de causa, mais profundo, era o Eduardo Souto Moura. [GF] - Dizes que uma das poucas pessoas que compreendia verdadeiramente o Aldo Rossi na Escola era o Eduardo Souto Moura. E a primeira aula que ele deu foi precisamente sobre o Rossi. [NG] - Faz parte do conjunto de conferências que ele gosta de dar… [GF] - O Souto Moura tinha sido aluno dele em 1976, em Santiago de Compostela. [NG] - Sim, e tinha lido tudo sobre o Rossi. Havia, na Escola, uma aderência epidérmica aos desenhos do Grassi e do Rossi. Sobretudo do Grassi, porque eram belíssimos, com aquelas sombras muito carregadas. E havia a ideia de que tudo se podia resolver com colunatas e janelas aos quadrados ad nauseum. II./ [GF] - Os anos 1980 podem ser vistos como os anos de viragem, entre a herança do SAAL e o caminho para o Pritzker. Em termos de internacionalização sobretudo. O Siza era conhecido pela obra da Casa de Chá e pelas Piscinas de Matosinhos. [NG] - Eu lembro-me que ainda se falava da Casa de Chá “de Álvaro Siza e de Fernando Távora”. Porque o Siza tinha feito o projeto dentro do atelier do Fernando Távora. E só por essa altura é que se começa a editar a obra como uma obra exclusivamente do Siza. [GF] - Estamos a falar de uma obra que já tinha um par de décadas./ Nessa altura o Siza começa a emergir como motor-autor único na Escola do Porto. [NG] - E que se tinha libertado de todos esses constrangimentos geracionais anteriores. [GF] - E que tinha descoberto um caminho. [NG] - Lembro-me de uma exposição dele na Holanda, por essa altura, 1985. Toda a gente dizia que a exposição era fantástica, que devíamos fazer uma viagem à Holanda para a ir ver. [GF] - Por essa altura em 1984/85, aderiste também a encontros da EASA. [NG] - Por essa altura falava-se muito da EASA. [GF] - A European Architecture Students Assembly. [NG] - Sim. Nós aderimos imediatamente à EASA. Os estudantes mais ativos começaram logo ir aos encontros durante as férias de verão. [GF] - Foste a 2 encontros. Em 1986/87 na Finlândia e em 1987 a Berlim./ Nessa altura, tínhamos acabado de entrar na Comunidade Europeia. [NG] - No ano de 1988, fomos a Berlim. [GF] - Quem foi contigo ao encontro de Berlim? [NG] - Ainda não éramos uma Associação de Estudantes quando fomos à Finlândia. Fomos lá perceber uma realidade que não conhecíamos. Outras Escolas de arquitetura que tinham revistas de estudantes, associações de estudantes, que promoviam debates./ A própria EASA era muito interessante, porque nela se debatiam temas alargados a toda a Europa. [GF] - Dizes que não se discutiam esses temas aqui? [NG] - Quando voltamos dessas férias, que na verdade eram de trabalho (risos) na Finlândia, pensamos: “Nós devíamos era fundar uma associação de estudantes aqui na FAUP, e fazer uma revista de estudantes”. A Escola da Arhus, por exemplo, na Dinamarca, tinha uma revista fantástica que tínhamos trazido como referência. [GF] - Por essas viagens resolvem pensar na criação da Revista, e em 1987/88 formam a Associação de Estudantes. Como se deslocavam? [NG] - Íamos em Inter-rail. Na viagem até a Finlândia parámos em vários sitos. [GF] - Era uma coisa organizada pela Faculdade? [NG] - Não. Nós inscrevíamo-nos... Ainda não havia internet na altura (risos), mandávamos uns boletins por correio com os nossos nomes.... [GF] - Mandavam a inscrição para a EASA? A FAUL já estava integrada na EASA. [NG] - A EASA era uma congregação europeia. A FAUP não tinha relações com o evento. Ela surge através de arquitetos amigos de Lisboa. Portanto, nós íamos muito a reboque dos nossos colegas de Lisboa. Íamos todos de comboio. Éramos 4 ou 5, estávamos lá durante 15 dias. Quando voltávamos, trazíamos todas essas novidades. [GF] - A ideia de fazer uma revista surgiu imediatamente./ E em 1984, o teu ano era composto por quantas pessoas? [NG] - Cerca de 60 alunos. [GF] - 3 turmas de Projeto, ainda no Pavilhão de Escultura da ESBAP. III./ [GF] - O ano de 1984 é quando a direção já estava a transitar do Fernando Távora para o Alexandre Alves Costa. [NG] - A transição do Távora para o Alves Costa eu não me lembro. Nós entrevistámos o Alves Costa para a revista já como diretor, e penso que tenha sido nessa altura./ Nós regressamos em 1987 da Finlândia e formamos a Associação de Estudantes. [GF] - Em 1987/88 formaram a Associação de Estudantes. [NG] - Organizámos as eleições, e concorremos com uma lista. Penso que não havia nenhuma outra lista concorrente. Acho que éramos os únicos./ Ninguém se aventurava a ser nessa altura Presidente da Associação de Estudantes de Arquitetura, porque, na verdade, também havia esta ideia de que as Associações de Estudantes estavam muito ligadas à Academia. Nós ainda estávamos a viver o rescaldo do período revolucionário. Tudo o que tinha a ver com a Academia ainda era visto como algo do “outro tempo”. [GF] - Nessa altura, já havia Associação de Estudantes em praticamente todas as faculdades. [NG] - Não havia na FAUP. [GF] - A Faculdade era recente também. Mas tu e alguns desses outros eram os “bons alunos” do ano? [NG] - Eu fui sempre um aluno de 14, 15, 16... Também não se davam notas muito altas nessa altura. (Risos) [GF] - 16 era a nota mais alta. [NG] - Cheguei a ter 16 no 3º ou 4º ano! Mas era normalmente 14, 15... andava por aí. [GF] - Era uma questão reativa. [NG] - Sim reagir, mas não no sentido de “estar sempre do contra”. Nós queríamos mudar as coisas por dentro. Às vezes pensa-se que a Revista “Unidade”, que ajudei a fundar, foi feita contra a Escola do Porto e contra a sua direção. Nós respeitávamos os nossos professores. Hoje debate-se muito a ideia de “matar o pai”, cortar uma relação geracional. Nenhum de nós queria “matar o pai”. [GF] - Queriam mudar por dentro. [NG] - Queríamos usar a própria força da Escola do Porto para a pôr a pensar-se. [GF] - Mas não para a destruir! Esse lado mais reativo apareceu mais tarde, quiçá já noutras iniciativas. [NG] - Nós não o tínhamos. [GF] - Há uma frase situacionista do Jorge Figueira que diz “Não há romance nesta Escola”. [NG] - Sim, “Não há romance nesta Escola”. E que, no fundo, tenta trazer a vida do aluno para dentro da Escola do Porto, a qual, na época, impunha um método de trabalho muito padronizado, muito rígido. [GF] - Os dessa iniciativa eram alunos, melhor ou pior, com vivência desse método. [NG] - Na altura, um aluno que não passasse a Projeto e a Desenho, não passava de ano. Tinha de passar às duas disciplinas. [GF] - Tinham de ser uns virtuosos no Desenho e do Projeto. [NG] - Não tanto por nós, porque nós desenhávamos e fazíamos um esforço para ser alunos razoáveis. Mas vimos muitos colegas que não passavam no 1º ano, não porque não tivessem ideias, ou não fossem criativos, ou “românticos” digamos…, mas porque não tocavam os instrumentos exigidos pela Escola. [GF] - E tinham de conhecer a História da Arquitetura. [NG] - Sim, essa era também uma disciplina exigente. [GF] - Daí se poder conceber “usar a própria força da Escola para a pôr em debate”. [NG] - Irritava-nos muito, essa ideia de que não havia lugar para outras formas de estar na Escola que não fosse a de saber desenhar. [GF] - Pela forma de representação, pelo saber desenhar, e com as linhas próprias. [NG] - E nós íamos ao Cinema, víamos a MTV, e gostávamos da cultura Pop… não te esqueças que estamos no início do Pós-moderno. [GF] - Viam filmes de realizadores que punham em causa a própria História do Cinema. [NG] - Íamos ver exposições de Arte e víamos artistas que punham em causa a própria História da Arte. [GF] - Da Arte Pop, por exemplo, em meados dos anos 80, como o Andy Warhol. [NG] - Sim. Hoje parece ridículo usar o Andy Warhol para provocar, porque, na verdade, o Andy Warhol tornou-se consensual. Mas em 1984 não era assim.../ Ele estava ainda vivo, morreu passado três anos... [GF] - A geração da revista Kapa. [NG] - Sim, tem também a ver com isso. [GF] - Nós já estávamos num período menos politizado, e surge por exemplo o Miguel Esteves Cardoso. [NG] - E nós gostávamos de escritas contundentes de certas pessoas que a esquerda tradicional não apreciava. O Miguel Esteves Cardoso, o Paulo Portas, e até o Miguel Portas que era um pensador heterodoxo… [GF] - O Paulo Portas tinha lançado o jornal “O Independente”. [NG] - Que era um jornal que nos dizia alguma coisa, pela sua irreverência… menos pela ideologia. [GF] - O qual era contundente e inteligente na forma como criticava o poder. Na altura, o poder era o Cavaquismo. [NG] - E, portanto, a nós também nos interessava alguém que ajudasse a partir a loiça, não é? O Jorge Figueira é um grande conhecedor de música. Lia tudo o que havia sobre música, e era um leitor compulsivo do Miguel Esteves Cardoso quando ele escrevia no “Se7e”. [GF] - E depois no “Blitz”, sobre música. [NG] - Eu gostava imenso de cinema e ia, regularmente, ver coisas que me interessavam e que não entravam nos padrões rígidos da Escola… [GF] - Já não havia só o Neorrealismo. Era a época do Pedro Almodóvar, do “Madrid Me Mata”. [NG] - Sim, esse pós-moderno herege… E cá no Porto havia o bar “Aniki Bobó” onde nos encontrávamos todos… [GF] - O “Aniki Bobó” abriu as portas em meados dos anos 80 e foi dos primeiros com Dj. [NG] - Se não mesmo o primeiro bar do Porto a ter DJ. Não sei em que ano abre, mas é por aí, 1984, 1985. Era uma primeira aproximação a esse lado festivo, lúdico, do pós-modernismo. [GF] - O “Meia Cave” abre depois. [NG] - Estávamos num momento em que nós gostávamos muito de ir a Lisboa ver o que se discutia. Embora não aderíssemos totalmente, achávamos bonita aquela ideia de que se pode viver e debater arquitetura com um copo de champanhe na mão, no bar “Frágil” (Risos). E aqui nós não tínhamos champanhe nos debates... [GF] - Achavam que a Escola tinha que se deixar contaminar por esse lado da vida. E resolveram então fazer uma revista que dizia: “Atenção, que há outras coisas lá fora”. [NG] - Sim. Uma revista que é, ao mesmo tempo, um olhar para fora, mas também para dentro da Escola. Portanto, o primeiro número da “Unidade” coloca a Escola, direi, “em jogo” ou “em questão”. E olha para Berlim, por exemplo. [GF] - Em 1988, Berlim era nomeada Capital Europeia da Cultura. [NG] - Eu escrevi um artigo sobre Berlim nesse ano. [GF] - Em que falas do Wim Wenders e das “Asas do Desejo”./ Um filme melancólico, mas que tem muitos traços oníricos e poéticos./ Não acontece neste filme em concreto, mas o costume é ser sempre o cinema alemão a olhar para a América. O Wim Wenders tinha feito o “Paris-Texas”. [NG] - Que era um filme fantástico, que nós todos adorávamos. Ou seja, havia um lado cinematográfico sobre a arquitetura e a cidade que adorávamos. [GF] - Ou no design. [NG] - Sim, adorávamos a revista “Face”, o design de Neville Brody; a banda New Order e o design do Peter Saville… [GF] - Havia uma relação com a cultura pop inglesa/americana, e com a nova geração do cinema alemão. Sensibilidades, digamos assim, que vocês não viam discutidas aqui na Escola. [NG] - Não se discutia isso, é verdade. E, portanto, intuíamos que a revista “Unidade” tinha de falar destas coisas./ Para a revista ter algum impacto, resolvemos fazer uma provocação: uma noite, antes de lançarmos a revista, e antes de irmos para Berlim, ao segundo encontro da EASA, viemos aqui. Escrevemos a tal frase no muro da Escola. [GF] - A tal frase do Jorge Figueira “Não há Romance nesta Escola”. [NG] - Sim, bom, e viemos por aí, pela calada da noite, e começamos a grafitar.../ [GF] - A Escola ainda só tinha o pavilhão Carlos Ramos e as Cavalariças. Vocês já eram alunos do 3º ano, já estavam no Pavilhão Carlos Ramos. [NG] - Viemos pela calada da noite e começamos a escrever “Não há...” e de repente, começa a tocar o alarme da Escola. E nós ficámos atónitos porque sabíamos que a seguir vinha um vigilante e punha-nos dali para fora. (Risos) [GF] - E o que fizeram? Meteram-se no carro? [NG] - Nós não tínhamos carros. Fomos a pé, para o Capa Negra, esperar que a polícia ou o vigilante passasse e visse que estava tudo bem. E decidimos que voltaríamos mais tardem para pintar o resto da frase. Por coincidência, passam na rua, de carro, o Alexandre Alves Costa e o Sérgio Fernandez, que tinham acabado de sair de uma reunião e que nos vêm. [GF] - O Alexandre e o Sérgio vêm um grupo de alunos que os conheciam com latas de tinta na mão. (Risos) [NG] - Pois... E pararam e disseram: “O que é que vocês estão aqui a fazer?”. E nós dissemos: “Acabámos de fazer tocar o alarme da Escola e, portanto, provavelmente vocês amanhã vão receber um relatório a dizer que houve uma tentativa de assalto, mas não foi. Nós fomos pichar uma coisa”. [GF] - E eles? (Risos) [NG] - Perguntaram “O que é que vocês foram para lá escrever?”. Nós dissemos que não podíamos dizer, que era uma surpresa… Eles levam-nos lá, com fair-play e dizem: “Podem continuar a escrever”, ao que respondemos: “Sim, mas nós não vamos continuar a escrever com vocês aqui. Nós vamos continuar a escrever e vocês só amanhã é que saberão o que é que está escrito”. “Mas não há… o quê?”, “Não há?”. [GF] - Eles queriam que vocês continuassem. (Risos) [NG] - “Pronto, continuem lá”. E foram-se embora. [GF] - E no dia seguinte chegaram e estava lá escrito “Não há romance nesta Escola”. [NG] - Eles levaram aquilo como uma brincadeira, mas também como uma espécie de aviso de que nós não estávamos satisfeitos. [GF] - De que não estavam contentes com a maneira como o Ensino da arquitetura poderia congelar-se aqui. [NG] - No fundo, queríamos questionar os próprios alunos… se eles estavam contentes de estar ali. Eu não sei se foi na mesma noite, ou se foi numa noite seguinte, mas o Jorge resolveu pintar um ponto de interrogação na frase… [GF] - E essa frase ficou marcada na cabeça de muitas pessoas. [NG] - Nós fotografámos a frase. [GF] - Faz parte da capa do primeiro número da “Unidade”, que foi lançada no Aniki Bobó. [NG] - Portanto, celebra-se aí o tal ciclo da festa… Nós gostávamos que a Escola fosse outra coisa, que não era. IV./ [GF] - Até esse 3º ou 4º ano, que mais memórias tens? [NG] - Em 1988, para mim, tudo começa a fazer sentido. A ida a Berlim, ver o edifício do Álvaro Siza, alcunhado de “Bonjour Tristesse”. [GF] - E a discussão à volta do incêndio do Chiado. O Siza ganha o prémio europeu Mies Van der Rohe. [NG] - O primeiro prémio europeu de arquitetura, Mies van der Rohe, dado a um português, com o cunho da Europa e com a referência a Mies van der Rohe. Tudo isso, para nós, foi um momento especial, único. [GF] - É o ano mágico da arquitetura portuguesa. [NG] - É o ano do lançamento da Revista “Unidade”, mas é também o ano em que o Siza ganha o prémio. Em Portugal, ninguém, fora do mundo da arquitetura, sabia bem quem era o Álvaro Siza. Dá-se também o incêndio do Chiado, e o Presidente da Câmara de Lisboa convida-o a fazer o plano de reabilitação; e cria-se uma extensa discussão. O Siza, muito pouco tempo depois, afirma que a reabilitação do Chiado deve repor o bairro nos seus fundamentos… [GF] - É a primeira vez que alguém fala de reabilitação num sentido de ser respeitoso em relação à memória da cidade. [NG] - Num ambiente pop, diriam: “Vamos fazer aqui um festim”. E o Siza diz que o Chiado não precisa desse lado feérico. [GF] - O Chiado já fora um lugar de festa, que se perdeu com o tempo. [NG] - E por isso ardeu. Mas, na verdade, o Marquês de Pombal tinha razão, a cidade faz-se de forma seriada. [GF] - Deve ser feito a partir de fachadas com métricas regulares. [NG] - Com métricas, pórticos, peças sistematizadas. Depois, a grande conquista, proposta por Siza, é a abertura do interior dos quarteirões, enquanto espaços públicos. [GF] - No Chiado é também o interior dos quarteirões, repor ligações que tinham existido ancestralmente. [NG] - Dá-nos uma lição sobre a forma como a cidade histórica pode integrar a cidade contemporânea. E eu acho que ele aprendeu isso em Berlim. Por exemplo, na esquina de Kreuzberg, onde cria entradas para o interior do quarteirão; e depois implanta aqueles pequenos equipamentos que completam o plano: um centro de dia e uma creche. E que com isso leva as pessoas a penetrar no interior do quarteirão e a conhecer as suas marcas históricas… [GF] - A verem o interior do quarteirão. [NG] - Que estava ainda muito marcado pela guerra. Aquela parte de Berlim não tinha sido totalmente reconstruída. [GF] - E fazia parte do IBA de Berlim. Assume que as feridas e a memória da cidade têm de aparecer na cidade contemporânea. [NG] - Sim, para mim, é uma lição extraordinária. [GF] - E no Chiado, ele volta a dizer que é preciso abrir os quarteirões e criar atravessamentos. [NG] - É preciso expor as “entranhas” da cidade, porque isso faz também parte do ato de a reabilitar. Para mim, é o momento em que eu percebo, finalmente, para que serve a arquitetura na sua relação com a História. [GF] - É um momento em que se compreende a importância de discutir a cidade, a política, o lugar e a memória, a História e a contemporaneidade. [NG] - Sim, sem dúvida. [GF] - O filme do Wim Wenders, “O Céu sobre Berlim/As Asas do Desejo”, é também um filme sobre o muro de Berlim e a divisão urbana e a melancolia que gera. [NG] - Em torno dos mesmos lugares em que o Siza constrói o edifício. E comecei a juntar uma série de peças que têm a ver com cidade, memória, história, melancolia, guerra, trauma... [GF] - E começaste a perceber que a arquitetura, no fundo, não tem que ter só um lado pop e festivo. [NG] - Eu achava que a arquitetura podia ser, no fundo, um encontro entre todas estas coisas de que falámos. E, para mim, começa a ser claro que a figura do Siza se torna fundamental para a História da Arquitetura Europeia. Dá sentido ao prémio Mies van der Rohe. [GF] - Ele vinha introduzir coisas que estavam mais ou menos esquecidas no desenho da cidade, sem querer copiar os arquétipos do Rossi. [NG] - Acho que não copia os arquétipos do Rossi. Aprende com o seu método de análise. [GF] - É o Rossi da “Arquitetura da cidade”, mas no sentido de compreender que cada cidade tem uma arquitetura própria e que pode ser retomada de forma contemporânea sem mimetismos de pastiche, como de resto compreende o Siza. [NG] - O Chiado não é um pastiche. É um projeto historicista, mas não é um pastiche. Ou seja, ele não faz a cornija à Marquês de Pombal. Ele não faz a pilastra à século XIX. Ele introduz um desenho contemporâneo em fachadas que ficaram “no esqueleto”, no fundo, traz o passado para o presente… [GF] - Talvez o grande pecado do Chiado é a questão da gentrificação social que ele gerou, que é uma pena, hoje tornado apenas em espaço de classe média alta e de turismo. [NG] - Se fosse hoje, provavelmente, o investimento que ali foi feito poderia ter levado à possibilidade de trazer uma população mais jovem e de se regular os preços no Chiado. É o único pecado que eu vejo naquele processo. Porque eu acho que é um plano exemplar de como tratar a cidade contemporânea a partir da História. [GF] - Mas porquê o Siza... Claro. [NG] - Não consigo imaginar o meu interesse pela arquitetura portuguesa sem pensar no Siza. [GF] - Correspondeu ao momento de consagração sentido dentro da Escola e pelos alunos. [NG] - Sentimos que fazíamos parte de um processo relevante… [GF] - E o Siza já não era professor da Escola. [NG] - E isso diz muito. O Siza já não era professor permanente na Escola. Era um pensador livre, que estava fora, mas que na verdade estava a fazer o edifício físico da FAUP, que nós achávamos incrível. [GF] - Porque não era um edifício convencional, não era moderno no sentido dogmático. [NG] - Claro que tem janelas à Le Corbusier, tem palas, tem rampas, tem “promenade architecturale”, tem tudo isso. Mas depois tem também “carantonhas”, algumas que lembravam o Távora... [GF] - Em termos pessoais, o Siza foi um marco para o teu entendimento da oportunidade que a Arquitetura aponta ao urbano, etc. [NG] - Tudo isso, para nós, era fascinante. Era um personagem que nos estava a dar imensas pistas, quase sem sabermos. Pós-moderno, mas sem champanhe./ Porque então, também nessa altura, o Tomás Taveira aproveita o discurso pós-moderno de Lisboa, e torna-o apenas “seu”. [GF] - O Taveira era conhecido de pessoas como o Charles Jencks, o Robert Stern. [NG] - E do Charles Moore. [GF] - E traz essas pessoas a Lisboa. [NG] - E diz “Nós, os pós-modernos…”. [GF] - Começa a conotar Portugal com a pós-modernidade anglo-saxónica, como o cidadão cosmopolita de Lisboa. [NG] - Sempre olhei mais para o Manuel Vicente, para o Raul Hestnes Ferreira, ou mesmo para o Manuel Graça Dias. Considero que as suas arquiteturas são mais interessantes, nessa busca por uma condição pós-moderna, ou pelo menos, pós-funcionalista. [GF] - O Manuel Graça Dias contou-me que num determinado momento pediram que escrevesse sobre o Taveira. E ele não quis./ O Manuel também tinha um lado pós-moderno festivo. [NG] - O Hestnes inclusive conhecera o Venturi em Filadélfia. [GF] - O Venturi era um pouco mais velho. Como o Hestnes, ambos tinham trabalhado com o Louis Kahn, caraterizado pela sua monumentalidade internacional. [NG] - O Hestnes Ferreira trouxe a monumentalidade simbólica de Louis Kahn para a arquitetura portuguesa. [GF] - O Manuel Vicente também tinha trabalhado com o Kahn./ Vai para Macau fazer arquitetura lúdica, que mistura referências de vários lugares. [NG] - Quanto a mim, também a busca no pós-modernismo japonês… [GF] - Uma referência à História, como na Casa dos Bicos em Lisboa. [NG] - Que é um projeto distinto, mas também incrível. Tem tudo a ver com a ideia de repor o que lá estava antes do Terramoto de 1755… apenas aparentemente… [GF] - Mas ele repõe os quatro pisos de uma maneira irónica? [NG] - Completamente festiva, muito mais interessante do que as colagens epidérmicas que o Tomás Taveira fazia… E atenção que o Taveira, no início, é um arquiteto muito interessante. [GF] - Foi uma fase neo-moderna… [NG] - Sim, diria antes pós-funcionalista. A zona J de Chelas é um bom projeto. O projeto que ele fez para Vila Nova de Santo André é também muito interessante. O Taveira esteve em Inglaterra num momento importante, quando os Archigram estavam ainda a produzir as suas revistas. [GF] - E ele conheceu o James Stirling, que na sua obra experimenta a transição moderno/pós-moderno. [NG] - Conheceu a viragem do moderno para o estruturalismo, e depois para o high-tech, mas também para o pós-modernismo de pendor classicista. Ele conheceu todo esse debate…. [GF] - Concentra-se no início. Mas reforça por exemplo o Charles Moore, um discurso mais democrático, diferente do freestyle do Taveira. [NG] - Eu penso que o Taveira, a certa altura, desiste de experimentar. Sinceramente, acho que ele desiste de inovar… acomoda-se a uma fórmula. [GF] - Ele desenhava muito bem a lápis de cor... É mais fácil aderir a um pós-modernismo epidérmico, quiçá anglo-saxónico./ Falamos do momento em que o capital e as grandes empresas em Portugal, aderem à estilização do pós-modernismo, aos edifícios de vidro espelhado e caixilharia de alumínio estilizada e de cor, etc. [NG] - Aquilo a que o Paulo Varela Gomes chamava de “arquitetura corporativa” - a das Grandes Corporações empresariais - ligando-as ao pós-modernismo. [GF] - Aliás, é nessa altura que se cria esse debate, também lançado pelo Paulo Varela Gomes. [NG] - Exatamente. [GF] - Que depois, passado uma década, terá percebido que estava enganado. [NG] - Essa arquitetura festiva, de que falava o Paulo Varela Gomes, era muito marcada pelo uso da “fachada-cortina” em vidro espelhado… o Tomás Taveira, nesse momento, apanha a onda e faz uma série de edifícios do género, em Lisboa, e que ficaram para a história do pós-modernismo português… V./ [GF] - Eu acho que as Amoreiras são “relativamente interessantes” porque, na verdade, põem as pessoas a discutir a arquitetura e a cidade. [NG] - O Tomás Taveira era uma pessoa que se relacionava com muito setores da sociedade, com muitos investidores da banca, dos seguros, dos shoppings. [GF] - Os arquitetos do Porto não faziam shoppings. Mas iam ao shopping passear. As Amoreiras eram o único shopping em Portugal./ Os arquitetos do Porto, com os resquícios ideológicos da Revolução, contavam que começou a trabalhar para o Capital maior. Faziam cooperativas e habitação de custos controlados. Depois faziam casas de férias, mais aburguesadas para os amigos. O Capital não estava aqui, porque estava mais em Lisboa. [NG] - Como acontece em muitas capitais… [GF] - Os amigos encomendavam pequenas casas. Portanto, a arquitetura corporativa de que falava o Varela Gomes, estava em Lisboa. [NG] - E os arquitetos de Lisboa respondiam… O Tomás Taveira criou uma série de acólitos, outros arquitetos que, como ele, trabalhavam no âmbito dessa arquitetura corporativa. [GF] - Para os bancos, as companhias de seguros, ou outros serviços? [NG] - Perto da FAUP está um dos poucos exemplos de um edifício de uma seguradora, que foi realizado por arquitetos professores da FAUP… [GF] - Uma companhia de seguros. Foi desenhado pelo Ricardo Figueiredo e pelo Pulido Valente. [NG] - Que não eram propriamente grandes alinhados com esse tipo de arquitetura. E é um ótimo edifício. Não sei o que lhe vão fazer agora, pois está em remodelação./ Espero que não o destruam. [GF] - O Siza fez pequenas unidades bancárias, mas eram pequenos projetos, e não grandes sedes./ Portanto, há também, ideologicamente, essa linha que separa o movimento pós-moderno de Lisboa e do Porto./ E depois há o famoso manifesto que os arquitetos do Porto mandam para a icónica exposição pós-moderna. Em que dizem que nós não somos pós-modernos porque, se somos pós-modernos, já o somos há muito tempo. [NG] - No fundo a ideia era, se Portugal é pós-moderno, então já o é há muito tempo, porque até o Salazar nos impôs sermos historicistas. [GF] - Achavam que a história tinha sido descoberta em 1977, ou 1984./ A história, na verdade, também tinha vindo associada à ideologia arquitetónica./ E o Salazar já o tinha imposto aos arquitetos portugueses. [NG] - E o Souto Moura dizia que o projeto moderno é um projeto inacabado, no sentido defendido por Habermas. É preciso construir os equipamentos que não temos. Na procura de uma arquitetura da modernidade, sem fazer concessões ao pastiche clássico./ Sabemos, no entanto, que, quando era aluno, Souto Moura ensaiou imensos esquiços de frontões e outros elementos clássicos. [GF] - E a própria prova final dele, com colagens, e referencias ao simulacro de Baudrillard. [NG] - Souto Moura redescobriu também o Mies, e o regresso a uma certa arquitetura da elementaridade. O famoso “Less is More”. Como meu professor, no 3º ano, trazia-me esses exemplos e eu, que queria fazer outra coisa, tinha grandes debates com ele. Eu tinha visto um edifício do Alvar Aalto - a Residência de Estudantes do MIT que constrói nos Estados Unidos -, a qual possui um jogo de curvas. E eu queria que o meu projeto tivesse uma curva. (Risos) [GF] - Pois, o Souto Moura ainda dava aulas na Escola. [NG] - E ele perguntava-me: “Porquê uma curva? Afirmando que arquitetura deve viver da racionalidade e de um certo regresso à ordem… E eu, como estudante, não conseguia perceber a razão de tal discurso… [GF] - Porque é que a Escola precisava de se fechar em copas num discurso para poder lutar contra o pós-modernismo Lisboeta? [NG] - Que já estava num beco sem saída… [GF] - Já estava em decadência em 1988/90. O Siza já tinha ganho o Chiado. / VI./ [GF] - Foste aluno do Souto Moura no 3º ano, em 1987/88. [NG] - É aí que eu e o Souto Moura e eu temos alguns debates… Neste livro que acabei de editar, “Cumplicidades” (2024) digo que talvez seja por eu ter sido um aluno, mais ou menos provocador, que justificou o seu pedido para que eu escrevesse sobre a obra dele, alguns anos depois. E uma das primeiras coisas que eu discuto, com ele, é a “souto-de-mourização” da arquitetura portuguesa. [GF] - Escreveste sobre a “souto-de-mourização” dos arquitetos portugueses. [NG] - É sob esse tema que debatemos o modo como a sua arquitetura estava a ser mimetizada. Ele tinha ganho a Casa das Artes em 1981. Não estava ainda acabada quando fui seu aluno. [GF] - Mas conhecia-se a obra. [NG] - Conhecíamos outras obras dele. [GF] - As casas e o Mercado de Braga. [NG] - Sim, o Mercado, para mim, era uma obra fantástica. [GF] - Era uma obra exemplar pela memória da ruína, e porque promovia o atravessamento do Quarteirão, etc. [NG] - Lá está, elementos de que falamos em Berlim e no Chiado de Álvaro Siza. Reconheci-as em algumas obras do Souto Moura. [GF] - Escreves que o Souto Moura é um arquiteto pós-ideológico. [NG] - Sim. [GF] - É aluno na Revolução, participa no SAAL como estudante, mas depois começa a trabalhar para uma elite, de classe média portuguesa, a fazer casas. [NG] - O Souto Moura não vai ao filão das ideologias buscar o seu caminho. Vai aos arquétipos da arquitetura: ao muro, ao plano, à superfície. [GF] - Vai à caixa e coisas que são arquétipos da arquitetura moderna. [NG] - Como alguns dos seus heróis faziam. [GF] - O Souto Moura escolheu o Mies. O Siza tinha escolhido o Aalto no meio. [NG] - E a história dos arquitetos saídos da Escola do Porto está cheia de revisitas. Por exemplo, quem é que o atelier “Fala” escolhe como seu herói? O Kazuo Shinohara./ É um processo que se repete. [GF] - Sim. Os jovens Fala assumem isso. Um regresso a um certo pós-modernismo japonês. Que bebe também um bocadinho no Kenzo Tange, e no Arata Isozaki. [NG] - Ou seja, a esse caldeirão pós-moderno que quase nunca era debatido na Escola. [GF] - Não visa arquiteturas glamourosas, e heroicas, antes cria arquiteturas débeis. [NG] - Sim, com incertezas. E, portanto, de alguma maneira, as obras do Siza até aos anos 1980, vivem dessa debilidade. São obras pequenas, domésticas, topográficas./ Quando faz o edifício “Bonjour Tristesse”, com evidente impacto urbano, é logo pichado… Uma sorte para o Siza porque tornou o edifício num facto conhecido em todo o mundo (risos). [GF] - Mas era uma obra mal amada. [NG] - Era uma obra mal-amada, pelos berlinenses, como aconteceu com muitas obras do Siza na época. [GF] - O banco de Vila do Conde recebe o prémio Mies Van der Rohe, e era odiado pelas pessoas de Vila do Conde. [NG] - Chamavam-lhe “o Tolan”, que era um barco que estava encalhado na frente atlântica. [GF] - Estás a aludir que o Siza era mal-amado como arquiteto, seja por alguma opinião pública, seja pelos políticos. [NG] - De repente, como ganha um prémio internacional, e como nós somos muito provincianos, passa a ser o grande arquiteto que a opinião política e mediática quer conhecer. Ele já tinha obras incríveis, sobretudo aqui, a Norte. [GF] - Depois, em 1992, com a atribuição do Pritzker, o Siza passa a ser o arquiteto institucional reconhecido. [NG] - O Siza consagra-se. No sentido em que não é só o arquiteto mais premiado, como é aquele que trabalha para as grandes instituições portuguesas. Faz museus, faz pavilhões nacionais, faz uma série de obras públicas e institucionais. [GF] - É chamado para fazer a Fundação de Serralves, a Fundação Cargaleiro, etc. [NG] - Ou seja, torna-se um arquiteto mais institucional. Até 1988, era um arquiteto quase desconhecido no espaço mediático. Nós, os jovens estudantes de arquitetura, estávamos então a descobri-lo. [GF] - Sim, o reconhecimento que ele obteve na transição de 1988/89. / VII./ [GF] - Descreveste em detalhe a revista “Unidade”, penso que falaste dos 2 primeiros números. Depois houve um terceiro número. [NG] - Um terceiro, em que começamos a ter uma aproximação a questões mais urbanas. [GF] - E nesse ano entra o Nuno Portas, também, como influência na tua formação. [NG] - Sim, e antes debatemos com o Alexandre Alves Costa. O Alves Costa, desde sempre, gostou que o desafiassem. Eu acho que o Alves Costa é, saudavelmente, um personagem controverso na Escola do Porto. Foi capaz de criar os maiores amores e os maiores ódios. Não éramos adeptos do método de ensino que a Escola professava, mas não tínhamos nenhuma animosidade em relação ao Alexandre. Ele sabia que a nossa geração não queria destruir a Escola, não queria “matar o pai”; apenas desafia-lo. [GF] - Aliás, éramos todos fãs do Siza. [NG] - Mas, na verdade, nós só não estávamos de acordo com o modo dogmático como as aulas eram dadas, muitas vezes, sempre a partir das mesmas referências. [GF] - E, então, queriam outras coisas. Se calhar tem a ver um bocadinho com o inconformismo ingênuo da juventude. [NG] - Nós nunca tivemos nenhuma animosidade. Nunca sentimos da parte do Alves Costa nenhum boicote. Pelo contrário. Ele achava que nós tínhamos ali uma razão qualquer. [GF] - Que podia não lhe interessar, politicamente falando, para gerir a Escola, mas que ele permitia existir. [NG] - E, depois, na verdade, nós começámos também a ir a Lisboa entrevistar pessoas./ Ele percebia que nós abríamos o leque de opções em relação aos discursos críticos. [GF] - Entrevistaram o Paulo Varela Gomes, o Manuel Graça Dias, o João Carrilho da Graça. Mas falávamos atrás do Nuno Portas, que já era professor aqui. [NG] - Depois, mais tarde, entrevistámos o Nuno Portas, outro personagem controverso. [GF] - Ele vem de Guimarães para a Escola, talvez em 1983? [NG] - Ele é convidado pelo Távora para vir para aqui, penso eu, em 1983. [GF] - O Távora estava a fazer o plano do Centro Histórico de Guimarães. E começa logo a ser crítico da reabilitação do Centro Histórico de Guimarães. [NG] - Portanto, o Nuno Portas chega aqui, convidado pelo Távora, e, na verdade, começa logo a ser crítico em relação à atenção que este dava à reabilitação do Centro Histórico de Guimarães. Perguntava: a reabilitação do edificado de Guimarães tem de ser apenas em torno do Centro Histórico? [GF] - E não ser olhado com o mesmo grau de cuidado? A estrutura urbana e rural do Vale do Ave em decadência? [NG] - É, nesse momento, que Nuno Portas se interessa pelo desenvolvimento urbano do Vale do Ave e critica o ensimesmamento dos arquitetos da FAUP no Centro Histórico. [GF] - Não é só a crítica à linguagem. [NG] - Não, não. [GF] - A consolidação da linguagem, do Porto à Siza, etc. [NG] - Não. Interessava-lhe o desenvolvimento presente, o da cidade difusa… [GF] - Ele não gosta que o Siza vá buscar os heróis modernos. [NG] - Também não gostou que o Souto Moura repescasse o Mies. [GF] - Nos anos 60 e 70 dizia que a arquitetura moderna não resolvia o problema da vida e da relação das pessoas com o espaço, ou a evolução das famílias e o problema do habitat./ Mas estavas a dizer que não havia animosidade por parte da direção, que vocês foram entrevistar personagens a Lisboa, ou o próprio Nuno Portas que no Porto não era amado. [NG] - Totalmente amado nunca foi. [GF] - O Nuno Portas, que atuava na crítica de arquitetura, a partir dos anos 80 define que vai ser urbanista. [NG] - Isso fez muita gente respirar de alívio. Porque, na verdade, o Nuno Portas era um “enfant terrible” da crítica da arquitetura, e, lentamente, o seu discurso vira-se para a cidade. E há aqui uma cisão. Havia professores que olhavam para a história da cidade a partir dos objetos. Veja-se por exemplo o que escreve o Domingos Tavares. O Portas fazia o oposto: olhava os objetos a partir da cidade. [GF] - Há pessoas como o Nuno Portas, que olha para a História da cidade a partir dos traçados e daquilo que eles chamam de “grau zero da arquitetura e do urbanismo”. Por isso revia-se na Escola a partir do final dos anos 80. [NG] - E eu, que tinha descoberto a arquitetura a partir do Siza, começo a achar interessante o discurso do Portas, mais colocado no espaço urbano. [GF] - No espaço entre os objetos. [NG] - E então rapidamente, depois de estudar a obra de Siza, aproximo-me do universo do Nuno Portas, [GF] - Que estavam numa certa tensão. Como tu próprio já disseste, o Nuno Portas começa a criticar o Siza como se ele usasse enigmaticamente uma linguagem moderna. Não percebendo que o Siza, no fundo, tem uma atitude altamente pós-moderna. [NG] - Siza usa a História do Modernismo como um vocabulário, como um manancial para fazer a arquitetura do seu tempo. Ele busca, no melhor que o Movimento Moderno produziu, busca referências particulares... [GF] - Mas porque ganhaste afinidade pelo Urbanismo nessa altura? [NG] - Havia mais gente na área do urbanismo dentro da Escola. [GF] - Já havia. O Nuno Portas foi buscar um pensamento urbano que... [NG] - Sim, antes dele, o Duarte Castel-Branco tinha reforçado a disciplina na Escola… [GF] - Sim. Há uma exposição de desenhos nessa altura que termina com desenhos do Castel-Branco. Há a exposição que o Portas faz com o Manuel Mendes em Serralves, em que ainda está a fazer o papel de crítico. [NG] - A partir de 1988/89, Nuno Portas começa a envolver-se mais na política ativa, é editor dos “Cadernos Municipais”, uma revista na esfera do Partido Socialista… [GF] - Depois, concorre à Câmara de Gaia como vereador. [NG] - O Nuno Portas, claramente, distancia-se da crítica da arquitetura sem nunca deixar de a fazer, pelo menos entre amigos. Eu acho que ele devia ter continuado a escrever sobre arquitetura. Ele começou a ser mais conotado como urbanista. Às vezes perguntam-me: “O que é que aconteceu ao Nuno Portas para deixar de ser um arquiteto?” Acho que nunca deixou de o ser… a cidade é o palco dos arquitetos… [GF] - Um interesse pelo “meta-projeto”, questão que tu falaste numa aula aberta de Teoria 1 em que te convidei. O que também tem a ver com os interesses metodológicos dele, o abstrato, o uso de computadores. Ou seja, as formas, à priori, ainda que aqui geradas a partir do computador. Ele até à altura não entra no paramétrico, mas é uma coisa que ele não detesta ou descarta. Lá pelo IST, anda com o pessoal de Sociologia. [NG] - A Sociologia e a Estatística interessam-lhe pela admiração que tinha pelos sociólogos franceses. Para trabalhar os dados, Portas aproxima-se da cibernética que estava a ser desenvolvida no Laboratório Nacional de Engenharia Civil, LNEC… [GF] - O centro tecnológico do país. [NG] - Outro fenómeno que ocorre na vida do Nuno Portas, e que pode justificar o seu afastamento do projeto de arquitetura foi um advento chamado “Siza” … [GF] - O Portas percebeu que havia aqui um arquiteto melhor do que ele poderia ambicionar? [NG] - Percebeu que Siza dominava muito bem a forma arquitetónica… E dizia que a ele não lhe interessava a forma, interessava-lhe antes a fôrma que produz a forma. [GF] - E a mesma fôrma pode fazer vários tipos de forma. [NG] - Sim, como sabemos, a mesma fôrma podes fazer vários bolos, com várias consistências. Ele diz sempre isso, “Eu gosto mais da fôrma do que da forma”. [GF] - Porque a forma é uma coisa de índole meramente formalista. É dos arquitetos que gostam de fazer belos edifícios. [NG] - Portas passou a gostar daquilo que está antes, ou que está no suporte da forma dos edifícios… a cidade. Quando chego ao 5º ano, tudo isto torna-se, para mim, uma nova linguagem. [GF] - Ou seja, é um professor que não fala do Le Corbusier, Mies, ou Alvar Aalto. Fala da cidade, do quotidiano, da rua, da esquina, do gaveto, do passeio. [NG] - Fala de coisas banais. Na verdade, eu descubro que ele vai buscar esse discurso ao debate lançado pelo Team X: o discurso do banal, da cidade quotidiana, do dia-a-dia, da rua, do utente… [GF] - A ele não lhe interessa estar a fazer a discussão estilística da arquitetura. [NG] - Porque ele achava que isso, de alguma maneira, estava feito. [GF] - Ou estava a ser feito por outros. O Kenneth Frampton, por exemplo, que, na verdade, foi o grande impulsionador do Siza e por arrasto da Escola. [NG] - Estava a ser feito por outros, sim. Estava a ser feito pelo Rafael Moneo, que nunca deixou de ser crítico da arquitetura e tem imensas reflexões sobre a obra de vários arquitetos. Estava a ser feito pelo Frampton e também pelo Jean-Louis Cohen… [GF] - Quando o Portas prefere não fazer crítica da arquitetura, começa a fazer crítica da cidade, da política. [NG] - Do desenho e da cidade, a partir do que referiste, do “meta-projeto”. [GF] - É quando ele está com o Manuel Solà-Morales e com o Oriol Bohigas a discutir Barcelona’92, e a bondade do espaço público, e do projeto urbano, etc. [NG] - Ele conhece bem essa “escola” de projetistas urbanos de Barcelona, que buscavam também uma fôrma urbana para a forma arquitetónica. Algo que é também um gesto de grande generosidade. [GF] - E de coragem? [NG] - Coragem, sim. Tinha feito belíssimos projetos com o Nuno Teotónio Pereira… como a Igreja do Sagrado Coração de Jesus…, mas decide outro rumo… [GF] - Mas para além do arquiteto, do urbanista, do político que falámos, também enfrenta o desafio de ser crítico de arquitetura. [NG] - Fazendo a crítica, não só da produção da sua geração…, mas também dos seus próprios projetos. [GF] - “Vou criar aqui umas personalidades, como se fosse dos "Cahiers du Cinéma", tipo políticas de autores, mas na arquitetura. [NG] - Sim, uma política de autores… Uma espécie de promotor cultural… [GF] - E tal dos que ele promovesse, arrastava o desenvolvimento da Arquitetura Internacional. [NG] - Ele vai a França, visitar os "Cahiers du Cinéma", enquanto também crítico de cinema, e conhece o seu diretor. E adapta esse método da “política de autores” à própria arquitetura… [GF] - Eu acho que o Nuno Portas já escreveu sobre cinema antes de escrever sobre arquitetura. Mas dizias que o diretor da revista tem em frente a ele um jovem cineasta chamado François Truffaut, que ele não conhece. E diz-lhe que ele é o futuro do cinema francês./ O Nuno Portas chega a Portugal e resolve fazer uma política de autores. Vai buscar jovens arquitetos da sua geração, que ele acha que vão ser bons arquitetos. [NG] - Sim, de alguma maneira, ele percebe que o Truffaut português é o Siza. E ele, o crítico da revista onde o Siza é editado, pela primeira vez, em Portugal… A revista Arquitectura. [GF] - Ele realmente vai para uma posição meta. [NG] - Sim, algo como “eu não quero ser o autor, mas vou promover os autores. Eu não quero fazer projeto, mas vou promover as bases do projeto. Eu não quero fazer a forma, mas vou definir a fôrma”. [GF] - Ele coloca-se nos bastidores das coisas, mas na essência geradora das coisas. [NG] - Que é o lugar do urbanista. O urbanista está, de alguma maneira, nos bastidores da arquitetura. [GF] - O projeto de Aveiro é maravilhoso, ainda que poucos falem do projeto do Plano do Portas. Falam dos edifícios dos arquitetos. O primeiro plano da Expo 98 é do Portas. [NG] - Que depois é posto em causa porque surge um plano mais dogmático e mais rentável. [GF] - Quando ele dava as aulas em 1994, falava muito de Vila Nova de Gaia, onde tu também estagiaste. [NG] - Quando sou aluno dele, no 5º ano, eu percebo que há outra maneira de ser arquiteto. [GF] - Que é “o da fôrma”.../ Mas tu eras o aluno de 14/15? Só não eras de 16. (Risos) [NG] - Acho que tive um 16. (Risos) [GF] - Quem era o aluno do teu ano do 16? [NG] - Lembro-me do João Pedro Serôdio ser um ótimo aluno, muito mais integrado no espírito da Escola… Nós eramos mais “rebeldes” … [GF] - E quem é que integrava mais esse grupo de “inteligência rebelde”? [NG] - Não era inteligência nenhuma. (Risos) Eramos só inconformistas. Não éramos todos do mesmo ano. Era eu, o Paulo Seco, o Jorge Figueira e o Nuno Lourenço. [GF] - Também o Luís Tavares Pereira. E o Pedro Leão teve alguma relação? Penso que o Pedro Costa era o mais novo. [NG] - Desses, na época, só me lembro do Luís Tavares Pereira, que teve uma relação direta com a revista, logo no início. [GF] - A primeira AE teve como Presidente o Paulo Seco. [NG] - Sim, eu era o vice-presidente, e o Jorge Figueira era o Diretor do Departamento “Desilusão!” que editava a revista. Havia ainda um programa de rádio, e outras iniciativas. [GF] - Pois, as iniciativas de cultura e destas no Aniki Bobó. Ainda não havia churrascos. [NG] - Sim. Não fazíamos churrascos. Fazíamos festas no Aniki Bobó, para lançar as revistas. O meu gosto pela música, e de brincar aos Djs, vem daí. [GF] - No lançamento das revistas permitiam a festividade pós-moderna. [NG] - Tínhamos um programa na Rádio Universitária do Porto denominado “Universo de Coisas Um”. Uma outra adesão à palavra “universo” de que gosto muito. A ideia era falar de arquitetura a partir de coisas que não o são…/ Era improvisado. Falávamos todos. O Jupé, diretor do programa e aluno da Faculdade de Letras, infelizmente já falecido, era um radialista fantástico, [GF] - Isso durou 1 ano? [NG] - Durou 1 ano. [GF] - Festas, lançamentos de revistas, programas de rádio, fizeram pelo menos uma exposição de trabalhos de alunos. [NG] - Fizemos pelo menos uma exposição, na Cadeia da Relação (hoje CPF), no Porto que se chamava “Escola do Porto. 12 trabalhos ancorados”. [GF] - Mas havia exposições anuais nessa época? [NG] - Não, não havia. A primeira grande exposição de projetos foi essa, na Cadeia da Relação. [GF] - As “Páginas Brancas” era da geração anterior. [NG] - Isso era outra coisa. Nós não queríamos fazer as Páginas Brancas. Achávamos que a Páginas Brancas era um projeto para “dentro” da Escola, e com base na sua estética “oficial”: projetos com linhas fininhas, todo a preto e branco, sob um título cristalizado “Páginas Brancas”. Nós respeitávamos os colegas que tinham feito essa edição, mas não queríamos continuar a fazer “Páginas Brancas”; queríamos fazer “Páginas Amarelas” (Risos). Depois, a partir do terceiro número da “Unidade”, nós saímos da Escola, e veio a tua geração, a do Pedro Bandeira, e fizeram os números seguintes… [GF] - O nº 4 é o Bandeira com o Moreno. E acho que eu e o André Tavares entramos na nº5. [NG] - Mas hoje, olhando para trás, acho que... houve a generosidade de se deixar a revista passar de mãos, de geração em geração. E prosseguir no tempo… [GF] - As revistas de estudantes potenciaram-se, tiveram continuidade. As gerações passaram às seguintes. [NG] - E continuam vivas… VIII. [GF] - Retomando a tua experiência com o Nuno Portas. [NG] - No 5º ano, sou convidado por ele para ir fazer o estágio para a Câmara de Gaia, juntamente com a Sílvia Namorado. E vamos trabalhar no Gabinete Técnico Local (GTL), no Castelo de Gaia... [GF] - Não tem nada a ver com a Avenida? [NG] - Não, nós não desenhamos nada para a avenida à cota alta. Nós desenhamos o plano de salvaguarda do Castelo de Gaia, que fica junto ao rio, entre o Centro Histórico e a Ponte da Arrábida. [GF] - Entre a Ponte Luís I e a Ponte da Arrábida, em Gaia. [NG] - Era um Plano de Reabilitação Urbana no GTL de Gaia, tendo o Nuno Portas como vereador do Urbanismo. [GF] - Com o Nuno Portas, sempre a dizer que a reabilitação não era fazer fachadas historicistas. [NG] - A dizer que nós tínhamos que introduzir elementos contemporâneos no meio do património, sempre a provocar... E nós lá fizemos./ Uma das coisas que fizemos foi pensar o alargamento da Via Marginal, que acabou, depois por ser concretizado através de um projeto do Carlos Prata. Alargou-se a estrada junto ao rio, em consola, sobre o muro existente. [GF] - Depois, vieste-te embora e foste para o serviço militar, em 1992. [NG] - Estive quatro meses no serviço militar... [GF] - E concorreste em 1992 para o curso que se encontrava em Coimbra? [NG] - E concorri a Coimbra, porque na altura não havia lugares aqui. A Escola lá estava em debate. Eu tinha lá ido, em 1989, quando estava na Associação de Estudantes. Fui lá debater com os estudantes o que devia ser aquela Escola. Estava tudo em alvoroço, porque o curso de Arquitetura estava a ser pensado pelo Departamento de Engenharia da Faculdade de Ciências e Tecnologia… [GF] - Entre 1988 e 1992, os teus últimos anos como estudante em que és várias vezes solicitado para ir lá discutir, etc. [NG] - Estamos a falar de um grupo de 100 pessoas, 100 alunos... era uma coisa muito pequena. Eram 4 ou 5 professores e arquitetos locais, que queriam, no fundo, combater essa tendência. Com muitos outros que vinham de fora… [GF] - A maior parte eram engenheiros e depois havia 5 arquitetos a dar as cadeiras tradicionais. José António Bandeirinha, o João Mendes Ribeiro, etc. [NG] - Depois começaram a entrar mais colegas... Na altura, a Associação dos Arquitetos Portugueses ameaçara não reconhecer os alunos formados nessa primeira Escola./ Então, chamam uma comissão re-instaladora que irá ajudar a criar a Escola de Coimbra. [GF] - Pois. A AAP ainda não era OA. A comissão refundadora incluía o Távora, o Domingos, o Alexandre e o Portas do Porto, que depois acho que abandona a comissão. [NG] - Não me lembro bem. Havia a Unidade Pedagógica de Viseu que sofre um grave incêndio. Por essa altura, forma-se essa comissão para Coimbra… [GF] - A Unidade Pedagógica de Viseu durou poucos anos./ E mais tarde personalidades do Porto também ajudaram a fundar a Escola de Guimarães. [NG] - E é em Coimbra que a comissão começa a perceber que não vale a pena fazer uma segunda Escola do Porto. Porque Coimbra está à meia-distância do Porto e de Lisboa. E porque seria interessante cruzar os arquitetos que saíam da Escola do Porto com outras visões, outras experiências, também vindas de Lisboa. [GF] - Um bocadinho próxima da Escola do Porto... O Hestnes, etc, eram pessoas muito respeitadas. [NG] - Sim, em várias gerações. Por lá passa também o Manuel Graça Dias, por exemplo. [GF] - Eles têm contacto de muitas pessoas interessantes na agenda. E empenharam-se ao longo do tempo em fazer 4 Escolas: 3 em Portugal e penso que 1 em Angola. [NG] - Eles imaginam que a Escola pode ir buscar os melhores ex-alunos e os melhores colegas de diferentes geografias. Não se tratou de reproduzir a Unidade de Viseu, porque ali estavam ao serviço de outra universidade. IX. [GF] - Em 1992, depois de fazer 4 meses de serviço militar, começaste a dar aulas em Coimbra. [NG] - E aí conheço a terceira figura referencial para mim, que é o Gonçalo Byrne. Que, na verdade, promove uma espécie de encontro entre os pensamentos do Álvaro Siza e de Nuno Portas. [GF] - O Byrne trabalhou no atelier do Nuno Portas e do Nuno Teotónio Pereira. [NG] - Representava para mim a cultura arquitetónica que o Siza transportava, e a cultura urbana que o Nuno Portas defendia. E, portanto, para mim, foi um terceiro “pai” conceptual. [GF] - Foram as 3 referências para ti./ Vocês também mantinham contacto com o Fernando Távora, faziam viagens de carro, etc.... Mas o Távora, por essa altura já se tinha jubilado no Porto. Continuava a dar aulas lá, mas como convidado? [NG] - Sim, tinha acabado de se jubilar. [GF] - O Domingos Tavares não fora teu professor? [NG] - No Porto, não. O Domingos Tavares também deu aulas na Escola de Coimbra. [GF] - Nem o Alexandre Alves Costa, nem o Domingos Tavares, duas grandes referências também do Porto. [NG] - O Domingos Tavares e o Alexandre Alves Costa trouxeram a História da Arquitetura Portuguesa para dentro da Escola de Coimbra. Uma disciplina muito importante; mas a mim interessa-me mais o Álvaro Siza, enquanto figura internacional, do que como arquiteto português. Eu tenho escrito sobre isso a que se chama “arquitetura portuguesa” … embora sempre numa relação universal com tantas outras culturas, tantas outras geografias. [GF] - Mas não no sentido do “regionalismo crítico”. [NG] - Também não me interessava “regionalizar” a obra do Siza. [GF] - É em finais dos anos 80 que o Frampton lançara o Regionalismo Crítico, “Towards a Critical Regionalism”. [NG] - Em meados da década de 1980 toda a gente falava desse epíteto. Nós também achávamos que era um bocadinho injusto aprisionar o Siza no “regionalista crítico”. Mas eu, nessa altura, era ainda aluno. Faço uma tese de fim de curso, sobre a minha experiência em Gaia, e começo a trabalhar com o Manuel Fernandes Sá. [GF] - Pois, com o viaduto do Porto... Do Manuel Fernandes de Sá, onde trabalhas entre 1992 e 1998. [NG] - Portanto, Nuno Portas como referência, e o Manuel Fernandes Sá como mentor, muito próximo do Nuno Portas. [GF] - Tu ainda estás com o Fernandes Sá quando concebem o viaduto do Cais de Gaia. [NG] - Trabalhei na primeira fase, que é a do Plano de Pormenor, no traçado da sua implantação. Quando se faz o projeto de execução, eu já não estava no escritório. Lembro-me de ter desenhado aquela curva, ainda à mão, com a ajuda de escantilhão… [GF] - E estiveste com o Manuel Fernandes Sá a praticar aquilo que o Portas te ensinara como professor. [NG] - E o Manuel Fernandes Sá continua o pensamento de Nuno Portas. É alguém que consegue perceber esse pensamento, adaptando-o, à sua maneira, em distintos planos. [GF] - A própria ideia de projeto urbano ou de metaprojeto. [NG] - Sim. Manuel Fernandes de Sá é também influenciado pela Escola inglesa, do estruturalismo, do “advocacy planning”, depois do “projeto urbano” … [GF] - Portanto, a certa altura, começaste a pensar: “Eu vou ser urbanista”. [NG] - Eu trabalhava com arquitetos-urbanistas. Mas sempre resisti a pensar-me como urbanista. Uma das coisas que mais me intrigava no Nuno Portas era exatamente essa distância que ele ganhou em relação à forma arquitetónica. Pessoalmente, acho que fôrma e a forma não são coisas dissociáveis. Tinha discussões com o Nuno Portas, porque o seu discurso anti-forma, se tornava, muitas vezes, em anti-arquitetura. [GF] - Ele adora a arquitetura e espaços das relações sociais. [NG] - O Diogo Seixas Lopes e o André lançaram precisamente esse tema na Trienal de Arquitetura de Lisboa: “A forma da forma”. [GF] - Isso constrói ou não a sociedade? Será é essa a questão? Ou é apenas um desafio intelectual. Como fora relativamente à questão do cinema, de promover os arquitetos internacionalmente. [NG] - Para Portas, a forma não muda a sociedade, talvez acredite mais no contrário. Ele quer que a cidade seja multi-autoral. Ao contrário do Le Corbusier, que desenhava cidades inteiras. [GF] - Ele achava que a cidade não podia ser desenhada por um único arquiteto./ É por isso que entra nas questões também das leis, para os PU’s, PP’s, PDM’s.../ Ele acha que os arquitetos urbanistas devem estar na retaguarda a preparar o caminho para que depois a cidade seja multi-autoral./ E, portanto, foi arquiteto do meta-projeto... De resto ainda compara outros tipos de planeamento. O projeto urbano, depois o projeto estratégico... E depois não passou pelo urbanismo tático. [NG] - Provavelmente hoje, se estivesse no ativo… Não sei se estaria totalmente de acordo com essa visão “tática”. Eu acho que ele sempre gostou da estratégia mais do que da tática. [GF] - Eu acho que o urbanismo tático é uma coisa muito bottom-up, desconfia muitas vezes do urbanismo estratégico. [NG] - E eu acho que há elementos no Urbanismo Estratégico que não podem desaparecer. Tu não podes planear uma cidade apenas a partir do ativismo urbano, que é hoje inerente ao Urbanismo Tático. [GF] - Ele vinha dos traçados. [NG] - Exatamente. [GF] - Ele nunca podia ser só do urbanismo tático. [NG] - Da cidade dos 15 minutos e das superquadras... Ele acha isso interessante, mas sempre acreditou no traçado e no “desenho” com “desígnio”, como ele gosta de dizer. [GF] - Um desenho que prepara a arquitetura. [NG] - A do “arruador”. [GF] - Era o início das aulas dele, não é? [NG] - Eu acho que o Urbanismo Tático tem muitos problemas. Serve de alibi para não se resolverem as verdadeiras questões da cidade. É uma moda. Fechar ruas, pinta-las de azul e amarelo, fazer ciclovias, canteiros, esplanadas, eventos efémeros, resolve os problemas estruturais da cidade? Não resolve. [GF] - E mesmo as modas das cidades criativas, e outro género de paradigmas que também não a resolvem. Parece que se está sempre a inventar um adjetivo qualquer para a cidade. Ou é global, ou é criativa, ou é de todo o género. Para desculpar essa falência do Estado. Estamos sempre à procura de um adjetivo que salve a falência do urbanismo estratégico. [NG] - E eu acho que o Urbanismo Estratégico, se for bem aplicado, é consequente. O Cerdá, o maior “estratega” de sempre, fez de Barcelona uma cidade maravilhosa. [GF] - Acreditando no traçado. [NG] - Acreditando naquilo que o Portas também acreditava: na grelha urbana, no tabuleiro de xadrez. O Portas, nesse ponto de vista, é um Romano. [GF] - Depois de estares em Lisboa/Coimbra, há uma segunda fase em que voltas para a Faculdade do Porto, como professor convidado. O Porto teve um papel na criação da Escola de Coimbra. Vocês integraram uma jovem geração que durou a montagem da Escola. [NG] - No final da década de 1990, faço as minhas provas de aptidão pedagógica e científica. Passo a ser professor assistente na Universidade de Coimbra [GF] - Mas chegaste a dar aulas no Porto já antes como monitor do 2º ano com o Manuel Correia Fernandes, a Projeto. [NG] - Cheguei a dar umas aulas aqui como monitor durante 6 meses. E fui professor do Pedro Bandeira, da Bárbara Rangel, de uma série de pessoas que hoje são meus colegas. Era um “miúdo”, tinha mais 2 anos que eles. O coordenador da disciplina era o Manuel Correia Fernandes. [GF] - Mas já não o apanhaste como diretor. [NG] - Já não o apanhei como diretor da FAUP. [GF] - Qual a tua ideia do papel dele na Escola, no associativismo, na cidade? / Até porque depois, no “Porto 2001”, encontraram-se. [NG] - Eu acho que o Correia Fernandes é alguém que vem dessa tradição da Escola, do desenho, do projeto detalhado, da admiração pela cidade. [GF] - Essa ideia de uma Escola oficinal, Escola atelier. Mas desde cedo o Correia Fernandes começa a ter uma relação também com a “política”. Foi vereador da Câmara Municipal do Porto. [NG] - Foi das poucas pessoas que teve coragem de, tal como o Nuno Portas, de se meter na política ativa e ser vereador de uma cidade muito complexa, como é o caso do Porto. A Escola do Porto, por tradição, não se misturava com a política oficial. A seguir ao SAAL, a Escola coloca-se numa posição resistente em relação à cidade capitalista. [GF] - A cidade continua a crescer, como sempre cresceu, pela iniciativa privada. [NG] - As cidades que mais amamos - Londres, Paris, Berlim… - foram feitas também pela iniciativa privada, noutro momento da História. A Escola manteve essa resistência em relação à gestão autárquica que estabelece compromissos com o mercado. [GF] - Na altura do “Porto 2001”, o Correia Fernandes ainda não era vereador, foi administrador? [NG] - E convida uma série de arquitetos da Escola e outros para fazer o concurso para a Reabilitação Urbana da Baixa do Porto. [GF] - Com projetos para a Baixa do Porto. Ao fim de 30 anos, a Escola regressa à cidade do Porto onde sempre esteve. [NG] - Para desenhar a cidade. Coisa que tinha, de certo modo, adiado ao longo de 30 anos. Curiosamente, 4 arquitetos da Escola do Porto ganham o concurso para as 4 áreas da Baixa do Porto. [GF] - O Camilo, o Alves Costa, o Adalberto Dias e o Virgínio Moutinho. [NG] - Sim, exatamente. E, portanto, a Escola regressa à cidade. Mais tarde, fez-se um livro. [GF] - Que o Manuel Mendes editou, e que se chama “Porto 2001 Regressa à Baixa”. Fala desse regresso da Escola à cidade? [NG] - Pela mão do Correia Fernandes, que depois a seguir vai para a Câmara como vereador da oposição. E ao contrário do que ouço dizer, por vezes, acho que ele foi um vereador que pensou a cidade, escrevendo regularmente sobre ela… [GF] - No jornal de notícias, muito bonito. [NG] - O Correia Fernandes é um arquiteto político… da Pólis. [GF] - Ele foi arquiteto militar, em África. [NG] - Sim, e esteve sempre no seio de uma certa esquerda socialista portuguesa, que, na verdade, foi sempre uma esquerda culta e urbana. [GF] - Esta organização toda da Frente do Rio é uma coisa que estava no PDM, com projeto de pessoas da casa. [NG] - Há projetos de vários arquitetos para a frente do rio. Sim, de pessoas da Escola do Porto. X. [GF] - Tu não estiveste em contato com o Correia Fernandes dentro da Escola? [NG] - Só como monitor dele durante aquele período. E gostei imenso de trabalhar com ele, pedagogicamente, [GF] - É pragmático... [NG] - Mas é também um idealista, é engraçado. Porque ele tem ideias abrangentes sobre a cidade. Como diretor na Escola não sei porque eu não estava cá. [GF] - Mas depois regressas em 2004 à FAUP, quando o Nuno Portas se jubila. [NG] - Eu estava a fazer o doutoramento com ele. A geração mais experiente, o Alves Costa, o Domingos Tavares, o Rui Brás, etc.… ninguém desejava dar a disciplina de “Urbanística”. E lá vim eu… durante os primeiros 5 anos segui à risca o programa do Nuno Portas. [GF] - Às vezes com slides ou acetatos do Nuno Portas? [NG] - E do Manuel Fernandes Sá e de outras pessoas que me emprestavam diapositivos. Os PowerPoints estavam ainda a começar. E caíam os slides ao chão e os alunos riam-se, porque muitos já nem sabiam o que era um slide. Estive na FAUP, como convidado, cerca de 10 anos. [GF] - Os primeiros 5 anos seguias à risca o Nuno Portas. [NG] - Fiz umas variações pequenas. Era sempre da Romanização até ao Projeto Urbano contemporâneo. Era a história da cidade, vista a partir de um olhar não historiográfico. Eu não sou historiador. [GF] - Nem ele era historiador. [NG] - Sim, ele dizia sempre: “Eu não sou historiador”. [GF] - Tu apanhaste duas direções diferentes. A direção de Domingos Tavares de 2000 a 2007, e a direção do Francisco Barata. [NG] - Apanhei a direção do Francisco Barata. Mas foi sobretudo a direção de Domingos Tavares. Eu não tinha contacto com a direção, porque, estava aqui com base num protocolo entre a Universidade do Porto e a de Coimbra. Dava as aulas à segunda-feira, às nove da manhã. Alguns alunos eram fervorosos adeptos; outros dormitavam. Urbanística não é uma disciplina fácil. [GF] - Estavas em Coimbra a dar projeto e, nessa altura, se calhar também outras coisas. Mas, na FAUP, qual foi a perceção que tiveste? [NG] - Que era uma Escola feita por colegas, amigos e familiares. Uma grande família, entre convidados e professores de carreira, que entraram por concurso. [GF] - Concursos sempre se fizeram. [NG] - A ideia do professor convidado não tem grande recetividade na Universidade de Coimbra. Na Escola do Porto, os professores convidados prolongam-se no tempo. Porque a Escola tem autonomia para convidar. No Departamento de Arquitetura da Universidade de Coimbra, dependente da Faculdade de Ciências e Tecnologia, essa autonomia não existe. [GF] - E a Faculdade de Ciências não gosta de professores convidados? [NG] - O que todos querem é que os convidados acabem por fazer carreira na própria Universidade. Estamos sempre a explicar-lhes, em vão, que um professor convidado traz a sua prática profissional para dentro da Escola. [GF] - A arquitetura não é só investigação. É também labor, projeto, obra, etc. [NG] - E, portanto, é importante trazer arquitetos que tenham obra construída para o mundo académico. No Porto, houve casos de arquitetos convidados que nunca fizeram o seu doutoramento. Mas era importante estarem aqui, porque tinham uma obra interessante. [GF] - Portanto, tens essa ideia da Escola do Porto mais aberta? [NG] - Na verdade, tem a ver com uma prática que existe na Escola, há muito tempo. Os convidados são pessoas consensualmente admitidos como bons arquitetos. [GF] - Justamente vieste numa geração coincidente com a agenda de criar outras Escolas. E por isso é que vocês não ficaram aqui logo. [NG] - E também me acusaram de eu tirar lugares a muita gente em Coimbra (Risos) [GF] - Acabaram por fazer outra Escola. [NG] - Tínhamos começado a construir uma Escola. Não havia razão para vir para aqui “estragar” esta. E foi isso. E eu acho que esta Escola vive ainda de muitos contributos e cruzamentos. [GF] - O doutoramento também trás muita gente. [NG] - Eu estive no curso de doutoramento aqui e tem muita gente de outros lugares. [GF] - Criaram no Porto o doutoramento em 2008. Dizes que estiveste no PDA entre 2010 e 2016. E de 2004 a 2014 em Urbanística do MIArq? [NG] - Eu sempre fui um convidado desta Escola. Sempre fui “estrangeiro”. E sempre me senti bem por ser “estrangeiro”. Eu realmente acho que esta Escola beneficia de ter “estrangeiros”. [GF] - O que é que tu sentias nestes dois últimos períodos? A Escola na altura passou a ser uma Escola de massas. [NG] - Já era uma Escola de massas. Eu só posso comparar a Escola que conheci com a Escola de hoje. A Escola que eu conheci era efetivamente uma Escola-atelier, onde todos se conheciam, respeitavam-se mutuamente, respeitavam o trabalho uns dos outros. [GF] - Era uma Escola em que muitos traziam o seu próprio atelier para dentro dela. A Escola era uma continuidade do atelier, uma Escola oficinal. [NG] - O que me irritava, enquanto aluno, era que esse “ofício” seguia regras de trabalho e de representação muito semelhantes entre si. [GF] - Já não encontras essa similitude única. A Escola de hoje está simultaneamente mais aberta e estilhaçada. [NG] - Pode ser bom estar mais estilhaçada, se esses “estilhaços” se conhecerem e se respeitarem, nas suas diferenças. Mas acho que os professores, hoje, não se conhecem bem. Existem anos letivos isolados, enfeudados em práticas próprias, sem diálogo com outros anos. [GF] - Também se consolidaram desafios, áreas e anos. [NG] - Mas acho uma pena que esses fragmentos não se juntem de vez em quando para tentar construir consensos. [GF] - É mais difícil e desafiante construir consensos na Escola de hoje. Basta ver o Plano de Estudos. Já foi discutido várias vezes. Com situações em que, os próprios alunos, tentaram participar e promover mudanças, com o apoio de alguns professores e a oposição de outros. [NG] - São histórias conhecidas. [GF] - Mas tem havido sessões públicas de debates e continua a haver. [NG] - Sim, houve sessões públicas em que isso aconteceu... Uma instrumentalização dos estudantes para gerar oposição entre professores leva a Escola a perder o seu rumo. Sempre houve alguma manipulação de certos grupos estudantis. No nosso tempo havia subversão, mas éramos respeitados. [GF] - E acho difícil que isso aconteça só no Porto, não é? [NG] - Em Coimbra, por exemplo, as decisões são profundamente debatidas. Nas Comissões Científicas, toda a gente emite opiniões, por vezes contundentes. E os estudantes do NUDA (Associação de Estudantes) são ouvidos. E depois, naturalmente, há que chegar a consensos. [GF] - Não há um ambiente mais conservador na academia de Coimbra? [NG] - Não no Departamento de Arquitetura. Lá dentro, somos sempre vistos como os "enfants terribles" da Universidade de Coimbra. É uma universidade com sete séculos… [GF] -Mas a bibliometria,, etc... Agora, isso começa a ser posto em causa, e já se valoriza a transmissão de conhecimento para a sociedade, etc: escrever livros, fazer exposições, obras publicadas... Antes, tudo isso era tabu. Um investigador era um “investigador”, fazia papers, e pronto. [NG] - Nós até contribuímos, na Universidade de Coimbra, para o fim desse regime ditatorial da bibliometria. Felizmente, isso está a mudar. Mas os problemas que vejo aqui no Porto não são esses. São questões mais “tribais”. [GF] - Idiossincrasias sobre o que é a arquitetura, o que é o Projeto, para que serve o ensino do Projeto? [NG] - É aí que se concentram os maiores conflitos. Talvez também na teoria, mas é no projeto que se tomam as grandes decisões. [GF] - Cada um faz a sua doutrina? É produtivo fóruns abertos de discussão sem tabus. [NG] - O que falta é um fórum ativo e permanente onde se possa discutir o que está bem ou mal. [GF] - Mas nas reuniões fala sempre a mesma dúzia. E os outros? (Risos) [NG] - É isso que acontece nas Escolas mais estilhaçadas, como dizes… [GF] - Se calhar temos várias Escolas, que não conversam entre si tanto quanto podiam. [NG] - Se um aluno tiver a sorte de encontrar professores que o estimulem, faz um ótimo curso. Mas se for apanhado no meio destas guerras, e escolher uma fação, vai carregar esse karma o resto da vida. [GF] - Para terminar, sei que tiveste uma relação com a Ordem dos Arquitetos. Aqui na FAUP também houve uma fase de direção do Carlos Guimarães, o qual também esteve na Ordem. A Escola de hoje é uma continuidade disso? O que recordas? [NG] - O Carlos Guimarães é uma pessoa ponderada e que gosta de ser consensual. [GF] - É alguém que gostava de consensos na Escola? [NG] - Tentava compreender todos os estilhaços, e, ao fazer isso, deu a cada ano letivo a possibilidade de criar o seu próprio mundo, a sua autonomia. Em certos aspetos, essa fragmentação criou várias Escolas dentro da Escola. [GF] - Era alguém que queria sempre que toda a gente se desse bem? [NG] - Dar-se bem, pressupõe aceitar o conflito. É pôr as pessoas a conversar. [GF] - A Escola do Porto continua a destacar-se na última década. [NG] - Desde meados da década de 2010, a Escola estilhaçou-se, como vimos comentando. As direções tomam partido: estão de um lado ou do outro, ou favorecem uma visão em detrimento de outra. [GF] - Mas o João Pedro Xavier, que fez 2 mandatos como Vice-presidente do Carlos Guimarães, assegurou alguma continuidade, vindo a fazer 2 mandatos como diretor. [NG] - Há uma continuidade, mas também o prolongamento desses estilhaços e alguns estão a perder força. Parece-me que a área do Urbanismo, por exemplo, vem perdendo pessoas e o legado de Nuno Portas está a dissipar-se. Digo isto há muito tempo. [GF] - Uma das maiores competências da Escola era o corpo docente na área do projeto urbano. Também o Mestrado, como a FEUP, onde muitos se formaram./ O Nuno Portas sempre defendeu a centralidade da cidade, penso que integrado na coluna do ensino de Projeto, ou separada num ou outro dos ciclos que compõem um Plano de Estudos. E depois há ainda outra linha, a da Reabilitação ou Património, quanto à qual se pode também levantar questões sobre como deve entrar/estar no Plano de Estudos. [NG] - O que me assusta é a forma como não se está a recuperar o pensamento de Nuno Portas. O Urbanística parece mais presente no Doutoramento do que no Mestrado da FAUP. E a cidade não é um palco apenas dos “investigadores” e dos “especialistas”. [GF] - Está a perder o seu discurso sobre a cidade? [NG] - Estão a sair da Escola preciosos discípulos do Nuno Portas, formados mais recentemente, e que podiam ter continuado essa “Escola do Porto do Urbanismo”, como lhe chamou o geógrafo João Ferrão. Mas essa Escola parece estar a morrer. É uma pena. Eu já disse isto publicamente, portanto estou à vontade para o dizer nesta entrevista. [GF] - Nuno, ficamos por aqui. Muito obrigado.

6/19/25

Cultura urbana, Problemáticas contemporâneas em arquitectura (Gonçalo Furtado, junho 2025)

Proposta (Gonçalo Furtado, junho 2025) Cultura urbana, Problemáticas contemporâneas em arquitectura A proposta desta comunicação ao “XI Congresso Internacional sobre Culturas”, visa contribuir para a reflexão sobre “múltiplos espaços (…) e dimensões da cultura na sociedade contemporânea”; designadamente para o painel sobre “Culturas urbanas (…)” que entende que “as cidades são territórios vivos onde se entrecruzam fluxos” e que “em tempos de crescente urbanização, gentrificação e segmentação espacial, torna-se urgente pensar a cidade como lugar de cultura e de conforto entre visões de mundo diversas”. (vd. website do colóquio https://culturas.cc/congresso2025/) A proposta provem da disciplina da Arquitectura, onde o tema da Cultura urbana compreende aspectos como os visados neste painel/Coloquio: “espaços urbanos” e “espaços públicos”, “desigualdades sociais (…) e territoriais”, políticas culturais” e “expressões urbanas”. E a comunicação basear-se-á em deafios abordados no livro do autor “A sobrevivência da cidade pós-industrial: redes, fluxos, bits e criatividade”, editado em 2021 pelo “Centro de Inovação em Arquitectura e Modos de Habitar” da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto (ISBN 978-989-99346-2-7). Ao longo da comunicação “Cultura urbana, Problemáticas contemporâneas em arquitectura” propomos revisitar a cidade e o debate da cultura urbana contemporânea. Como referido na introdução do supramencionado livro, trata-se de “Um debate composto por múltiplos aspectos, incluindo capítulos focando a condição urbana contemporânea (…), designadamente a organização da cidade em rede, a sua característica transitoriedade, a omnipresença da imagética, a mobilidade e comunicações digitais, etc. Bem como composto por desenvolvimento posteriores (…), incluindo reflexões sobre a crucialidade atual da rehabilitação (…) ou o paradigma das cidade criativas (…). Em suma, que procura atender ao debate urbano no fim do século XX bem como às direcções para que o debate urbano se deslocou na última década”. Assim, a comunicação virá estruturada pela seguinte sequência de tópicos: 0. - Introdução: Aspectos para debate contemporâneo (…) ; 1 - O urbano e o espaço público; 2 - Intervir na cidade (…) 2.1 - O urbano e a arquitectura; 2.2 - O urbano e o património; 3 - A cidade no contexto pós-industrial; 3.1 - O urbano e as redes (…); 4 - O urbano e a sociedade da informação; 4.1 - O urbano e a televida; 4.2 - O urbano e a cidade digital; 5 – Pela sobrevivência a cidade; 5.1 – Uma cidade criativa (…)

6/6/25

Salão Nobre da Reitoria, 11 de junho 2025 ás 15h00

Debate, Salão Nobre da Reitoria, 11 de junho 2025 ás 15h00. Transmissão YouTube:www.youtube.com/universidadedoporto/live

Lista A - manifesto

Manifesto Lista A disponível em: https://sites.google.com/g.uporto.pt/cgup2025listaa / incLui membros, principais linhas programáticas e visão estratégica para UP.

6/3/25

LISTA A

ISTA A "Por uma U.Porto de futuro: visão e compromisso" / Universidade do Porto / Eleição para o Conselho Geral / 18 . 6 . 2025 Membros Efetivos Isabel Dias (Delegada), FLUP / Paulo Célio Alves, FCUP / Fernando Pereira, FEUP / Maria Emília Sousa, FFUP / Eduardo Rocha, ICBAS / Nuno Valentim, FAUP / José Manuel Jorge, FEP / Célia Cruz, FMUP / António Mendes Ferreira, FEUP / João Pedro Araújo, FCUP / Ana Collete Maurício, ICBAS / António Pedro Aguiar, FEUP / Membros Suplentes António Azevedo Ferreira, FEUP / Marcela Segundo, FFUP / João Rabalde, FLUP / Luís Castro, FCUP / Cecília Ferreira da Silva, FEUP / Jorge Quintas, FDUP / Paula Tamagnini, FCUP / Jorge Milhazes de Freitas, FCUP / Gonçalo Furtado, FAUP / Henriqueta Sampaio da Nóvoa, FEUP / Manuel Vilanova, ICBAS / Pedro Ponces Camanho, FEUP / Página com a informação _ Lista A https://sites.google.com/g.uporto.pt/cgup2025listaa

Listas eleição ao Conselho Geral, Universidade do Porto

Amanhã pelas 10h30, há um debate, transmitido em www.youtube.com/universidadedoporto/live.

5/29/25

Mutação das propostas de reabilitação em centros urbanos do norte de Portugal

Rosa Macedo - “Mutação das propostas de reabilitação em centros urbanos do norte de Portugal”. Programa Doutoral em Arquitectura da FAUP / Co-orientação: Gonçalo M. Furtado C. L. - FAUP / Ana Cláudia Costa Pinho - FAUL / Trabalho para doutoramento em curso

5/22/25

Apontamentos sobre arquitectura portuguesa e escola

1 - Apontamentos sobre arquitectura portuguesa e escola / Gonçalo Furtado ; des. Gonçalo Furtado, Ricardo Martins. - [Porto] : Lugar do Desenho - Fundação Júlio Resende, 2024. - 89, [53] p. : il. ; 30 cm. - ISBN 978-989-35431-2-2 Link persistente: http://id.bnportugal.gov.pt/bib/bibnacional/2211724 Copiar link

5/16/25

IJUP 2025 - CC

https://www.up.pt/ijup/sobre-o-ijup/#comissaocientifica

UP

https://www.youtube.com/user/universidadedoporto

5/15/25

CONVERSA SOBRE ARQUITECTURA E ESCOLA DO PORTO _ FEVEREIRO 2020 (José Cabral Dias, com Gonçalo Furtado)

  CONVERSA SOBRE ARQUITECTURA E ESCOLA DO PORTO _ FEVEREIRO 2020 (José Cabral Dias, com Gonçalo Furtado) I. [Gonçalo Furtado] - José, propunha falar contigo por seres das poucas pessoas na Faculdade que veio de Coimbra. Interessava, sobretudo nessa posição privilegiada em que estás, de ter estado nos dois locais, perceber como é que modelo do Porto foi implementado noutras Escolas públicas. Neste caso em Coimbra, que foi a primeira./ Alguns dos professores eram comuns, outros não, como é que FAUP apoiou a implementação do curso em Coimbra; como é que tu recordas esses anos em Coimbra? As disciplinas que tinhas, os professores que tinhas... Sobretudo, agora, como professor na FAUP, também consegues fazer comparações à distância, e vais a Coimbra muitas vezes. Conheces a forma como o curso evoluiu, e, também, o modo como o do Porto evoluiu. [José Cabral] – Bem, Gonçalo, vou tentar ser rigoroso. Vamos conversar sobre episódios que já se passaram há algum tempo… Respondendo-te, de facto a relação é estreita, e explica-se facilmente porque no nosso 2º ano houve uma revisão significativa do plano de estudos. A revisão teve como principais intervenientes Fernando Távora, Alexandre Alves Costa e Domingos Tavares e aproximou a estrutura formativa daquela que era praticada na FAUP. Aliás, os três continuaram ligados ao ensino no DARQ durante anos, em Projecto e História da Arquitectura. Alves Costa foi meu professor em Projecto, no 2ºano, e mais tarde em História da Arquitectura Portuguesa, no 5º ano. Domingos Tavares foi meu professor em História da Arquitectura Moderna, no 3ºano. E Távora, em Projecto do 4º ano./ A ligação de que falavas existe, de facto, porque a comissão formada por Távora, Alves Costa e Domingos Tavares veio a assumir uma grande responsabilidade no futuro do curso. [GF] - Entraram só no 2º ano? [JC] - Só entraram no 2º ano. O meu professor de Projecto do 1º ano foi o João Mendes Ribeiro. [GF] - O João Mendes Ribeiro esteve sempre só em Coimbra, acho que nunca chegou a dar aulas mesmo no Porto. [JC] - Creio que não terá passado mesmo pelo Porto enquanto docente. Foi professor na Faculdade de Arquitectura, mas na Unidade Pedagógica de Viseu. Foi para Viseu no final do nosso 1º ano e regressou no nosso 4º ano, novamente para Projecto, para assistente de Távora. Foi assistente de Távora até 1998 – nesse ano, Távora estaria já com 75 anos ou perto disso e ter-se-á desvinculado do ensino em Coimbra. [GF] - Em 1988, quando tu entras para o 1º ano, quem é que tomava conta do curso? [JC] - O curso surgiu dentro da Faculdade de Ciências. Não sei como nem com quem é que o Plano de Estudos foi elaborado, mas creio que terá sido decidido internamente. O curso surgiu como fruto da mobilização do Núcleo de Arquitetos Locais, o NARC. [GF] - O Núcleo de Arquitectos da Região de Coimbra. [JC] – Sim, os arquitectos locais, organizados em torno do NARC, conseguiram em articulação com a Universidade, que o curso surgisse. E o João [Mendes Ribeiro], tanto quanto sei, foi uma indicação do próprio NARC… a organização local que antecedeu o Núcleo de Coimbra da Ordem dos Arquitectos. [GF] - Da qual fazia parte o Bandeirinha. [JC] – Sim, o Bandeirinha fazia parte dos poucos arquitectos que existiam em Coimbra, mas não sei se fazia parte da direção desse grupo./ Mais tarde, o [José António] Bandeirinha entrou também para o 2º ano, por concurso. Abriram um concurso para 3 lugares para assistente. Entrou o Bandeirinha, entrou o Walter Rossa, e o Mário Bento, um arquitecto de Lisboa. Ficaram os três como assistentes de Alexandre Alves Costa, em Projecto./ Desse grupo, o Bandeirinha foi até o que mais ligação manteve ao ensino de Projecto (pelo menos, nos anos em que tive mais ligação ao DARQ). Actualmente é professor catedrático e Presidente do Departamento [à data da entrevista]. [GF] - Também foi vice-reitor ou pró-reitor. [JC] - Sim, foi Pró-Reitor para a Cultura, entre 2007 e 2011./ O Walter [Rossa] é também professor catedrático, e afirmou-se mais na História da Arquitectura Portuguesa, como docente e investigador. Penso que até tem tido mais destaque na História da Cidade Portuguesa. Terá aí aprofundado os seus interesses, no campo da cidade e do património. [GF] - Portanto, foram pessoas que entraram nesse 2º ano. Esse modelo está necessariamente muito próximo do modelo de ensino do Porto, porque surgiu a partir do entendimento da Arquitectura e do ensino de 3 pessoas que são fundamentais na Faculdade. [JC] – Não o diria exactamente desse modo. Há de facto uma matriz de origem próxima do ensino no Porto, mas a proposta de ensino em Coimbra juntou pessoas de vários sítios, com interesses convergentes, com certeza, mas com experiências profissionais e pedagógicas que são diversas. Tinham certamente modos afins de ver a arquitectura… mas não vieram só do Porto, também vieram de Lisboa e creio que é correcto dizer-se que tinham o seu próprio modo de olhar o ensino./ Eu estou a lembrar-me de Manuel Taínha, que foi meu professor de Projecto no 3º ano. Mais tarde, Vítor Figueiredo entrou também para Projecto do 3º ano. Manuel Graça Dias também teve uma passagem por Coimbra, em Projecto 3. Hestnes Ferreira veio a entrar para Projecto do 1º ano. Gonçalo Byrne foi meu professor no 5º ano. No 4º ano, foi Távora. [GF] - Portanto, criou-se ali uma plataforma que juntou pessoas de vários sítios e que, de facto, criou frutos. [JC] - Eram pessoas que se respeitavam imenso e diria que, de alguma forma, eram complementares. Terão sido todos convidados pela Comissão instaladora do Curso, presidida por Margarida Ramalho (professora na Faculdade de Ciências e Tecnologia), mas certamente com um forte contributo de Alves Costa, Domingos Tavares e Távora. Como estava a dizer-te, apesar das diferenças, tinham proximidade, pelo modo como pensavam, caso contrário não se tinham juntado ali, num novo projecto de ensino. Essa proximidade sentia-se. Porventura, o facto de estarem a construir algo de raiz criava uma ligação forte entre as pessoas, uma espécie de cimento. Nós sentíamos isso no modo como se relacionavam. Não só no interior da Escola, mas também em convívios e jantares com estudantes, nos quais muitos dos professores normalmente participavam. A Escola era pequena. Isso ajudava. [GF] – Percorreste os grandes nomes que vieram de Lisboa. O Vítor Figueiredo, o Gonçalo Byrne, e o Manuel Taínha. [JC] – Como disse, Hestnes também passou por lá e teve um forte papel no ensino. Permaneceu alguns anos, com continuidade, e criou uma matriz própria em Projecto 1. O ritmo era intenso, com muitos exercícios de curta duração, mas creio que aqueles que foram seus alunos lhe reconhecem um importante papel na sua formação. Não foi meu professor, eu já tinha passado o 1º ano./ Como estava a dizer, houve também Manuel Graça Dias no 3º ano, embora com uma passagem não tão longa. Foi um pouco disruptivo e não terá sido bem compreendido; creio que não quis continuar, tenho pena… mas não só o Manel. Correndo o risco de algumas omissões, vieram também Reis Cabrita e Mário Krüger de fora de Coimbra, mais ligados ao ensino da Teoria. Na História, Paulo Varela Gomes foi marcante. Tinha um especial talento para cativar e motivar os estudantes. Era acutilante, e por vezes era mesmo desconcertante, como modo de nos fazer pensar. E, obviamente, José Gigante, na Construção. Sinto que o seu sentido de humor e a empatia eram tão importantes nas aulas como o discurso rigoroso. Era um professor muito próximo./ E com isso conseguia intensificar o nosso interesse pela Arquitectura. [GF] – Manuel Graça Dias a dar Projecto 3, tinha como assistentes o José Fernando Gonçalves e o Paulo Providência. [JC] – Sim, é verdade. Portanto, percebe-se que embora o curso estivesse próximo do ensino no Porto, na sua estrutura-base, não era exatamente um “clone”. Conheces o Manel... [GF] - Os três grandes professores que estavam a dar aulas eram esses três – Távora, Alves Costa e Domingos./ Estas figuras eram de Lisboa, mas também próximas, digamos... [JC] – Próximas do Porto ou dos professores que lá ensinavam. Exatamente. [GF] - E o Manuel Vicente? [JC] - Nunca por passou por Coimbra. [GF] - E os docentes locais? Era o Bandeirinha e o João Mendes Ribeiro? [JC] - Sim, havia também o Gonçalo Urbano, mas não tive um grande contacto com ele. O João Marta… tinha escritório em Coimbra. Foi meu professor de Construção no 3º ano. O Walter Rossa não era de Coimbra, embora tivesse adotado Coimbra. Era da zona da Aveiro. Fez o curso em Lisboa./ Estavas a perguntar… o José Fernando Gonçalves e o Paulo Providência entraram para o 3º ano, para trabalhar com Manuel Taínha, que foi o nosso professor de Projecto do 3º ano./ Repara que estou a falar-te dos primeiros anos do curso, na forma como ele surge. No 4º ano, regressou o João, enquanto assistente de Távora. Havia só uma turma. Era numerosa. E no 5º ano, o Nuno Grande entrou com Byrne. Entrou para professor das turmas práticas. [GF] - O Nuno Grande só entrou em 1992/93. [JC] - E o Jorge Figueira entrou para o 2º ano, ainda eu estava por lá, como aluno. O Mário Bento, entretanto, já tinha saído. [GF] - E o Pedro Maurício Borges? [JC] - O Pedro Maurício entrou mais tarde, para o 1º ano. [GF] - Mais tarde, do que em relação ao teu ano de entrada? [JC] - Sim, exatamente. De qualquer modo, julgo que ainda o terei apanhado no DARQ, enquanto estudante. No caso de Hestnes, seguramente. Eu ainda estava na Faculdade quando entrou para o 1º ano. O Pedro Maurício foi trabalhar com Hestnes e creio que o Gonçalo Urbano também fazia parte da equipa./ Ou seja, pelo que sabemos desses arquitetos, do trabalho deles, por aquilo que muitos escreveram, pela obra, pelas relações que tinham com Távora, Alves Costa e Domingos, percebe-se que existia a intenção de dotar o curso de Coimbra de um ensino mais sólido. [GF] - E que não poderiam estar muito distante do Porto. Embora não fosse exatamente igual… [JC] – Havia essas pontes, de que já falámos. Em todo o caso, o curso foi construindo a sua própria via, com autonomia, reforçando-a ao longo dos anos pela didáctica, a investigação (que veio a ser desenvolvida) e pela progressiva consolidação de um corpo docente próprio… ou pelo menos autónomo. Não nos esqueçamos que logo nos primeiros anos começaram a entrar colegas nossos, já formados no Departamento [de Arquitectura]./ Os primeiros a entrar foram o Rui Lobo e o Adelino Gonçalves, meus colegas de curso. Mais tarde entrou o António Bettencourt. [GF] - O Adelino também era teu colega de curso? [JC] – Exactamente. Também fomos colegas no liceu, além de colegas na Faculdade. [GF] - São pessoas de Coimbra. [JC] - Sim. O Lobo e o Adelino fizeram o liceu em Coimbra; o Bettencourt, não. Era Açoreano e foi para Coimbra para estudar./ Depois disso… já não te sei dizer a sequência exatamente… entrou o Luís Miguel Correia, que é neste momento o vice-presidente do Departamento [é o actual presidente]. A ida do Miguel para o Departamento coincidiu com a contratação do Nelson Mota, mais ou menos na mesma época. O Nelson esteve a dar aulas de Projecto durante uns anos no DARQ. Foi para Delft, fez lá o doutoramento e ficou. Foi convidado a ficar a dar aulas lá, na faculdade./ O Gonçalo Canto Moniz também já teria entrado. Nos anos seguintes, entraram mais ex-estudantes no DARQ. O João Gomes, que trabalhava com o Gigante, entrou para Construção, juntamente com o João Fôja. Isto já nos anos 2000. Actualmente, são muitas as pessoas já diplomadas no DARQ. [GF] - A irmã do Lobo entrou mais tarde. [JC] – Sim, não foi das primeiras a entrar. [GF] - São todas pessoas já formadas ali. [JC] – Sim, são pessoas já formadas ali. [GF] - Nesse ensino de Arquitectura, o que é que tu recordas de grandes cadeirões, em termos de cultura arquitetónica? O que é que te marcou? [JC] - Marcou-me muito a cadeira de Teoria de Arquitectura com José Aguiar. Na época, era investigador no LNEC. Foi para Coimbra enquanto assistente de Reis Cabrita em Teoria 1… entretanto, passou da carreira de investigação no LNEC para a Faculdade de Arquitectura de Lisboa. As aulas foram praticamente todas asseguradas por José Aguiar. Recordo-o como um tipo incrível, com uma capacidade de comunicação enorme e com uma cultura arquitetónica bastante grande. Para miúdos no início do curso, foi uma iniciação em pleno. Não só nos falava dos arquitectos modernos e da sua obra, como nos relatava as viagens que tinha feito para os conhecer. Foi por essa via que entrámos no universo de Loos, Le Corbusier… foi a primeira vez que vi o Karl Marx-Hof. A imagem ficou-me gravada. Fortíssima. [GF] - Logo nos primeiros anos? [JC] - Sim. No 2º ano. Para mim, foi muito marcante. Tanto quanto me recordo, fazia a ponte entre a teoria e a história da Arquitectura com grande eficácia e naturalidade. E, portanto, nós percorremos logo nos primeiros anos do curso, uma parte muito significativa da história e da teoria da Arquitectura contemporâneas. Foi muito enriquecedor. Permitiu-nos conhecer autores e obras-chave. Foi um modo muito intenso de entrar no universo da Arquitectura. [GF] – Isso no início do curso… [JC] - Exactamente. Normalmente, os estudantes demoram muito até conhecerem esse período. Num curso em formação – nós íamos na frente, éramos os primeiros – acabou por não correr mal./ Estou a lembrar-me, também, das aulas do Domingos Tavares. Eram interessantíssimas. O Domingos tem uma capacidade de comunicação invulgar e um enorme talento para prender a atenção dos estudantes. [GF] - Isso foi no 3º ano. [JC] - Nós sentíamos que a História da Arquitectura Moderna estava um pouco distante do nosso tempo, mas, apesar disso, estávamos interessados. [GF] - Não era moderna… é do período da história considerado período moderno. [JC] – Sim, isso mesmo. Pensávamos que não era tão útil para o estudante de arquitectura ou para o arquiteto como seria a arquitectura contemporânea. Um erro. [GF] - Este José Aguiar, por exemplo, qual era a referência mais recente de que falava? Falava de Herzog e coisas assim? [JC] - Não, não. O Herzog não era uma referência óbvia, nessa época. Pelo menos, não o víamos assim. Na verdade, não o conhecíamos. O Herzog “entrou” na Escola quando eu estava no 4º ano ou no 5º ano, talvez./ A certa altura, sentiu-se muito a sua influência nos trabalhos. Os projectos eram muito Herzog./ Creio que começou com aquele livro da GG, pequenino, que tem as primeiras obras de Herzog & de Meuron. A primeira Monografia da El Croquis surgiu mais tarde, Quando estava no 3º ano, fizemos uma viagem de estudo a Barcelona. E a El Croquis, era nessa altura uma revista relativamente jovem. Havia coisas, fenómenos, que nós agora damos por adquiridos que, na altura, estavam muito no início. As revistas mais conhecidas eram a Casabella, a Domus, a L’Architecture d’Aujourd’hui./ Pelo menos em Coimbra, a El Croquis não era uma revista tão conhecida quanto isso. Lembro-me nessa viagem que um dos nosso colegas comprou um número sobre Tadao Ando. Foi uma revelação. [GF] - Eu estou a reconhecer no que estás a dizer-me... E depois em Barcelona comprava-se as “El Croquis” mais facilmente. [JC] - Lembro-me perfeitamente./ O Tadao Ando… aquela arquitectura muito limpa. Aquelas superfícies muito exatas. A própria definição matérica do betão, muito espesso. O controlo da luz, aquelas relações entre interior e exterior nas casas com pátios. Tudo isso se tornou numa referência muito presente para alguns de nós. E graças à El Croquis. [GF] - Portanto, final dos anos 80 e início dos anos 90. [JC] - Sim… [GF] - O contemporâneo que tu estavas a dizer que vos era mostrado... Falavam do Tadao Ando? [JC] - Não exactamente. Nas aulas de que falávamos atrás, o tema era sobretudo a arquitectura moderna e os seus antecedentes. Lembro-me de se falar de Norte Júnior, Ventura Terra, isso em Portugal. [GF] - E do orgânico. [JC] - …estes termos são um bocado equívocos, porque nós estamos na arquitectura do movimento moderno, se quiseres. Que é para não se confundir com a arquitectura moderna dos séculos XV a XVII… [GF] - O que tu estavas a dizer é que se entrava no 2º ano e apanhava logo a história do movimento moderno... [JC] - Exactamente. [GF] - Estamos a falar do movimento moderno que entrava pela mão, i.e. pelo discurso, de José Aguiar. [JC] – Sim. Como estávamos a ver, a Arquitectura da idade Moderna veio mais tarde, com Domingos e a Arquitectura do século XV e seguintes - Renascimento, Maneirismo, Barroco, etc. [GF] - E o que tu querias dizer, há bocado, era que se começava pela arquitectura do século XX. [JC] - Exatamente./ José Aguiar foi um professor que me marcou muito, porque, de facto, nos abriu os horizontes, com um discurso realmente muito arquitectónico, para a dimensão da Arquitectura./ Passavas daquilo que era o nosso quotidiano para referências eruditas internacionais. E isto falando de Arquitectura, percebendo os postulados, percebendo a convergência entre a linguagem, as ideias, a forma, o espaço, etc. [GF] - Eu acho que o maior impacto no ensino do conhecimento da cultura arquitectónica, e que tem mais impacto no Projecto, é o século XX. E, portanto, eu realmente não percebo assim esse atraso... Eu foco o meu ensino no século XX. [JC] - Não será porque os estudantes estarão menos aptos para fazer convergir o conhecimento histórico com o exercício de projecto, quando se trata de períodos mais distantes? [GF] - Eu faço isto no 2º ano. Mas não deveria esperar pelo 2º ano. Se tivesse dado logo no 1º ano... [JC] – Perguntava-te, até pela minha própria experiência enquanto estudante… os estudantes não estarão menos disponíveis para saber fazer a ligação entre as arquitecturas mais distantes no tempo e a sua própria prática? Parece haver uma espécie de véu. A ornamentação parece que oculta o espaço e a forma, uma espécie de véu sobre o essencial. [GF] - Há uma espécie de véu. A aplicação do barroco no projecto hoje em dia é uma aplicação um bocado indireta, digamos assim. Ou seja, o seu entendimento não é imediato. [JC] – Não é. As dinâmicas especiais e as articulações espaciais são muito interessantes. Mas há o tal véu, a ornamentação, não é verdade? Para o total entendimento da arquitectura, é preciso filtrar mais... enquanto que a arquitectura do final do século XIX e entrada no século XX, pelo seu lado mais depurado, poderá ser mais facilmente compreensível por um estudante de arquitectura./ Mas também terá que ver com a forma como se dá a ver, não será? Porque se se souber fazer as pontes com o discurso contemporâneo, se calhar os estudantes entendem. Mas não quero ser injusto. Muito provavelmente, as falhas de entendimento ficaram a dever-se a mim próprio. [GF] - Mas é mais difícil, de facto. [JC] - Não sei, de facto, se é preciso ordenar o ensino da história do modo mais expectável. Pessoas mais bem colocadas do que eu para essa reflexão, ligadas ao ensino da História, já pensaram sobre o assunto… se é preciso ter esta sequência lógica, cronológica, nas diversas histórias. Não deixa de ser verdade que a História da Arquitectura Contemporânea se relaciona muito com a Teoria da Arquitectura, com os seus temas. [GF] - No 2º ano, seria isto. E no 3º era o Domingos Tavares, na História. E no 4º ano? [JC] – No 4º ano tivemos Paulo Varela Gomes em História da Arquitectura Contemporânea. Foi memorável./ Nesse ano, a Teoria da Arquitectura foi organizada em seminários. Os professores iam ”rodando” – Bandeirinha, João Paulo Providência, Jorge Figueira, etc. Na prática, eram vários os responsáveis pelas aulas, tratando assuntos diversos, [GF] - O Jorge Figueira dava a versão também pop dos anos 80? [JC] - Já não me lembro muito dos conteúdos. Não foi uma coisa que me tivesse marcado especialmente. Lembro-me de poucas coisas. Lembro-me de uma aula do João Paulo Providência em que falou na cabana primitiva. Lembro-me que fiz um trabalho sobre o Mercado de Braga… fomos em grupo, um conjunto de colegas, entrevistar Souto de Moura: nessa época tinha o escritório na Foz./ Recordo-me bem dos professores. Lembro-me de um colega nosso ter ficado intrigado por um dos professores ter manifestado apreço pela obra de Alcino Soutinho… ou de Souto de Moura, não sei bem… e de Graça Dias. No meio da resposta, tentando desfazer o espanto do nosso colega, o professor disse-lhe: “você, quando for mais velho vai perceber…”. Tinha razão! Isto também dá o tom do ambiente daqueles anos. Havia alguns antagonismos. Hoje, as coisas estão mais plurais. [GF] - E no 5º ano, tinha alguma relação com o Urbanismo? [JC] – Se perguntas o que se passava em Projecto, sim. O nosso trabalho tinha essa dimensão, e o exercício que realizámos tinha como propósito tratar as margens urbanas do Mondego, em Coimbra./ No 5º ano, lembro-me perfeitamente de Byrne, que era uma pessoa com uma capacidade tremenda de nunca dizer mal de qualquer trabalho, mesmo quando tinha de demonstrar ao estudante que não tinha escolhido a via mais adequada./ Byrne é de uma elegância absoluta. É um príncipe da Arquitectura (Risos). [GF] - Era professor de Projecto, não é? [JC] - Era de Projecto, sim./ A forma como tu o conheces como pessoa, a forma como actuava enquanto professor, era, de facto, de uma sensibilidade tremenda e de uma pessoa cultíssima. Aliava essa cultura a uma grande sensibilidade para, de um modo bastante pedagógico, demonstrar ao estudante, sempre de forma positiva, que o trabalho não estava a seguir na melhor direção. [GF] - Portanto, ele cativava imensos os estudantes. [JC] - Sim. Totalmente./ As aulas dele eram extremamente aguardadas e era uma pessoa muito presente. Embora estivesse em Lisboa, ia sempre às aulas. É desse modo que o recordo. [GF] - Gonçalo Byrne tem textos dos anos 70 já altamente sofisticados, do ponto de vista teórico./ Portanto, fazendo essa ponte, o que te pergunto é se havia alguma disciplina concretamente de Teoria? [JC] - Tínhamos Teoria de Arquitectura, mas não me lembro com toda a exactidão. Tinha que ver com temas da cidade e do urbanismo. Ouvi aí falar pela primeira vez nas ideias de Nuno Portas. Era uma cadeira leccionada pelo João Paulo Cardielos.. [GF] - Tinham uma linha de disciplinas de História separada da de Teoria. [JC] – Sim, isso mesmo. Paulo Varela Gomes deu-nos História de Arquitectura Contemporânea./ José Aguiar foi professor de Teoria, mas andou por esses caminhos. Foi uma convergência de discursos, mas foi uma coisa circunstancial, sem grande seguimento. José Aguiar teve uma passagem não muito duradoura pelo curso. E logo no início. Reis Cabrita permaneceu por lá mais tempo, mas passou para Teoria do 3º ano, com temas que reflectiam muito mais as investigações do LNEC./ Paulo Varela Gomes, era uma pessoa maravilhosa, com uma capacidade de integrar no discurso temas distintos, referências distintas. Era uma pessoa com uma capacidade de comunicação fora do vulgar, que punha completamente ao serviço da pedagogia. E, de facto, as aulas eram espantosas. [GF] - Recordas-te de como é que se chamava a disciplina? Era História de Arquitectura Contemporânea? [JC] - Era História de Arquitectura Contemporânea. [GF] - Havia, portanto, duas colunas. Uma de Teoria e uma de História. [JC] - Exactamente. [GF] - Tal como no Porto. [JC] – Podes dizê-lo desse modo. II./ [GF] - Voltando a… personalidades interessantes como o Paulo Providência. [JC] - Na altura fumava-se nas salas. E ele falava muito pausadamente, muito devagar, a medir cada palavra, cada raciocínio.… quando hesitava, acendia um cigarro. Sempre com sentido de humor, por vezes uma ponta de ironia, uma ironia fina... mas a nossa experiência foi muito boa. Ajudava-nos imenso, era muito dialogante, e fez-nos descobrir o projecto de arquitectura. A turma era muito pequena e conversávamos muito. Nós nunca sabíamos o que ia acontecer, porque falava devagar e ia desenhando as coisas que pensava. Estava sempre com um caderno, andava sempre com aquele caderno, e desenhava no caderno preto A4. Quando não o tinha consigo, desenhava nos cadernos dos estudantes. Eu fiquei com um caderno com muitos desenhos do Paulo Providência./ E, portanto, isto era incrível, ele era pausado, não respondia assim de uma forma muito espontânea, muito imediata. Era pensativo, e depois era capaz de se alongar nas respostas, sem pressas, durante algum tempo. [GF] - Ia desenvolvendo as reflexões lentamente. [JC] - E era completamente desconcertante com estas coisas./ Agora há muito pouco tempo, nas aulas... Como te disse, nós éramos muito poucos por turma, no 3º ano, porque havia dois assistentes… uns 15 ou 20, por turma. Havia tempo para falar dos projectos e conversar. E ele conversava imenso sobre Arquitectura e não só. Fazia remissões para outros assuntos, a partir da Arquitectura. [GF] - Não era só debruçado sobre o projecto específico. [JC] - De todo, foi um ano muito rico. Era engraçado, porque as nossas referências na altura eram muito em torno de Souto de Moura. O José Fernando trabalhava com Souto de Moura./ Estávamos no primeiro ano em que se dá o desenvolvimento do projecto em Construção, com a definição dos aspetos construtivos da proposta. Nós tínhamos folhas do projecto de execução de diversas casas de Souto de Moura e também do Convento que o João Paulo e o José Fernando estavam, na altura, a começar a construir em Lisboa. Conhecíamos os detalhes de trás para a frente e fomos muito influenciados por isso. Era uma espécie de manual. A informação disponível não era tanta como hoje, mas creio que nos fez bem olhar em profundidade para a que tínhamos, com foco, tentando compreendê-la. [GF] – Referias-te ao Convento dos Dominicanos. [JC] – Sim, isso mesmo. [GF] - Havia tempo para conversas… Alexandre Alves Costa também foi marcante? [JC] - Sim, Alves Costa não podia ter sido mais marcante. É uma pessoa com um entendimento da História que é, não a História como campo de conhecimento, mas a História como matéria operativa para arquitetos./ E, portanto, aquilo de que falávamos há pouco, de o estudante conseguir ter capacidade de ler nas arquitecturas do passado matéria que o possa informar na accção projectual… era por aí que andava a pedagogia de Alves Costa. Tornava inteligível o que era complexo. Sem deixar de lado o rigor histórico, falava-nos de Arquitectura, de temas de Arquitectura. De projecto, em suma. [GF] - Ou seja, tratava-se de olhar a história pelo entendimento claro dos edifícios. Situá-los no tempo, percebendo porque é que surgiram de determinada forma, com a sua espacialidade. [JC] – E com isso conseguia... se havia aulas a que ninguém faltava, eram as aulas de História da Arquitectura Portuguesa de Alexandre Alves Costa./ De facto, houve professores muito marcantes quer mais ligados à área do Projecto quer mais ligados à área da Teoria e da História. [GF] - Há outros professores de História de que te lembres? Falámos de Paulo Varela Gomes e falámos de Domingos Tavares. E Mário Krüger? [JC] - Mário Krüger leccionava Arquitectura Teórica, I e II. [GF] - Era semestral? [JC] - Eram duas semestrais, I e II. [GF] - No 5º ano. [JC] - Eram aquelas temáticas das gramáticas formais, ligadas a Christopher Alexander e de todo esse grupo de Oxford, de Cambridge, etc. [GF] - Como é que eram recebidas essas aulas? [JC] - Inicialmente, de uma forma um bocadinho desconfiada. Mas depois, Mário Krüger, que é um homem inteligente, conseguiu contornar o problema e abordar os assuntos de um modo cativante, desenvolvendo-os de modo a torná-los interessantes. Essa temática das gramáticas formais foi muito explorada a partir da obra do Frank Lloyd Wright e isso resultou. [GF] - …como matéria, ponto de partida, para estudarem obras de arquitetos contemporâneos. [JC] – Exactamente. Eu lembro-me que fiz um trabalho sobre Souto Moura, a partir da abordagem teórica que Krüger propunha, ligada às gramáticas formais. Era uma escolha óbvia, tendo em conta a sua fase neoplasticista./ No fundo, Krüger conseguiu fazer bem a ponte para o que seria a nossa expectativa, digamos. Terá tentado chegar até nós com uma prática mais corrente, dentro da própria estrutura do curso e da tradição do Porto, se quiseres. E não tanto daquela tradição anglo-saxónica, muito analítica. [GF] - Acabaste a Prova Final do curso em 1994/95. [JC] - Sim. Orientada por Byrne./ Finalizei a parte curricular em 1992/93, e depois fiz a prova final em 1993/94. [GF] - E eu tinha esta ideia de que tinhas vindo pelo Alves Costa para a Faculdade. Sim, porque, entretanto, fiz o Mestrado na FAUP./ Em 1996, candidatei-me ao Mestrado aqui no Porto, de Projecto em Planeamento do Ambiente Urbano. O Mestrado tinha como campo o Urbanismo. E o Urbanismo é por definição o terreno da incerteza… não consegues antecipar as “oportunidades não programadas”, como Nuno Portas dizia. [GF] - Sim, as “oportunidades não programadas”. [JC] – E, portanto, o plano tem que estar permanentemente a lidar com a incerteza, a dúvida, e é um campo muito escorregadio. Por comparação, no projecto tu operas melhor sem a incerteza. Consegues desenvolver o projecto quando tens dados seguros, quando tens o programa. É certo que as obras mudam, alteram-se, mas mudam pela alteração de uso, de programa./ Se lidas com a indefinição, é-te mais difícil decidir. [GF] - O José Miguel tinha entrado num ano anterior ao teu. E o Luís Viegas? [JC] – Sim, é verdade. O Viegas, também. O Luís Pedro Silva e o Mário Mesquita também tinham entrado antes de mim./ Dessa geração, fui colega da Carla Leitão, da Ana Luísa Jardim, do Pedro Balonas, do Jorge Veloso, do José Ferreira, primo do Jorge Figueira... era engenheiro, trabalhava na área Metropolitana do Porto. E da Ana Luísa Velosa, também engenheira…/ [GF] - Porque o Mestrado era organizado pela FAUP e pela FEUP./ A tua prova final é sobre a arquitectura religiosa? [JC] - Sobre Tomar./ Estava a contar-te: eu, inquieto com a incerteza do Urbanismo, fui procurar uma maior certeza... julgava eu, que depois as coisas não vieram a revelar-se exatamente desse modo. Mas fui procurar um território que pudesse pisar de forma mais confiante. Um território mais firme./ Tinha tido uma cadeira com Alexandre Alves Costa, que era de Renovação Urbana... [GF] - Nesse Mestrado. [JC] - Nesse Mestrado. Um tema fundamental no Urbanismo./ E Alves Costa organizou a cadeira em vários temas, em seminários. Deu a primeira e a última aulas, e convidou Alexandra Gesta para relatar a experiência de Guimarães, Rui Losa, sobre a Ribeira, e Siza, para falar do Chiado. [GF] - Portanto, convidou uma série de pessoas para falar sobre ações de renovação. [JC] - No fundo, para falar de reabilitação de áreas históricas. O âmbito era a cidade. E eu aproveitei o embalo. Resolvi fazer o Mestrado mais para essa área. Como uma decisão natural, Alves Costa foi o meu orientador da dissertação de Mestrado./ Quanto à tua pergunta inicial, entrei para a escola como assistente convidado. Vinha fazer a substituição de um professor do 1º ano de Projecto que tinha saído. O Sergio [Fernandez], com quem eu tinha convivido muito lá no escritório [Atelier 15] terá simpatizado comigo e generosamente considerado que eu podia desempenhar esse papel. Aliás, já o tinha conhecido numa viagem de estudo a Barcelona. [GF] - Quem é que tinha saído? [JC] - Creio que tinha sido o Elisário Miranda./ Como contava, cruzei-me bastante com o Sergio no contexto da orientação da dissertação de Mestrado. Alves Costa era um orientador presente e atento e eu ia regularmente ao Atelier 15. O Sergio conheceu-me melhor nessa ocasião. Na verdade, quem me convidou foi o Sergio Fernandez. Não se pode dizer que tenha sido totalmente pela mão de Alves Costa. Foi pela mão do Sergio, graças, naturalmente, às muitas horas de orientação que passei ali no escritório da Rua 15 de Novembro. Íamos conversando. Mas na verdade eu estava ali pela mão de Alexandre Alves Costa. Será justo reconhecer que Alves Costa teve um papel importante. E teve, com toda a certeza, uma influência decisiva. [GF] - Portanto, acabaste em 1993/1994, lá. Ingressaste no Mestrado em 1996. E vieste para aqui em 1999. [JC] – Enquanto assistente, vim para aqui em 1999. [GF] - Vieste em 1998/99? [JC] – Em 1997/98 fiz a dissertação… na verdade, devia ter feito, já que prolonguei para o ano letivo seguinte./ Quando entrei aqui em Outubro de 1999, passado pouco tempo, em Novembro, terminei o Mestrado. Comecei a dar aulas em Outubro de 1999. [GF] - Nessa altura, o diretor da Escola era Domingos Tavares. [JC] - Era Domingos Tavares. [GF] - O que recordas da direção de Domingos Tavares? Foram 8 anos. E depois tivemos outras duas direções. Recordas alguma coisa da organização, do curso, das questões que houve nessa altura? [JC] - São coisas que se passaram há muito tempo. Mas lembro-me que havia cinco cadeiras no 1º ano, sem História: a História da Arquitectura Antiga e Medieval acontecia no 2º ano. E havia Antropologia do Espaço, que depois saiu./ A terminologia era diferente. No 2º ano, a Teoria era MLAC, que era Métodos e Linguagens da Arquitectura Contemporânea. Havia Espaço Habitável e Formas de Residência. Mas, no fundo, eram designações mais extensas… creio que os conteúdos estavam muito próximos do que veio ser leccionado em Teoria I e II. Os professores mantiveram-se os mesmos após a mudança, durante algum tempo… Manuel Mendes e José Salgado./ Depois houve umas trocas. Cadeiras que desceram do 3º para o 2º ano e do 2º para o 1º. Na CERT [Comissão de Concursos Especiais e Regimes de. Transferências], tive oportunidade de recordar as diversas estruturas do curso. Sabemos que houve várias mudanças, mas já não me lembro com detalhe. [GF] - Ou seja, a tua ideia é a de que essas disciplinas se mantiveram ainda durante 10 anos. Nos primeiros 10 anos, tinham um título mais comprido, normalmente, como uma ideia programática… e depois passaram a ter apenas aposto um número. Designações mais genéricas. [JC] - Nos casos em questão, tenho essa ideia, sim. [GF] - Mas a ideia é que continuaram a ser dadas igualmente. [JC] - Sim. O José Salgado continuou. O Manuel Mendes continuou. A Teresa Fonseca continuou no 4º ano./ Antes da Teresa Fonseca, quem mais estaria?... não era Manuel Correia Fernandes? [GF] - Talvez. [JC] - Acho que sim. Manuel de Correia Fernandes estava nessa cadeira... Pedro Ramalho estava em Projecto 4. [GF] - Domingos Tavares leccionou as Formas de residência do 3º ano. Como o próprio Francisco Barata. I.e. Domingos Tavares e Francisco Barata também passaram pelas cadeiras de Teoria./ Mas houve muita instabilidade. Houve alguma mudança… se calhar até Manuel Correia Fernandes. Agora estou curioso com isso. Porque tenho a ideia de que Correia Fernandes esteve nessa cadeira. [JC] - Eu acho que Correia Fernandes esteve nessa cadeira. Creio que era Espaço Público e Formas dos Equipamentos. [GF] - Esta primeira fase de Domingos Tavares e a outra fase de Francisco Barata... são duas décadas diferentes. A de transição depois inclui a direcção de Carlos Guimarães. Como é que tu comparas? Francisco Barata apanhou a transição para a Bolonha. [JC] - Tanto quanto me lembro, foi no mandato de Francisco Barata que se deu essa transição, onde houve algum ajuste./ A minha percepção é a de que houve empenho em promover essa transição do melhor modo. Houve reuniões em que o conjunto dos professores foi chamado a participar, tendo sido apresentadas as ideias para readaptação do plano de estudos. Foi um processo difícil, de compressão, já que o curso teria de se limitar a 5 anos – e já não a 6 anos, como até aí./ Mas pode dizer-se que a estrutura do curso não mudou substantivamente. Há a percepção geral de que um dos problemas que ainda hoje se nota é de se ter comprimido para 5 anos o que se fazia em 6./ A Dissertação de Mestrado é herdeira desse problema. Creio que apesar de todos os esforços e da boa vontade de toda a gente, tem havido alguma dificuldade no ajuste do modelo da dissertação ao tempo de fomação. De resto, houve uma diminuição de unidades curriculares - como agora se diz - no 5º ano. [GF] - Ainda há muito trabalho, muito peso, disciplinas a mais? [JC] - Havia 6 anos. Agora, há 5. Ou seja, o curso foi ajustado como foi possível fazê-lo, com a participação e o debate realizados. Não direi categoricamente que o modelo da prova de mestrado está desajustado relativamente à duração do curso, mas sente-se algumas dificuldades, por vezes. [GF] - E esta redução só para um semestre do último ano também não chega. [JC] – Há quem diga que o cobertor parece ser curto. [GF] - Mas no início, quando houve essa mudança repentina, continuava tudo a pedir a mesma quantidade de trabalho. Digo tudo à volta do Projecto e… [JC] - Já no tempo da prova final havia muitos estudantes, aqueles que eram mais louvados, os que eram mais destacados, que tinham óptimos resultados, que não terminavam o curso no tempo esperado. E isso já se passava em Coimbra. Aconpanhei-o de perto. Desde esse ponto de vista, Coimbra até foi pioneira, como te disse. [GF] - No Porto havia o estágio. [JC] - Nós fomos o primeiro curso a ter a prova final. E foi uma péssima notícia que Alves Costa se viu na obrigação de dar-nos, numa reunião de final de ano lectivo. Foi em Maio, lembro-me perfeitamente. Nós estávamos a dois meses de terminar o curso. E foi-nos dito que já não iríamos terminar nesse ano, porque havia uma exigência da União Europeia a que era forçoso dar cumprimento. Foi um choque. [GF] - Ou seja, havia uma diretiva europeia que obrigava que a composição dos cursos fosse de forma distinta. [JC] - Era o tal modelo do trabalho final, na conclusão do curso. [GF] - E depois, em seguida, essa prova final veio também para o Porto. [JC] - E ninguém sabia muito bem o que era uma prova final, pelo menos em Coimbra…/ E no nosso caso não a concluímos no período em que era suposto. Foi um bocadinho mais dilatado… ninguém a entregou em Julho. [GF] - Era Teoria ou Projecto. [JC] - Eu desenvolvi um projecto. Mas a aprova era mista, tinha uma componente escrita./ Entregámos a prova final em Novembro. Concluímos numa época especial. Tivemos que fazer um requerimento ao Conselho Científico da Faculdade para a extensão do prazo - uns meses, apenas. A seguir, vieram provas finais de 2 e 3 anos. O modelo que veio para o Porto teve pioneiros em Coimbra, com experiência a estender a prova. (Risos) / E isso, ficou, em muitos casos, como todos sabemos. Estamos a falar de meter num semestre aquilo que em muitos casos já não se fazia num ano (em Coimbra o curso era de 5 anos e meio). [GF] - O que é que pensas sobre isso? [JC] - Tem havido um esforço para resolver o problema. [GF] - As relações entre um curso e outro, até do ponto de vista… são parecidas. [JC] – Não tenho acompanhado as Dissertações de Mestrado em Coimbra. Creio que são iniciadas no 4º ano, tendo como base o exercício de Projecto. [GF] - E agora, na altura da direcção de Carlos Guimarães, corresponde a isto que estás a dizer da redução. [JC] - Haverá diferenças de estilo entre directores. Tenho apreço por quem esteve na direcção da Faculdade, nos diversos momentos. Ou seja, estou certo de que têm sido sistematicamente feitos esforços para a adaptação do plano de estudos aos desafios que as mudanças de contexto têm colocado. É reconhecido por todos que o processo não tem sido sempre fácil. Mas a realidade é dinâmica. As necessidades mudam. [GF] - E agora, como é que tu percecionas a organização da Faculdade? Esta transição agora para gerações mais novas… e uma nova direção? [JC] – Toda a organização do “edifício” universitário está distinta. O paradigma mudou, até na própria Faculdade. A componente da investigação está mais forte. O próprio CEAU ganhou outra presença. Há um novo debate acerca do ensino, do financiamento, etc. Haverá dificuldades neste processo? Acontece sempre que alguma coisa muda num processo; sobretudo quando se trata de um meio tão complexo, plural, com tantos agentes. São certamente dores de crescimento, num momento que ainda é de adaptação, como reacção ao que já se sabe sobre a mudança de contexto. Por isso, digo-te que a minha resposta reflecte a minha ideia de que o que me parece necessário é convergência. Falo da Faculdade como um todo. A Faculdade está numa fase de transição por vários factores, entre os quais está a saída de muitos dos docentes que foram nossos professores, que promoveram a notoriedade da Escola. Sempre preservando a pluralidade, o desafio que se coloca é o de poder encontrar respostas, com o propósito de potenciar o legado e permitir a adaptação a novos desígnios, à realidade actual e futura./ Noutro plano da vida e da organização da Faculdade, havia a ideia de que, antes, os estudantes tinham mais tempo disponível, não é verdade? Aliás, tu passaste por Projecto... parece que o tempo agora está mais curto, que não chega. [GF] - Há alteração no perfil dos estudantes também, ou não? [JC] – Há uma percepção de que haverá alguma mudança, mas não é nada que resulte de dados inquestionáveis. Provavelmente, isso merece um estudo mais atento. [GF] - Parece que Projecto ocupava mais o quotidiano dos estudantes. [JC] – Há a ideia de que temos carga horária a mais. É um debate muito presente na Faculdade. Sem dizer se os trabalhos eram melhores ou piores, se eram mais bonitos ou mais feios – isso é outra conversa - o que me parece é que os ditos trabalhos estavam mais presentes no quotidiano dos estudantes. [GF] - Mas dizes isso em relação há 20 anos ou em relação há10 anos? Desde que eu saí de Projecto contigo, acho que em 2003?.../ Desde então, consegues fazer um paralelo? Na altura ainda estavam muito presentes. [JC] -Vamos colocar o assunto deste modo: falando do 1º ano, os estudantes passam 29 horas por semana na Faculdade. Com excepção da quarta-feira -sem aulas à tarde – e da sexta-feira – com o final das aulas às 16h30 -, nos restantes dias, os estudantes entram na FAUP às 9h00 e saem às 18h30. Isso faz parte do debate entre docentes e, pelo que sabemos, entre estudantes. [GF] - Nessa altura ainda estavam muito presentes. [JC] – Em 2003, os trabalhos? Creio que sim./ Eu não sei se notas alguma coisa diferente na Teoria. O perfil dos estudantes era a outra coisa que tu estavas a questionar. [GF] - Quanto a isso, não tenho esse contacto no quotidiano a que te referes. [JC] - O que penso é que estamos numa época em que se procura muito os caminhos da eficácia. Isto de modo geral, e não me focando exclusivamente nos nossos estudantes e na FAUP./ Creio que, como resultado disso, nos afastamos daquela deriva que acontece sempre na activação da imaginação e nos processos de descoberta, e que com toda a certeza acontece na prática de projecto: uma pessoa perde-se em caminhos que depois até podem não dar grande fruto, mas são sempre campos de experimentação que é preciso trilhar. Isso é fundamental na aprendizagem. [GF] - Para conseguir descobrir o melhor. [JC] – Haverá outra forma de lá chegar?/ Não quero fazer um discurso catastrofista. Seria errado e injusto. É necessário ter consciência de alguns riscos, quando existam, e fazer o necessário para continuar a induzir o questionamento e o aprofundamento. Ou seja, alguma tendência - quando exista, se existir - de ir de um ponto de partida a um ponto de chegada com eficácia, sem experimentação, tem de ser sempre evitada. [GF] - Descreves bem, é mesmo isso. [JC] - A aprendizagem faz-se através de um processo assente no questionamento, vive de perguntas constantes. Não de certezas e resultados imediatos. É preciso fazer um esforço para a abertura ao erro e à consequente disponibilidade para a frustração que resulta de não se encontrar respostas para as perguntas após cada tentativa – e isto não é válido apenas para o processo de projecto. Claro que isso implica iniciativa e disponibilidade para arriscar. Sem receios, o foco deve ser o processo de descoberta e não no resultado imediato. [GF] - Antes era um acesso ao conhecimento, que era outra coisa, que não era... [JC] - É preciso tactear lentamente a procura de resposta, para poder vir a encontrá-la. E, falando de modo amplo e para além do contexto de ensino e aprendizagem, o tempo está muito acelerado. Parece-me muito isso. É um lugar-comum inevitável. [GF] - E é assim que tu caracterizaste a mudança de perfil com estes termos que estás a usar, não é? [JC] - Creio que há uma mudança de contexto, no mundo em que vivemos. Agora, também te digo uma coisa: é também verdade que os estudantes têm mais referências, conhecem muito mais coisas, têm mais mundo do que sinto que nós tínhamos. Há mais comunicação, viaja-se mais. Isso é óptimo. Mas também pode ter um efeito negativo: a ideia de que se conhece muitas coisas, com mais facilidade, de que se tem acesso facilitado à informação, pode levar a que se desconsidere… pelo menos, que não se valorize o suficiente, as oportunidades. Por exemplo, as conferências… era inimaginável para nós não ir. (Risos). Havia uma conferência e íamos todos, porque de facto era o modo como a informação nos chegava. [GF] - A biblioteca era quase um templo sagrado. [JC] - Sabes que isso já não acontece tanto… não estou a dizer-te isto como uma nota totalmente negativa, porque de facto a informação está muito mais disponível. Circula muito mais, e isso é muito positivo. É mais fácil viajar dentro e fora do país. O que eu quero dizer com isto é que há uma maior capacidade de ter acesso às coisas. Também é mais fácil comprar livros./ Se calhar, não é sentida tanta necessidade... A vertigem ou urgência já não existem do mesmo modo. [GF] - Porque têm disponível muito mais informação. Nós pedíamos livros emprestados a colegas. [JC] - Aquilo que todos dizemos é que a relação com o livro mudou. Mas vejamos: comparativamente com aquilo que nós fazíamos... dizemos frequentemente entre alguns de nós, docentes, que os trabalhos de projecto dos estudantes actuais são melhores, têm até mais ar de arquitectura, entendes? Provavelmente, há uma mudança de processos que tem a ver com os tempos, que são necessariamente diferentes. Estaremos em adaptação? Vamos ver… De qualquer modo, a biblioteca tem de continuar a ter um papel importante na formação dos estudantes. É fundamental. [GF] - A nossa relação com a informação também é diferente hoje em dia. [JC] - É natural. Tens razão./ Nós transformámo-nos ao longo deste tempo. Os estudantes já cresceram com esta mudança, já conheceram a vida deste modo. Já se formaram enquanto pessoas, assim. Se calhar, também sentem menos a necessidade de andar a tactear porque, além de outros factores que mudaram o modo como nos relacionamos com o mundo e a incerteza, também sentem que têm mais acesso à informação./ Sem deixar de ressalvar que é preciso estar vigilante relativamente a essas facilidades, eu arrisco a ideia, como te disse, de que os trabalhos de projecto são melhores. E há, de facto, estudantes extraordinários. Há estudantes muito bons, que aliam a capacidade de realização a um maior conhecimento... [GF] - Quando tu vieste para a Faculdade, percepcionaste este ambiente como uma coisa de excelência? A nível dos professores e alunos? [JC] - Quando vim, falei com o Luís Urbano que já tinha entrado antes, um ano antes de mim. E ele dizia exatamente isso, que o Porto era a referência do ensino. [GF] - Ficaste orgulhoso de estar aqui. [JC] - Os nossos professores vinham do Porto. Portanto.... Era uma espécie de Olimpo. [GF] - Era uma espécie de Olimpo. (Risos). [JC] - Ou saíam do Olimpo e iam a Coimbra dar aulas. (Risos) Depois nós começamos a contatar com a realidade e vimos que o Olimpo… se calhar, é mais terreno do que nós o imaginávamos. Havia era uma coisa fantástica, no Porto. Já havia uma sedimentação do ensino de muitos anos. [GF] - Por outro lado, estavam inseridos num meio onde havia mais cultura arquitetónica. [JC] - Coisa que em Coimbra não havia de todo. Mas depois nós começámos a entrar na prática pedagógica, na prática quotidiana da Escola./ E vemos que as coisas.... Tirando essas diferenças de haver um lastro de ensino de décadas, de reformas de ensino com frutos, etc., as coisas não eram assim tão distintas quanto isso nas questões da didáctica e quanto aos objectivos. Na verdade, o Porto tinha melhores instalações e as pessoas conheciam-se há muitos anos e, portanto, quase se entendiam sem ter que falar. São coisas fundamentais no ensino. [GF] - Hoje já não é assim porque a Escola é muito mais plural. [JC] - Quando tentas encontrar aqui modos de pensamento comuns, talvez consigas encontrar um método, se quiseres. Mas há figuras muito diferentes, mesmo no corpo docente… já para não falar daquelas que a Escola tem vindo a formar. A sociedade está muito diversa, plural, o país está mais aberto ao exterior. É inevitável que as pessoas formem o seu leque de interesses a partir da sua própria mundividência, de referências mais distantes, e não necessariamente como resultado imediato do contacto com os mais próximos no quotidiano e tendo apenas em conta a partilha de um projecto comum. [GF] - Enquanto profissionais. Notas essa transformação ao longo destes 20 anos?/ Seguramente./ [GF] - Uma Escola mais plural? [JC] - Uma Escola com pessoas cuja formação aconteceu num país já perfeitamente integrado na União Europeia, que fizeram Erasmus, que se iniciaram profissionalmente num tempo de viagens baratas, com mais facilidade de acesso a informação muito diversa... nota que não estou a fazer um juízo qualitativo…/ Passaste do papel de estudante para o papel docente: não notas?... O corpo docente já não é tão coeso, se pensarmos no que foi o papel dos nossos professores e daqueles que os antecederam para a construção da Escola. As pessoas estiveram juntas para lutar por determinadas causas. E com isso sedimentaram um projecto de escola. As pessoas que vieram numa geração a seguir, talvez ainda sejam um pouco fruto desse envolvimento, desse ambiente…/ Não há aqui qualquer valoração!... É normal. O “edifício” estava construído. Sentindo-se essa calma, as diferenças afirmaram-se. E uma outra coisa que não é exclusiva do Porto, é sentida noutros lados, com outros amigos com quem conversamos, os parâmetros, métricas e definições das carreiras universitárias vieram acelerar essas diferenças./ Sem que deva esquecer-se a diversidade saudável, creio que neste momento há necessidade de alguma convergência... [GF] - Mas os que vieram a seguir, da nossa idade ou pouco mais velhos, já não tiveram essa experiência. [JC] - Já não tiveram aqui uma espécie de luta comum que as unisse, como um corpo docente tão uno, tão coeso. Quando olhamos de fora – pode ser uma percepção errada – parece que eram todos amigos. Creio que não é uma percepção totalmente falsa. Já ouvi Alexandre Alves Costa dizer, num debate, que eram amigos. [GF] - Mas quando vês agora a Escola plural, a proveniência das pessoas, é muito diversa. [JC] - Isso tem o seu peso. O que são enquanto pessoas, enquanto profissionais de arquitectura, enquanto arquitectos que observam a Arquitectura e gostam de Arquitectura, é uma condicionante. Como dizíamos há pouco, viaja-se muito mais. As pessoas lidaram com outras realidades. Desenvolveram interesses próprios. Portanto, essa pluralidade existe com toda a certeza. [GF] - Já é impossível haver uma tendência tão forte nas referências, no ensino, na pedagogia. [JC] - Acredito que haja pontos de vista comuns. Mas tem muito mais a ver com o entendimento de um método, com o entendimento da prática arquitetónica como uma aproximação muito intuitiva ao projecto. Menos conceptual, se quiseres. Essas são marcas que creio que se mantêm. [GF] - É a procura da solução de uma forma, de um modo progressivo, através do desenho. [JC] - …tentando um entendimento das premissas, das possibilidades, do local, numa aproximação gradual à solução…. embora isto não tenha nada a ver com a crença num contextualismo dogmático. [GF] - As pessoas, independentemente de terem referências diferentes, têm esse método comum, que tem a ver com o seu próprio tempo, com os instrumentos de desenho. [JC] – Talvez seja isso./ Mas também falas com arquitetos de outros contextos, de outras paragens em Portugal, com aqueles que nos interessam... Manuel Mateus, por exemplo, diz coisas análogas: afirma que o contexto das cidades, na Europa, onde as cidades têm séculos, é com toda a certeza importante, no propósito transformador da Arquitectura. Cito-o de memória, tendo presente a entrevista que concedeu ao Expresso na sequência da atribuição do Prémio Pessoa. O que retiramos das suas palavras é que a Arquitectura deve propor novas camadas de significado, não a anulação de significados como resultado de desatenção ou de leituras apressadas das circunstâncias./ Podemos extrapolar para o restante território, é verdade, notando como esta formulação é, porventura, um terreno comum na Arquitectura Portuguesa. É uma hipótese… [GF] - Portanto, dizes que o contexto e a história são dados fundamentais para o projecto, porque o projecto tem que lidar com realidades consolidadas. [JC] – E, portanto, não deve ser desatento em relação a esse substrato onde vai intervir./ Fechando a questão dos estudantes, acho que eles de facto podem não ter umas coisas, mas têm outras, seguramente. Têm muito mais informação do que nós tínhamos. Os estudantes têm à sua disposição meios que nós não tínhamos. Há uma mudança de substância naquilo que se passava antes e que se passa agora. Eles já não dependem tanto de nós para ter acesso à Arquitectura. A liberdade comporta sempre alguns riscos, mas ninguém será capaz de negar o valor da liberdade. A aprendizagem implica livre-arbítrio. Isto é especialmente verdade numa disciplina criativa. [GF] - Nós, da escola. [JC] - Exactamente. Encontram outros caminhos. Correndo o risco de me repetir, através de viagens, dos Erasmus, etc. [GF] - E este tipo de reflexão, estes espaços de discussão, já não há muito frequentemente. [JC] - Tudo isto, também nos mudou a nós, na verdade. Anda tudo na correria das aulas. Não se pára o necessário./ Por outro lado, a tua referência mais sólida pode não ser aquela que está ao lado. Vou fazer uma analogia. Lembro-me do conceito de“território arquipélago” - Álvaro Domingues referia-o nas aulas de mestrado. O conceito diz-nos que as cidades não estabelecem as suas relações mais fortes, culturais, comerciais ou outras, com outras cidades, necessariamente como resultado de relações geográficas de proximidade, de contiguidade, etc. Pelo contrário, diz-nos que o podem fazer a partir de afinidades efectivas com outras cidades e tendo em conta as redes e infraestruturas que possam facilitar os contactos. É um processo independente da distância. [GF] - Connosco acontece a mesma coisa. [JC] – Como possibilidade, já não estabelecemos necessariamente relações mais fortes com quem está fisicamente mais próximo, a trabalhar ao nosso lado, mas com quem se estabelece maior empatia profissional ou outra, ou seja, pela existência de interesses convergentes (académicos, culturais…). E até pode ser a uma distância maior. É um processo análogo. III. [GF] - Sobre a tua prática contemporânea e atual… Há 10 anos, houve aqui um momento de crise. Como é que tu vês o que se está a fazer em Portugal, atualmente? Quando tu acabaste o curso, a arquitectura estava num ambiente de “star system”. [JC] - Sim, é verdade… [GF] – Depois disso, há cada vez mais arquitectos. [JC] - É verdade que sim./ Mas eu duvido que o panorama da arquitectura pós-crise das dívidas soberanas esteja diferente daquilo que era no período pré-crise./ Houve um momento em que se acreditava numa arquitectura mais “pobre” ou essencial, feita com menos meios. Até houve aquela representação portuguesa na Bienal de São Paulo de 2013, com o tema “Discrição é a Nova Visibilidade”. Foi uma iniciativa do Nuno Sampaio, que estava correctamente convicto, como, aliás, todos os envolvidos e também os que observavam de fora. Na mesma época, o Luís Miguel Correia, o Nelson Mota e a Susana Constantino, meus amigos e colegas de Coimbra, até ganharam o Prémio Nacional de Arquitectura em Madeira com a intervenção nuns campos desportivos em Coimbra [N10-II], utilizando muito poucos meios. A obra tem óbvios méritos, mas foi muito destacado o facto de ser realizada com uma enorme contenção./ Creio que os arquitectos já se esqueceram desse contexto. Não o digo como uma crítica. Felizmente, todos nos esquecemos. Os arquitectos não estão localizados à margem da sociedade. Os arquitectos trabalham com os meios que têm disponíveis. Claro que faz todo sentido ter um discurso que se foque no uso racional dos recursos, tendo em conta os constrangimentos ambientais. Aliás, um dos projectos que mais prazer me deu a fazer foi o do Campo Desportivo de Santa Cruz, em Coimbra, que fiz com o Luís Miguel Correia: justamente pela racionalidade das decisões e das soluções a que nos vimos forçados por questões orçamentais. Ou seja, não vejo que o facto de os arquitectos se verem forçados a uma certa contenção possa ser negativo; pelo contrário, tudo o que possa introduzir racionalidade no projecto e na obra é sempre um óptimo estímulo. Mas não nos esqueçamos que se tratou de uma época de enorme carência [resgate de Portugal pela Troika], muito difícil para o país. [GF] - Se houver ouro, faz-se em ouro. [JC] - Aceito a figura de estilo. Se a sociedade tem mais meios que pode disponibilizar, os arquitectos utilizam mais meios. Portanto, agora não falando especificamente de Portugal, eu não vejo que aquilo que se está a fazer internacionalmente seja totalmente distinto do que se fazia antes. [GF] - Houve aqui uns prémios para o Aravena, etc. [JC] - Sim, com certeza. Foi prémio Pritzker, mas isso já foi por volta de 2016./ Podemos ter uma consciência maior, de facto, de que temos que utilizar bem os recursos, que eles não são infinitos. Estou a falar dos recursos económicos, mas não só: a informação de que o planeta está ameaçado é bem conhecida. [GF] - Já se retorna a uma arquitectura de revista? [JC] - Não tão feérica, talvez. Mas acontece um pouco aquilo que aconteceu na banca. Há críticas ao modo como a banca voltou a remunerar os acionistas e os gestores. Houve uma certa contenção, num determinado momento… E isto é humano. A crise foi há 10 anos. O resgate em Portugal foi há 10 anos. Já nos vamos esquecendo do que aconteceu./ Na arquitectura, é a mesma coisa. Se nós queremos utilizar pedra, porque é que havemos de utilizar betonilha? A sociedade põe-nos ao dispor meios que nos permitem usar pedra… O discurso vai nesse sentido. Claro que isto é um pau de dois bicos. Não é só do ponto de vista ambiental que o planeta se ressente. Há pedreiras, em Portugal, que estão esgotadas. Os recursos são de facto finitos. É preciso olhar de outro modo. Tal como nós, a Arquitectura vai ter de se adaptar. [GF] - Voltando atrás, quanto às referências nas escolas, falámos de Herzog, Eduardo Souto Moura, Tadao Ando, nos anos 1980/90. Hoje, o que é que os estudantes seguem? [JC] - Eu tenho alguma dificuldade em responder-te a essa pergunta, porque estou no 1º ano, onde os estudantes têm necessariamente poucas referências. Mas observo, embora não tão sistematicamente como pediria o sentido da tua pergunta, que abordagens muito mais conceptuais, do centro da Europa, como da Suíça, têm grande peso atualmente. [GF] - Continuam a ter. [JC] – Creio que continuam a ter. Têm muito peso naquilo que os estudantes vêem. [GF] - Mas continua a ser uma arquitectura minimal, com muito vidro ou transparência, volumes... [JC] - Valério Olgiati é um arquiteto que os estudantes adoram. E essas referências de muito vidro, também, arriscaria dizer. [GF] - Eles ainda gostam das coisas de Siza? E de Eduardo Souto Moura? E das caixas de Herzog & De Meuron e de Peter Zumthor? [JC] - Já mudaram. Já não fazem essas caixas. São bastante mais experimentais e mudam de obra para obra… a dupla Herzog & de Meuron./ No 1º ano, Siza faz muito parte do discurso, desde logo enquanto referência metodológica. Além do mais, Siza é um arquitecto que toca com profundidade as questões do espaço, da luz, da forma. Mas se me perguntares… Como te disse, eu tenho alguma dificuldade em responder à pergunta porque não estou nos anos mais avançados, os anos em que os estudantes recorrem mais conscientemente à cultura arquitectónica que vão consolidando. Uma cultura mais rica, mais densa./ [GF] - No clima da crise havia muitos grupos pseudo-experimentalistas, e cruzamentos com a arte. Havia muitos estudantes que, quando acabavam o curso, estavam a fazer essas coisas porque não tinham trabalho e porque... [JC] - Haverá coisas mais meritórias do que outras. Num contexto de falta de trabalho, é natural que cada um experimente as vias que lhe parecem mais naturais, mais fáceis ou mais imediatas. [GF] - Antes disso, tivemos aquela geração do Nuno Brandão, etc. Em termos de arquitectura, independentemente da Escola e dos alunos, o que é que tu achas de… [JC] - De pessoas daqui que se afirmem? [GF] - Na arquitectura portuguesa, quais são os últimos arquitetos a surgir que tu achas que são interessantes? [JC] - Agora é uma profissão muito diversa, com muita gente. Até é difícil acompanhar. A crise também lançou muitos arquitectos, pessoas que conseguiam, com poucos meios, com poucas despesas fixas, lançar uma carreira. E não te esqueças que as redes sociais permitem aos novos arquitectos fazer a divulgação e promoção do seu trabalho, já sem necessidade da mediação dos campos especializados, tal como a crítica, publicações, etc./ Nós também começávamos todos com pouquíssimos meios! [GF] - Nós ainda precisávamos de menos meios, porque nem precisávamos, nem tínhamos que comprar computadores. [JC] - Mas, de facto, com o computador de trabalho, que já vinha da Faculdade, muitos arquitectos conseguiram começar. Não será só por isso, mas há muitos escritórios novos, de gente muito nova. Até já é difícil conhecê-los. Mas entre os arquitetos portugueses que mais me impressionam, de uma geração mais nova do que daqueles que são referidos como os mestres da Arquitectura Portuguesa - que já não é tão nova assim, porque já têm todos mais de 50 anos… como te dizia, entre eles estão o Manuel Mateus e o João Mendes Ribeiro. [GF] - Mas o João Mendes Ribeiro já tinhas há 20 anos, não é? [JC] - Sim, mas não tinha a obra que tem. O João começou a ter mais obra, e obra até com uma certa escala, em anos mais recentes. Estou a lembrar-me de obras com outra dimensão. Por exemplo, o CAV, o Chimico e o Edifício das Caldeiras. [GF] - Em anos mais recentes, o Arquipélago nos Açores. [JC] – Sim, sem dúvida./ Mas, de facto, é um arquiteto que tem feito sobretudo obra de pequena escala. As obras do João não têm a escala das dos Mateus. É um escritório com outra dimensão. [GF] - Estamos a falar de um escritório que tem 8 pessoas e outro escritório que tem 40 a 50 pessoas. José, Obrigada. [JC] – Gonçalo, antes de acabar esta conversa, que te agradeço – foi uma óptima forma de reflectir sobre alguns assuntos que nos interessam a todos e também de reavivar algumas memórias - queria sublinhar duas ou três ideias. Quando me perguntas quais as diferenças que encontrei entre Coimbra e Porto, é preciso clarificar o contexto em que ingressei e frequentei o curso, entre 1988 e 1994. Os meus colegas e eu - juntamente com os professores - estávamos a iniciar alguma coisa do zero, que não se sabia bem o que iria ser. Hoje, a aposta está mais do que firmada, mas, na altura, cada passo era uma conquista. No 1º ano, havia uma incerteza grande, estávamos praticamente sozinhos com o João Mendes Ribeiro (que no final do ano letivo até acabou por ir para Viseu, para a Unidade Pedagógica da FAUP que ali funcionava) e não se pode dizer que houvesse envolvimento cultural/académico e ambiente de Arquitectura. Não havia sequer instalações próprias. As aulas de Projecto I funcionavam no edifício das Matemáticas, o que impedia a criação de um sentido identitário para o curso e para os próprios estudantes. As instalações próprias chegaram só no 2º ano, e foi nessa ocasião que, em 1989, vieram do Porto, como te contei, Fernando Távora, Alexandre Alves Costa e Domingos Tavares. Com a sua participação na Comissão Instaladora do Curso, pode dizer-se que se inicia um segundo momento no Curso de Arquitectura de Coimbra. E se nos faltava lastro e densidade, por falta de tempo do curso e de experiência - pode até dizer-se que faltava uma cultura e ambiente de ensino de Arquitectura na Universidade de Coimbra -, por outro lado, a experiência de estar a construir algo novo, depois dos momentos iniciais de incerteza… será que este curso irá no bom rumo, perguntávamo-nos no início, com especial apreensão, até porque eu tinha ingressado ali por manifesta e normal ignorância sobre o que seria a Arquitectura, já que o fiz por opção: a minha média, de 17,3, tinha-me permitido ingressar em qualquer curso de Arquitectura que tivesse escolhido… Por outro lado, dizia-te, foi uma oportunidade única e criava uma ânsia de participação e envolvimento imensas. Refiro-me à participação na construção do curso, refiro-me ao envolvimento com os professores, com quem tínhamos uma relação muito próxima. Também estavam a passar pela experiência de construir algo novo, além de que éramos muito poucos. E havia, de facto, muito bons professores, muito dedicados, com a capacidade de nos motivar superlativamente. Alguns desses professores estavam também a iniciar-se no ensino - Bandeirinha, Walter Rossa, José Fernando Gonçalves, João Paulo Providência, João Mendes Ribeiro, Pedro Maurício Borges, Nuno Grande, que tinha tido uma passagem como monitor, creio, no Porto. E, mais tarde, Jorge Figueira. Isso motivava-os também de um modo muito singular, já que aliavam essa experiência inaugural ao início de um curso. Era, por assim dizer, um duplo início. Havia também figuras incontornáveis do ensino e da Arquitectura, pessoas extraordinárias e muito cultas. Naquele contexto era uma oportunidade imperdível e representava uma esperança nova numa formação sólida. Estou a falar-te de Fernando Távora (no 4º ano de Projecto), apaixonante e sábio, que prendia a atenção mesmo dos mais distraídos. Fernando Távora enchia uma sala. Domingos Tavares (em História do 3º ano), tinha grande capacidade de motivar os estudantes, com um discurso fácil, fluído, mas rigoroso. José Aguiar (em Teoria da Arquitectura do 2º ano) revelou-nos a magia da Arquitectura logo no início do curso, através da Arquitectura Contemporânea. Foi como uma epifania. Alexandre Alves Costa (em Projecto 2 e, no 5º ano, em História de Arquitectura Portuguesa) dava-nos a ver a Arquitectura de um modo culto, clarividente, com imensa paixão e rigor, motivando os estudantes para a história como matéria operativa, como o Alexandre sempre a viu. Manuel Mendes Tainha era um homem grande, mas muito delicado (em Projecto 3) - lembro-me de um exercício, de grande radicalidade e atualidade, de projecto de um anfiteatro de ar livre, que lançou no início do ano, para aquecimento, digamos. Consistia num exercício de escavação e aterro: a terra que era retirada do solo tinha que ser depositada contiguamente ao local dessa primeira operação - e lá vinham as referências de Francesco Venezia, em Salemi, etc. Gonçalo Byrne (em Projecto 5), que, com grande generosidade para partilhar a sua cultura, sempre de modo simpático e com grande sensibilidade no modo como abordava mesmo os trabalhos mais frágeis, tinha grande capacidade de nos por a trabalhar imenso: o início do ano fez-se com uma espécie de workshop, rápido, que visava o tratamento de um percurso entre dois pontos na cidade como meio de lançar a estratégia para o desenvolvimento do exercício de Projecto e, não sendo determinante, chegámos mesmo a fazer uma direta para entregar o trabalho o melhor possível; Paulo Varela Gomes (em História da Arquitectura Contemporânea), de trato fácil e cujas capacidades de comunicação e a erudição são mais do que reconhecidas, tinha efeitos notórios em nós. Mais tarde juntou-se-lhes Raul Hestnes Ferreira (Projecto do 1º ano), que eu já não tive como professor, mas que contribuía de modo decisivo para o ambiente do Escola e para o ensino, não só nas salas de aula, com os seus alunos, mas noutros âmbitos, em debates com os outros professores. No início da nossa formação, João Dixo e Alves Martins, arquitecto – um óptimo arquitecto, embora com pouca obra… segundo o IAPXX, é dele o edifício da Emanha, na marginal da Figueira da Foz… dizia-te que João Dixo e Alves Martins fizeram de Desenho um instrumento fundamental para nos despertar para uma nova disciplina. Ou seja, vivemos um contexto que pelas circunstâncias de partida e pelo privilégio que tivemos de conviver (mais do que ser ensinados) com esses professores - os nossos metres… esse contexto, com as suas especificidades despertou em nós a ânsia de aproveitar tudo que nos era disponibilizado. Cada sala de aula que era reabilitada e integrada nas instalações era um acontecimento; as conferências dentro ou fora da Escola, eram momentos obrigatórios. Em contraste, quando vim para o Porto, primeiro como estudante do mestrado e, mais tarde, como docente de Projecto 1, encontrei uma Escola já consolidada, com um corpo docente já estabilizado. Refira-se que vim para aqui muito novo. Pouco tempo tinha passado após ter terminado o curso, em 1994, com 24 anos. Para o Mestrado vim em 1996, com 26 anos. E ingressei em 1999, com 29 anos, no 1º ano, a dar aulas numa turma prática de Projecto sob a regência de Sergio Fernandez. O Sergio foi um outro mestre para mim, com quem fiz uma segunda escola... Ou seja, estava tudo ainda muito fresco. Há que dizer que o Porto era para mim, para nós, em Coimbra, uma espécie de mito; aliás, alguns dos nossos professores iam do Porto a Coimbra. Estou a enfatizar o significado que dávamos ao valor do Escola do Porto e a esses professores. Mas os mitos desvanecem-se. Felizmente, para que os possamos habitar. Isto não retira qualquer importância ao valor da Escola. Simplesmente, para que me sentisse em casa e pudesse participar no quotidiano da Escola, teria que abandonar essa ideia de mito. Isto leva-me à pergunta sobre a especificidade ou identidade. É uma questão difícil, já que as questões identitárias são sempre de difícil circunscrição e formulação. É assim em termos pessoais e também com os povos. Há um sentimento que nos faz situar perante os outros, mas de difícil tradução em palavras ou numa ideia simples e clara. Pode apontar-se alguns aspetos identitários, quando alguém ou um povo tentar definir-se, mas nunca se chega a uma definição global e satisfatória. Podemos recomhecer que o corpo docente (e discente, também) é já heterogéneo, com pessoas de gerações, proveniências, experiências de vida e porventura com culturas diversas. Podemos admitir a existência de um modo de ver o ensino da Arquitectura partilhado, transmitido como um legado entre gerações. Isso não terá impedido evoluções, saudáveis dissidências, modos de entender ou fazer Arquitectura particulares. As diferenças não terão anulado a possibilidade de se admitir uma base comum. Uns dirão que a mesma vem do desenho. Outros dirão que se trata de um entendimento mais intuitivo do Projecto de Arquitectura, segundo uma aproximação gradual à solução - que articula determinações intelectuais (a formulação de uma ideia prévia, referências, pensamento abstrato, etc.) com a descoberta e a revelação cuidada das circunstâncias pela proposta ou através da estruturação da proposta. Não sei explicá-lo muito bem, também nunca ouvi uma definição muito convincente e a que de um modo consensual todos aderissem dizendo "é isso mesmo". O que acabo de dizer é muito incompleto e pode não ser exclusivo do Porto. Em síntese, no Porto, as pessoas partilham um qualquer terreno comum, mas o que o torna tão fascinante e rico é o facto de ser de alguma forma indizível, indefinível. Mendo Castro Henriques disse, numa conferência na FAUP, que a Filosofia da Consciência se define pelo que não é. Coerentemente, enunciou o que a mesma não é, para circunscrever o que possa ser. Talvez, por analogia, se deva procurar o que o ensino na FAUP não é, para procurar enunciar a sua melhor definição… isto se o tema for suscetível de preocupação, porque, verdadeiramente, pode não ser. A ambiguidade faz parte da vida. É um terreno riquíssimo! Em suma, era isto. Obrigado, Gonçalo.