12/28/25

CONVERSAS SOBRE A ESCOLA DO PORTO_57 (José Luís Gomes, com Gonçalo Furtado)

CONVERSAS SOBRE A ESCOLA DO PORTO_57 (José Luís Gomes, com Gonçalo Furtado) PARTE I 1.1. Gonçalo Furtado [GF] - Bom dia, proponho estruturarmos a conversa em meia dúzia de aspectos./ No domínio ‘pessoal’, a minha primeira ‘questão’ visa obter informação ‘biográfica’ relativa ao período que antecede o teu ingresso no ensino superior. Entre os ‘tópicos a abordar’, sugeria que incluísses as tuas ‘primeiras afinidades com a arquitectura e afins’. José Luís Gomes [JLG] - Nasci no Porto em Junho de 1958. Cresci naquilo que considero uma família normal, com os meus pais e uma irmã 6 anos mais velha. Escola Primária da Vilarinha e Liceu Garcia de Orta foram os meus locais de estudo já que morava perto do cruzamento da Av. Da Boavista com a Av. Gomes da Costa. [GF] - O 25 de Abril. [JLG] - O 25 de Abril apanhou-me no 6º ano (atual 10º ano), quando começava a interessar-me por política, pertencendo a uma “organização” chamada “Comissão Associativa” que era um grupo de colegas, alguns dos quais mais velhos e que tinham vindo para o Garcia expulsos do então Liceu D. Manuel II por atividade política, e cujo objetivo era criar uma associação de estudantes enquanto se trocavam ideias e conhecimentos./ A partir daí tudo “explodiu”, com tudo a acontecer a uma velocidade vertiginosa e com os estudos muitas vezes a ficarem em segundo plano, tal era vontade em não perder nada, em viver tudo intensamente. [GF] - No verão de 74 participaste nas Campanhas de alfabetização. [JLG] - No verão de 74 participei nas Campanhas de alfabetização que pretendiam alfabetizar populações adultas do interior usando o método de Paulo Freire. Fui em Setembro para uma aldeia de nome Castelo Branco no concelho de Mogadouro, em Trás-os-Montes. Acho que ninguém aprendeu a ler e escrever, mas foi uma experiência fantástica para um jovem de 16 anos. As aulas eram para um pequeno grupo, sobretudo mulheres, que se reunia à noite na escola primária da aldeia à luz de petromax porque a escola não tinha luz elétrica. Tivemos até direito, no dia da festa anual da aldeia, a um sermão do padre na missa alertando para o perigo que estes jovens da cidade constituíam. No fim da missa as pessoas da aldeia vinham ter connosco e diziam: Não liguem, ele já não sabe o que diz./ Ainda fiz uma passagem pelo Conselho Diretivo do liceu depois de ter sido eleito numa RGA. [GF] - Fizeste o “Serviço Cívico Estudantil”. [JLG] - No fim do liceu era preciso esperar um ano para entrar no ensino superior (as faculdades estavam a rebentar pelas costuras) e fiz o “Serviço Cívico Estudantil” que deveria durar todo o ano letivo, mas que se resumiu ao mês de Junho. Fui para a biblioteca de uma escola secundária em Vieira do Minho. Ficamos alojados numa casa da Guarda Florestal vazia na Serra da Cabreira. Todos os dias de manhã um jipe da GNR ia-nos buscar para nos trazer para a Vila e ao fim da tarde levava-nos de volta para a Serra. [GF] - Quais eram os teus interesses gerais? [JLG] - Acho que os meus interesses eram os de qualquer miúdo dessa época. Jogávamos futebol na rua, andávamos de bicicleta e nas alturas em que havia campeonatos do mundo ou da europa de hóquei em patins, ficávamos entusiasmados e passávamos a jogar hóquei (sem patins) com tacos comprados no Sr. de Matosinhos./ Outra fase foi a do ténis de mesa. Tinha uma mesa no sótão de casa e passávamos muitas tardes a jogar./ Gostava de ler. Os livros de aventuras e de banda desenhada eram devorados. Como eram caros, estava instituído o sistema de empréstimo, de modo a que circulassem por muita gente./ Quando estava no 5º ano (atual 9º) tivemos um professor de educação física que era ao mesmo tempo treinador da equipa de juniores de rugby do CDUP. Já não me lembro das razões, penso que uma parte substancial da equipa tinha passado a sénior, e ele precisava de sangue novo. Quando dei por mim, estava com 14 anos numa equipa de juniores, cujo intervalo de idade era entre os 16 e os 18. Com a minha idade deveria estar numa equipa de juvenis, mas isso não existia. Como era muito rápido jogava como ponta, mas sendo um desporto bastante físico, não era fácil para mim e passava a maior parte dos jogos no banco. [GF] - E mais? [JLG] - Era também a época das festas de garagem, onde dançávamos ao som da música dos grupos que então ouvíamos (e alguns que ainda continuo a ouvir). Ter um quarto com paredes e teto pintados de preto, com um gira-discos e uns posters na parede era algo que dava um estatuto especial./ Entretanto vai-se crescendo e os interesses vão mudando. Como disse atrás comecei a ter curiosidade pelas questões políticas, inscrevi-me no Cineclube do Porto, onde passavam filmes fora do circuito comercial e, de repente, acontece o 25 de Abril e aí mudou mesmo tudo./ Quando fiz 15 anos, a prenda de anos que pedi aos meus pais foi uma tenda de campismo. Embora um pouco a contragosto, por acharem que não seria para uma atividade muito segura, lá ma ofereceram. Com os meus pais costumávamos fazer pequenas viagens de automóvel a Espanha, uma vez até França, mas então passei a ter possibilidade de fazer algumas “saídas” com amigos. Primeiro Gerês e Sra. do Salto, depois Algarve. O gosto por viajar ficou para sempre./ No verão de 75 com mais dois amigos, depois de duas passagens por Londres nos dois anos anteriores com os meus pais, compramos um passe de Interrail e fomos viajar um mês pela Europa./ Primeiro Sud-express para Paris e depois norte de frança, Inglaterra com passagem pelo “Jazz Blues & Rock Festival” em Reading e depois Bélgica, Holanda, Alemanha, Dinamarca e Noruega. Pouco tempo em cada cidade porque era preciso fazer render o passe e dormir nas viagens noturnas não custava dinheiro. [GF] - Como surgiu o teu interesse pela arquitectura e afins? [JLG] - É difícil de dizer. Quando entravamos para o 6º ano do liceu tínhamos de escolher a área de estudos que queríamos seguir. Eram as chamadas “alíneas” com conjuntos de disciplinas diferentes. A “F” para quem queria seguir, por exemplo, Engenharia ou Medicina, a “H” para Arquitetura. Quando chegou a minha altura de escolher, não tinha dúvida que era a “H” que queria. [GF] - A “H” no liceu dava acesso a arquitectura. [JLG] - Só que nesse ano mudaram tudo, acabou esse sistema. Passaram a ser duas disciplinas obrigatórias – Filosofia + Português ou Matemática, conforme quisesse seguir uma área de Letras ou de Ciências. As outras 4 disciplinas eram à escolha de cada um./ Acabei por escolher as disciplinas da tal “alínea H” substituindo História, que não me despertava especial interesse, por Alemão./ Sei, por isso, que nesta altura já tinha decidido vir para Arquitetura, mas não consigo dizer porquê, nem exatamente quando tomei essa decisão. Não foi por influência familiar, porque não tinha nenhum arquiteto na família. A minha irmã tinha sido um pouco pressionada pelo meu pai para seguir Medicina, o que acabou por não correr muito bem. Talvez por isso sempre me deixaram fazer as minhas escolhas. [GF] - Ah. [JLG] - Por volta dos meus 8 anos os meus pais compraram um terreno que tinha sido loteado para construírem uma casa. Juntamente com os vizinhos encomendou o projeto a um arquiteto, que projetou 3 casas em banda. Lembro-me perfeitamente de ir várias vezes com o meu pai ao atelier do arquiteto, que era aliás no rés-do-chão da casa onde morava. Nessa mesma altura, os meus pais também compraram várias revistas francesas com projetos de casas construídas, revistas essas que foram lá ficando por casa e que eu gostava imenso de folhear e de “analisar” as plantas das casas para perceber a relação entre os vários espaços que apareciam em fotografias. Cheguei mesmo a pegar numa de que gostava particularmente e a desenhá-la em papel milimétrico, com algumas alterações para, na minha ótica, melhorar um pouco a solução. Terão tido estes episódios alguma influência nas minhas opções? É difícil de dizer./ Quando estávamos a acabar o liceu abriu o curso de Psicologia na UP, o que despertou um enorme interesse no meu círculo de amigos. Três dos melhores deles foram mesmo para esse curso, mas, apesar de nessa idade a tendência para sermos influenciados pelos amigos ser grande, nunca me senti minimamente tentado a ir por aí, mantendo sempre o objetivo de estudar arquitetura. 1.2. [GF] - A minha próxima questão versaria a tua ‘formação universitária’. Entre os ‘tópicos a abordar’ eu sugeria que incluísses as ‘afinidades pessoais, professores, cadeiras e matérias marcantes’./ Entraste em 1976. [JLG] - Entrei na Escola Superior de Belas Artes em 1976. Aí encontrei alguns antigos colegas do liceu, como o João Paulo e o Zé Bernardo. [GF] - Foste colega do José Bernardo Távora. Altura dos “Encontros” e ainda do SAAL. [JLG] - O ano letivo começava com os “Encontros de Arquitetura” (penso que era assim que se chamavam). Eram sessões e reuniões onde se discutia tudo./ O SAAL estava no fim e ainda se pintaram cartazes e faixas para apoiar manifestações em defesa do serviço e do direito à habitação./ O Jacinto Rodrigues e o Alberto Carneiro desenvolviam atividades paralelas com pequenos grupos que podiam ir desde a confiança mútua até a uma auto-massagem na cabeça./ Era um mundo novo que se abria. [GF] - O 1º ano teria cerca de meia centena de alunos. [JLG] - Quando as aulas começaram o primeiro ano estava dividido em 3 turmas, penso que com 50 alunos cada. [GF] - As disciplinas eram Arquitectura, Desenho, História etc. [JLG] - Só me lembro de ter 3 disciplinas – Arquitetura, Desenho e História da Arquitetura. As aulas desta última eram no anfiteatro com o primeiro e o segundo ano juntos e no meio de grande fumarada (ainda se podia fumar nas aulas). [GF] - Ah. Os alunos do 1º e 2º ano tinham aulas de história juntos… [JLG] - Mas as disciplinas verdadeiramente importantes eram Arquitetura e Desenho. E quem eram os professores? Respetivamente Fernando Távora e José Grade./ Ter o Távora como professor no primeiro ano e na disciplina de Arquitetura, que corresponde à atual disciplina de Projeto, seria o sonho de qualquer jovem aluno se ele soubesse o que era realmente tê-lo como professor. Foi, sem dúvida, o professor que mais me marcou. [GF] - O Távora. [JLG] - E a disciplina de Desenho nos dois últimos anos do liceu era exclusivamente Geometria Descritiva. Com a exceção de alguns alunos (poucos) que vinham da Soares dos Reis, não tínhamos qualquer prática de desenho à mão livre. O impacto foi grande, mas aliciante e era extraordinário ver as capacidades de cada um revelarem-se./ O entusiasmo era, de facto grande, pelo menos para uma parte, já que quando chegamos ao fim do ano quase metade dos alunos tinha desistido. [GF] - Ah? [JLG] - O que nos deixava, a mim e a muitos dos meus colegas, uma certa frustração era o sistema de avaliação. A avaliação era feita em reuniões de turma, com todos os alunos e professores, e os trabalhos eram apresentados e discutidos por toda a gente. [GF] - Os trabalhos eram discutidos por toda a gente… [JLG] - Claro que os professores tinham uma autoridade indiscutível, mas toda a gente tinha oportunidade de defender os seus pontos de vista./ No fim, a classificação era global, ou seja, só havia uma nota para todo o conjunto de disciplinas. E só havia quatro notas – 15 (nota máxima) 13, 10 e 8. Esta última, claro, era o chumbo e era o chumbo a tudo. [GF] - A nota era global… com excepção do 5º ano. [JLG] - Havia uma espécie de regra tácita que definia que a nota máxima era para ser atribuída, em princípio, a alunos excecionais e não a mais de dois ou três por turma. Este sistema só acabou no meu último ano, o quinto ano, em que cada disciplina passou a ter a sua classificação. [GF] - A construção estava o Siza. [JLG] - Ao longo do curso a disciplina de eleição era, sem dúvida, Arquitetura, acompanhada de Desenho nos dois primeiros anos e de Construção a partir do terceiro ano. Nesta última tive no terceiro e no quinto ano um professor que rivalizou na minha formação e nas marcas que deixou com Távora e que foi Siza, embora o primeiro tivesse a vantagem de ser isso mesmo - o primeiro, que nos falou de arquitetura e nos abriu esse novo mundo. [GF] - E havia Análise do território, etc. [JLG] - O número de disciplinas em cada ano era sempre pequeno e não variava muito. Além das já citadas tivemos Estruturas, Análise do Território e provavelmente mais uma ou duas de que já não me lembro./ Mais do que as matérias, o que tornava as disciplinas interessantes eram os professores. E aí, há que dizê-lo, e como em qualquer escola, houve de tudo – bons, médios e maus professores. [GF] - Podes resumir-nos?/ Memórias de afinidades pessoais? [JLG] - Ao longo dos cinco anos que passei na ESBAP fomos criando um grupo de amigos que se foi mantendo até ao fim. Como parte deles era de fora do Porto havia a tendência para conviverem mais no tempo fora da escola, já que moravam ali nas redondezas, jantavam juntos, etc. Eu quando saía da escola ia para casa e convivia também com amigos que já tinha./ O nº 61 da Rua 15 de Novembro era uma casa partilhada por vários arquitetos que desenvolviam aí o seu trabalho profissional, organizados em gabinetes mais ou menos informais. Trabalhavam aí Alexandre Alves Costa, Sergio Fernandez, Camilo Cortesão, Manuel Mendes, Carlos Guimarães, José Manuel Soares, José Luís Carvalho Gomes e António Corte-Real (que me lembre). Entretanto um espaço na cave, normalmente ocupado por estudantes, tinha ficado vago e propuseram-nos ficar com ele. [GF] - E passaste pela cave do atelier da rua 15 de novembro, com a Mercês ou o José Carlos Portugal. [JLG] - Não sei se ainda andávamos no segundo ou já no terceiro ano, mas era uma solução ótima para quem era de fora, visto que não era possível trabalhar na escola fora de horas. Para mim, que tinha local em casa para trabalhar, era também uma oportunidade de desenvolver os trabalhos discutindo-os com os colegas e de ter companhia nas noitadas antes das entregas. Deste modo eu, o Baptista, a Mercês e o Zé Carlos Portugal (que era um ano mais novo) tornamo-nos inquilinos da casa de 15 de Novembro. Quando havia entregas o grupo alargava-se ao Nobre, ao Castanheira e a quem mais viesse./ Paralelamente mantinha o meu grupo de amigos anterior à faculdade, que por sua vez se ia alargando. Foi por esta altura que conheci a Rosa Maria, com quem casaria alguns anos depois e que é a companheira de uma vida. 1.3. [GF] - Outra questão que te lançaria versaria os teus ‘interesses actuais e futuros’./ Entre os ‘tópicos a abordar’, sugeria que incluísses as tuas ‘primeiras afinidades com a arquitectura e afins)? [JLG] - Para além da arquitetura é claro que havia outros interesses, alguns mais relacionados que outros. As viagens, por exemplo, tinham sempre por trás o interesse de visitar determinadas obras ou locais. A fotografia também acabava por ter uma relação forte. Mas havia outros./ Sempre gostei de alguma atividade física e logo no primeiro ano do curso um colega desafiou-me para experimentarmos a vela. O mar e as atividades náuticas sempre tinham sido algo que me fascinava. Não hesitei, e lá fomos nós para a marina de Leixões. Existiam lá alguns clubes, mas a estrutura mais bem organizada em termos de formação tinha sido a mocidade portuguesa. [GF] - A mocidade portuguesa foi extinta. [JLG] - Com a sua extinção, as suas instalações e equipamentos tinham sido “herdados” pelo CDUP. A desorganização era grande, mas lá fomos para a água num pequeno veleiro cuja tripulação era de duas pessoas, carregado com quatro. No fim de semana seguinte voltamos a repetir, mas era tudo demasiado ad hoc e acabei por não repetir. Seria o que poderíamos chamar uma falsa partida. Na verdade, não sei por mais quanto tempo o CDUP manteve esta atividade, mas apostaria que foi por muito pouco. Alguns anos mais tarde soube que havia um clube de vela que estava a organizar cursos para adultos e resolvi experimentar. O “bichinho” tinha ficado e desta vez era para valer. Era um curso aos sábados e domingos, durante três meses, que acabei por fazer durante o inverno. Penso que a vela é uma daquelas coisas que não tem meio termo: ou se adora ou se detesta. Nunca mais deixei de fazer vela, embora com períodos mais afastado, e outros mais assíduo. Acho que acabei por contagiar toda a família e, embora hoje sejam poucas as vezes que “vou para a água”, todos adoramos uma boa saída. A determinada altura alugamos um veleiro no algarve com uns amigos e durante uma semana andamos a bater a costa desde Albufeira até Cadiz. Desde aí temos mantido esse hábito sempre que possível, às vezes com a minha mulher e os meus dois filhos, outras vezes juntando-nos a uns amigos ou com a família alargada a genro e nora. O ano passado foi nas ilhas gregas, doutras vezes nas Rias Bajas e na Turquia. PARTE II 2.1. [GF] - No domínio da ‘actividade profissional’, a minha primeira ‘questão’ visa obter uma ‘caracterização’ sumária dessa. Como ‘sugestão de tópicos a abordar’, eu sugeria que incluísses menção ‘à tua abordagem metodológica, etc’. [JLG] - No verão de 1979, tínhamos acabado o terceiro ano, tive aquilo que acho que poderia chamar a primeira experiência profissional. Um grupo de professores decidiu fazer o “concurso de habilitação para obtenção do título de professor agregado”. Um dos trabalhos necessário para este concurso era uma apresentação crítica de um trabalho profissional do próprio. [GF] - Por altura dos concursos para professor agregado passaste pelo atelier do Correia Fernandes por volta de 1979. [JLG] - Neste âmbito, fui para o gabinete do Prof. Correia Fernandes, que tinha sido meu professor no 2º ano, fazer umas axonometrias de um projeto de um complexo desportivo que incluía um conjunto de piscinas. Foi um trabalho curto, de cerca de um mês, que me permitiu ter contacto com o ambiente de um atelier. [GF] - Depois colaboraste no Lar de idosos para Baião. [JLG] - Pouco tempo depois deste trabalho para o Correia Fernandes terminar, fui “chamado” para o atelier que estava a desenvolver o projeto de execução de um Lar para Idosos em Baião. Embora numa primeira fase do projeto também tenham participado o Alexandre Alves Costa e o António Corte Real, era o José Manuel Soares e o José Luís Carvalho Gomes que estavam a desenvolver o projeto de execução. O meu trabalho consistia fundamentalmente em passar desenhos a tinta e desenvolver alguma pormenorização. Foi uma experiência muito interessante porque me permitiu mergulhar no mundo da construção num projeto em que tudo era desenhado até ao mais pequeno pormenor. [GF] - Depois passaste pelo atelier do Alves Costa, Sérgio e Camilo Cortesão… nos anos 80? [JLG] - Era uma época em que os gabinetes tinham muito pouco trabalho e, este terminado o projecto para Baião, passei para o Atelier do Alexandre Alves Costa, Sergio Fernandez e Camilo Cortesão que tinham ganho um concurso para a área de expansão de Santo André, na zona de Sines, e precisavam de mão de obra. Assim, eu o Baptista e a Mercês, que tínhamos as tais salas na casa de 15 de Novembro, subimos um andar./ O trabalho, pelo menos nestes gabinetes, era de facto pouco. Terminado este trabalho para Santo André, que nunca passou da fase de Ante-projeto, o gabinete ficou sem trabalho e podemos dizer que cada um foi à sua vida./ Tínhamos, entretanto, terminado o curso, ou antes, o 5º ano. [GF] - Depois do 5º ano fazia-se o estágio. [JLG] - Ficava a faltar o estágio que era uma coisa que ninguém sabia bem o que era. O apoio da escola era zero e o que acontecia na prática era o pessoal ir trabalhar para os ateliers e ao fim de algum tempo (normalmente alguns anos) apresentar o trabalho realizado./ O Camilo Cortesão tinha arranjado um pequeno trabalho para Guimarães e eu e a Mercês juntamo-nos a ele para desenvolver este trabalho. [GF] - Havia os seminários de pré-profissionalização. [JLG] - A Faculdade de Arquitetura, criada em 1979, para tentar resolver o problemas dos estágios que muitos dos alunos iam adiando, criou os “Seminários de pré-profissionalização”. Eram na prática grupos de trabalho que, sob a orientação de um professor, desenvolviam um tema que depois era apresentado sob a forma de uma tese constituindo uma alternativa ao outro estágio. Embora tenha feito todo o curso na ESBAP, na Av. Rodrigues de Freitas, eu e alguns colegas pedimos reingresso na FAUP e terminamos o curso apresentando uma tese sobre as Cooperativas de Habitação. [GF] - Referes que era uma alternativa. Depois? [JLG] - O trabalho profissional é que era cada vez menos e, desta vez, tinha mesmo acabado. Não havia trabalho. E era preciso fazer alguma coisa. O que eu fiz foi candidatar-me ao ensino para dar aulas de Educação Visual e Desenho no que na altura se chamava Ensino Secundário. Fazíamos a candidatura nos “mini-concursos” que permitiam ocupar vagas temporárias. Durante 5 anos letivos fui passando por várias escolas (todos os anos uma nova) o que me dava direito a um salário e a manter a minha independência./ Sempre encarei esta situação como temporária e mais ou menos a meio deste período respondi a um anúncio do Jornal de Notícias que pedia um arquiteto em part-time para um gabinete de arquitetura no Porto. Fui chamado para uma entrevista na Rua do Bonfim e quando lá cheguei encontrei como dono do gabinete um colega pouco mais velho e de quem me lembrava de ver na escola. Como estes trabalhos eram sempre muito precários, na base do recibo verde, acumulei as aulas com este trabalho em part-time, o que me garantia uma estabilidade económica./ Ao contrário de muitos outros, este gabinete, embora pequeno, tinha muito trabalho e estava organizado de uma maneira muito clássica, com arquitetos, desenhadores, uma secretária, cada um com o seu papel e com uma hierarquia estabelecida. Era diferente das experiências que tinha tido até então, sempre muito ligadas ao mundo da escola. Aqui era mais o mundo empresarial, com relógio de ponto, mas também com horas fora do horário normal pagas como horas extraordinárias. 2.2. [GF] - A minha terceira questão centrar-se-ia nas tuas ‘principais obras’. Como ‘tópicos a abordar’ eu sugeria que contemplasses uma distinção ente as realizadas ‘como colaborador, como co-autor e como autor’. [JLG] - Estava eu a dar aulas na Maia, foi entregue ao Nuno Portas um projeto para a Sociedade Mineira de Neves-Corvo. [GF] - Trabalhaste nesse projecto do Nuno Portas. [JLG] - Tratava-se de um conjunto habitacional em Castro Verde para os trabalhadores desta empresa (quadros médios e superiores). Era necessário formar uma equipa e, assim, deixei a Rua do Bonfim e juntamente com o Camilo e a Mercês começamos uma nova etapa. Continuava com as aulas, mas todo o tempo livre era passado em 15 de Novembro./ Teria passado talvez um ano e recebo à noite um telefonema do Sergio Fernandez. A FAUP tinha criado um Pólo em Viseu. Estava a mudar as instalações da Av. Rodrigues de Freitas para a Rua do Gólgota mas o novo edifício ainda estava em construção e faltava espaço para os alunos. O então presidente da câmara de Viseu tinha arranjado umas instalações que pertenciam à Misericórdia e era uma oportunidade para descentralizar, levando a UP para o interior do país. Paralelamente, o Instituto Politécnico de Viseu queria construir uma Escola Superior de Tecnologia e quem melhor do que a FAUP, acabada de se instalar em Viseu, para desenvolver o projeto. [GF] - A experiência do pólo de Viseu durou um par de anos. A FAUP já tinha um Centro de estudos dirigido pelo Nuno Portas, que desenvolveu projectos, em que se destaca o Plano da Universidade de Aveiro. [JLG] - Sim. A FAUP já tinha um Centro de Estudos, dirigido pelo Nuno Portas, a desenvolver alguns projetos como o plano da Universidade de Aveiro. O objetivo deste centro de estudos era, principalmente, dar oportunidade a professores que não tinham gabinete poderem ter atividade profissional e possibilitar a realização de estágios a alunos. Mas este novo projeto seria para ser desenvolvido em Viseu e a proposta do Sergio era precisamente para ver se eu estava interessado em ir para Viseu para dirigir este projeto no que seria uma espécie de Pólo II do Centro de Estudos. [GF] - Aí hipotetizou-se um Pólo II do Centro de estudos em Viseu? [JLG] - A proposta era tentadora, mas eu e a minha namorada tínhamos acabado de comprar um apartamento (que ainda estava em construção) e a mudança de cidade não estava nos nossos planos, pelo que tinha de recusar. Algum tempo depois, novo telefonema do Sergio com a mesma proposta, mas com uma diferença – tinham abandonado a hipótese de Viseu e o trabalho seria para ser desenvolvido no Centro de Estudo na Faup. Aí não hesitei. Entreguei o meu pedido de demissão de professor do secundário (estávamos em 1989, no fim do 2º período letivo) e vim para o CEFA desenvolver o projeto da Escola Superior de Tecnologia de Viseu. [GF] - Ingressaste no CEFA em 1989,então a convite do Sergio, por causa desse projecto para a Escola Superiora de Tecnologias de Viseu. [JLG] - O projeto seria em várias fases, a primeira das quais um pavilhão para tecnologia das madeiras. Seria um pavilhão do tipo industrial para o ensino prático nesta área e que abrangeria todas as fases desde o corte, passando pela secagem das madeiras, até às fases de construção de mobiliário ou carpintaria civil. [GF] - Tive um projecto para realizar em colaboração com o engenheiro formado em Viseu em madeiras. [JLG] - Nesta fase inicial era eu e o Joaquim Oliveira apenas. Depois foram-se juntando estagiários e umas fases foram-se sucedendo a outras. Atrás da ESTV vieram projetos para Residências de Estudantes, Serviços Centrais, Equipamentos Desportivos e Arranjos Exteriores. Enquanto os novos projetos iam sendo desenvolvidos, os outros iam sendo construídos. Estes trabalhos duraram vários anos. [GF] - No CEFA para além desses projectos para instalações ligadas ao ensino em Viseu, desenvolveu-se o Teatro Viriato, como a FMDUP, etc. [JLG] - Sim. Ao mesmo tempo no CEFA eram devolvidos projetos por outras equipas: o Teatro Viriato (Sérgio Ramalho e Maria José Casanova), Faculdade de Medicina Dentária (Domingos Tavares, José Quintão e Lúcio Parente), Arranjo da marginal e parques de estacionamento subterrâneos da Póvoa de Varzim (Domingos Tavares, José Quintão), Museu Municipal de Valongo (José Quintão), Cantina para UP (Sergio Fernandez e Sérgio Ramalho). [GF] - Á entrada na CEE, procedeu o projecto de muitos equipamentos. [JLG] - A adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia em 1986 tinha acelerado o desenvolvimento do país e o acesso a fundos tinha permitido a construção de equipamentos de que o país carecia. [GF] - Continuaste no CEFA quando o Sergio substituiu o Portas na sua direcção. [JLG] - O Nuno Portas foi, entretanto, substituído pelo Sergio Fernandez como diretor do CEFA e quando Viseu terminou fiquei à frente de outros projetos como a Residência de Estudantes e Cantina para o Polo II da UP, a Escola Superior de Tecnologia e Gestão de Águeda./ Em todos estes projetos o meu papel foi uma espécie de diretor de projeto. Foram sempre desenvolvidos em equipa (como de um modo geral os projetos com alguma dimensão exigem) pelo que não vou dizer que sou o autor./ Depois desta fase de grandes projetos, a entrada de novos projetos no CEFA começou a diminuir - quer em número de projetos quer na sua dimensão. [GF] - O CEFA passou a desenvolver projectos praticamente para a Universidade do Porto, como em coisas do Marques da Silva, etc. [JLG] - Seguiram-se um conjunto de projetos, quase todos para a UP: Melhoria da eficiência energética de vários edifícios da UP (eu com o Alberto Lage); Reabilitação das Coberturas da Faculdade de Economia (eu com o Alberto Lage); Reabilitação de um anexo na Casa do Arq. Marques da Silva para arquivo (eu com o Francisco Barata e o Nuno Valentim); Reabilitação da Envolvente Exterior das Casas do Arq. Marques da Silva na Praça Marquês de Pombal (eu); Reabilitação do Prédio do Arq. Marques da Silva na Rua Alexandre Braga (eu com o Francisco Barata e o Nuno Valentim), para citar alguns. [GF] - E que principais obras desenvolveste fora do CEFA? Mantiveste atelier com o Camilo e a Mercês. [JLG] - Paralelamente ao trabalho no CEFA mantinha o atelier com o Camilo e a Mercês e formamos mesmo uma sociedade formal. Fazíamos alguns concursos, o que constituía normalmente um desgaste grande. Ganhamos um para um conjunto de habitação social nas Antas promovido pela CMP e fiquei eu responsável pelo desenvolvimento do trabalho. Embora fossemos os três sócios com igualdade de cotas, havia na prática um certo desequilíbrio porque o Camilo e a Mercês estavam no atelier em full-time e eu apenas em part-time. A determinada altura, com o anteprojeto para a CMP entregue, cheguei à conclusão que a melhor solução para todos era sair e foi o que fiz. [GF] - Também voltaste a estar com o Alves Costa e Sergio na formação do Atelier 15. [JLG] - Sim. Foi então que o Sergio e o Alexandre, que tinham praticamente abandonado a atividade profissional para se dedicarem à académica, mas que a queriam retomar, me propuseram um novo desfio. Formamos o Atelier 15. Eles tinham pequenos trabalhos, coisa antigas que vinham de trás, e havia que montar uma estrutura nova, com computadores e programas de CAD. Estávamos em 1993 e os velhos métodos já não faziam sentido. [GF] - Pois, data dos 90 a generalização dos CAD nos ateliers e prática profissional. [JLG] - Depois de alguns concurso e projetos não construídos vieram-nos parar à mãos um conjunto de projetos para Idanha-a-Velha – era a praia do Alexandre. Fizemos o Projeto de Reutilização dos Palheiro de S. Dâmaso, o Arranjo da Porta Norte e Muralha, a Reabilitação do Lagar de Varas e o Arquivo Epigráfico. Este último foi, talvez, o projeto que me deu mais satisfação ver construído./ No verão de 1996, tínhamos tido o segundo filho (a Matilde tinha 3 anos e o Guilherme 9 meses), tínhamos mudado de casa, com obras pelo meio, eu ia entrar de férias, mas sem nada marcado. Ou seja, ia ser um mês sem nada que fazer. Havia um concurso para uma residência de estudantes do Instituto Superior Técnico num terreno da Expo (que estava em grande ebulição). A ideia não despertou grande interesse no atelier porque a entrega era no fim do verão e o que toda a gente queria era ir de férias. Só que eu estava mesmo apostado em fazer o concurso. O Eduardo Ribeiro estava a terminar o trabalho no CEFA e eu propus-lhe fazermos o concurso, sem quaisquer garantias. Ele aceitou e, assim, em vez de praia, passamos os dias a desenvolver o projeto. Quando as férias acabaram e a data de entrega do concurso se aproximava, era preciso ajuda para terminar, mas o resto do escritório, regressado de banhos, achava que o melhor era desistir. Depois de uma reunião com toda a gente, ficou claro que o projeto estava muito desenvolvido e que valia a pena um último esforço. Foi, apesar de tudo, com alguma surpresa (e claro, muita satisfação) que recebemos a notícia de que eramos os vencedores. A obra tinha de estar concluída uns meses antes da abertura da Expo, de modo que foram uns tempos loucos, de imenso trabalho, com prazos apertadíssimos. O acompanhamento da obra coube ao Eduardo que corria para Lisboa todas as semanas./ Mas na verdade este trabalho deu um impulso grande ao gabinete e deixou-nos preparados para outros trabalhos que vieram a seguir. [GF] - Pois, eu trabalhei várias vezes nos anos 90 com o Carlos Figueiredo, nos Arquitectos da Beira (associação como Bandeirinha e João Mendes Ribeiro). Em determinado momento desenvolviam projectos para Monsanto. Recordo-me de ter visitado Idanha./ E nos anos 2000? [JLG] - Em 2003 inscrevi-me no mestrado em Metodologias de Intervenção no Património Arquitetónico. Era uma área que e interessava cada vez mais e pareceu-me uma oportunidade de estudar um pouco, dando algum suporte à prática profissional nesta área./ Fiz o ano curricular, de que gostei imenso, mas acabei por não fazer a tese, embora me tenha inscrito e apresentado um primeiro programa. A minha escolha de orientador também não foi feliz, já que algum tempo depois de aceitar, resolveu abandonar o barco, facto que, juntando-se à minha falta de desafio em desenvolver uma tese, fez morrer o projeto./ O mesmo desequilíbrio que tinha acontecido no gabinete anterior também acabou por se manifestar neste. O meu tempo para o Atelier 15 era cada vez menos e, por isso, grande a dificuldade em me integrar nos projetos. A minha saída acabou por ser inevitável. [GF] - Integraste então dois gabinetes entre meados ou finais dos anos 80 e meados dos anos 2000. [JLG] - Durante este período em que integrei estes dois gabinetes, entre 1987 e 2004, e desde que entrei para o CEFA, em 1989, muitas outras coisas aconteceram, que davam ótimas histórias./ Acho, apesar de tudo que este não é o local para elas, até porque tenho de deixar alguma coisa para se um dia resolver escrever as minhas memórias... [GF] - Certo (risos). [JLG] - Nestes últimos anos tenho tido mais tempo para a família, sempre mantendo alguma atividade profissional para além do CEFA, com pequenos projetos em que trabalho sozinho: umas casas de férias no Douro, outra em Vilar de Mouros, a transformação de um prédio em farmácia (em altura) na baixa de Coimbra, reabilitações em Ponte de Lima, no Douro e no Porto. PARTE III 3.1. [GF] - Então para acabar… como diferencias primeira década vs a segunda década do século XX?/ Presente/futuro? O CEFA manteve dinamismo na altura da direção do Rui Póvoas? E mais recentemente tem assegurado a manutenção das instalações da FAUP. [JLG] - No CEFA, que com a direção do Rui Póvoas voltou a desenvolver um grande dinamismo, tenho atualmente um papel mais direcionado para a manutenção dos edifícios da FAUP que estão numa fase difícil, a necessitar de intervenções profundas, quer para resolver as patologias que foram aparecendo, quer para melhorar a sua eficiência energética, quer para introduzir as alterações necessárias para cumprir a regulamentação atual. Quanto ao futuro, sinto que está muito próximo, já que a minha passagem pela FAUP está a aproximar-se rapidamente do fim./ Vou tentar manter alguma atividade profissional e ao mesmo tempo dedicar algum tempo a fazer aquelas coisas que fui sempre adiando. Quem sabe até talvez arrumar a garagem. [GF] - Obrigado pela conversa José.

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