writings on architecture, design and cultural studies (incl. cedric price, gordon pask and many other stuff)
6/9/23
O valor presente em marcos modernos numa cidade
Figueira da Foz # 5: O valor presente em marcos modernos numa cidade.
Gonçalo Furtado /
i.
A Figueira da Foz está na moda como destino elitista de férias. Mas a Figueira da Foz é também assento de obras de arquitectura moderna de valor reconhecido a nível europeu, não obstante frequentemente lhes prestarmos menos atenção que a outras obras e carácter mais monumental ou histórico. /
A título exemplificativo, poderíamos referir a Piscina-Praia, que já esteve em determinados momentos da sua vida ameaçada de morte. A situação, normalmente evoluiu, e em curtos espaços de tempo, passou-se à remodelação do edifício. Por exemplo, no início do século, na sequência da preocupação manifestada pelo Dr Santana Lopes relativamente ao estado do imóvel e a sua aquisição pela Câmara, noticiava-se em 9 de Março de 2001 no “Diário das Beiras” (pág.11), a abertura de concurso púbico para as obras de remodelação (com a verba de 250 mil contos inscrita no orçamento da Empresa Municipal Figueira Grande Turismo). Duas semanas depois, uma notícia do mesmo jornal abria dizendo que “a Piscina do Grande Hotel já não existe” – após aprovação instantânea pelo IPPAR (2 dias) e a “participação” do arquitecto Isaías Cardoso passava-se à consequente investida (parciais demolições), que gerariam um rebento no Verão. /
O novo projecto não era um rebento exactamente da mesma linguagem, houve alterações significativas: a dimensão e relacionamento formal do tanque com os volumes envolventes; a ausência da emblemática torre de saltos; a substituição de alguns elementos arquitectónicos (como a guarda do terraço por planos ed vidro); o esventramento do interior dos corpos edificados (por exemplo o dos balneários) construindo novas compartimentações; e o anexo ed dois novos volumes; e o enxerto de nova ocupação programática no piso inferior (com acessibilidade a partir do átrio da Piscina) usando uma linguagem arquitectónica distinta. /
Aparte das considerações sobre a ideia de recuperação patrimonial presente, gostaríamos de salientar a capacidade política que então houve de tentar resolver uma situação que se arrastava e assegurar a manutenção de uma alusão a este signo figueirense que esteve para ser demolido na integra. /
A nosso ver, a discussão que este processo gerou deixa sempre algum contributo importante para o futuro, porque é capaz e dar conta de dúvida cultural com que, um pouco por todo o lado, ainda se encara o património arquitectónico “moderno”, visto como algo “não histórico” e menos importante. Podemos pois dizer que este caso encarna e pode promover uma problematização muito mais ampla, que deveria no futuro ser mantida aos mais diversos níveis:
– O que é o património arquitectónico?;
qual o significado das arquitecturas modernas?;
como se reprograma edifícios com vista à rentabilidade?;
qual a responsabilidade do poder local, do autor e da comunidade perante os fragmentos urbanos significativos?;
que abordagens usam os projectistas que são chamados a intervir sobre a memória urbana? /
Sem pretender responder a qualquer destas questões mas apenas contribuir para uma reflexão colectiva, gastaríamos que, connosco partilhassem a presente anotação sobre os marcos de arquitectura moderna figueirense (como a Piscina-Praia). De resto, gostaríamos de dizer que, quando falamos especificamente de cidades como a Figueira da Foz, de Turismo e de equipamentos de Verão, não há situação mais propícia do que a ainda distância do buliço do Verão, a que o tédio se acresce a um já por si instaurado conformismo. De facto, é aproveitando a calma dos últimos dias de primavera, que ensaiamos a redação destas anotações e apelo. /
A Piscina-Praia de Isaías Cardoso, datada de 1953 – insere-se entre os casos de marcos de arquitectura moderna figueirense, os quais são significativos porque reflecte a disseminação da cultura arquitectónica moderna em território nacional. E a referência a estas obras e sua relevância assenta, geralmente, em três razões:
a primeira consiste nas qualidades e urbanas que lhe são intrínsecas;
a segunda por participar e dar conta da difusão da produção moderna numa então província mais marginal aos polos Lisboa-Porto;
e a terceira, de âmbito mais subjectivo ligado a qualquer figueirense (e quiçá de operatividade metodológica), justifica-se pela memória de dezenas de verões que nela passámos e pelas facilidades de conhecimento que decorrem de um contacto pessoal. (No meu caso individual acresce um contacto pessoal também tido com o arquitecto Isaías Cardoso). /
Em termos da autoria dos preditos marcos arquitectónicos, poderíamos referir alguns nomes da primeira década do século que iriam de Raul Lino a Inácio Peres Fernandes, ou do arquitecto Isaías Cardoso ao engenheiro Edgar Cardoso. /
Isaías Cardoso em particular é autor de uma produção decisiva para a afirmação da arquitectura nesta região entre as décadas de 50/60. E a sua Piscina-Praia constitui é um marco “moderno” por excelência. Recordando-se desde logo a sua imagem bem como o ambiente como aquando do acolhimento de eventos como a “Prova de Saltos” (Por exemplo mediante “Piscina-Praia: a mais bela realização do desporto”, turismo nacional, 1953). /
Ora, a compreensão do significado de tais marcos arquitecónicos modernos não deve esquecer ter sido edificada num contexto específico – o de uma cidade litoral portuguesa entre muitas cidades portuguesas de carácter provinciano – in casu, a Figueira da Foz. /
De facto, a compreensão do edifício, requer ter em mente o passado recente da cidade e a mutação dos seus usos e morfologia. Neste sentido, cumprindo retratar a Figueira da Foz como uma cidade que cedo viu o seu ambiente urbano caracterizado pela sanzonalidade, a especificidade turística, uma relativa mobilidade populacional e, sobretudo, a simultânea “permanência e continuidade” que pontualmente a permitiram revestir-se de um ar cosmopolita. /
O tipo de obras arquitectónicas modernas sobre que apelamos que também nos concentremos e admiremos (à semelhança do que fazemos com outras com carácter mais antigo ou de historicismo monumental), são representações e momentos de avanço (social e culturais/arquitectónicos) – Ensaios à experiência da modernidade e, em determinado sentido e no caso da Figueira da Foz, uma (re)interpretação “modernista” do fenómeno turístico, a que não é alheio um certo culto da “classe média” pelo corpo e pelo lazer. Um corpo cuja condição actual é simultaneamente a e um “corpo moderno” (a ideia estetizada de um corpo hierárquico, saudável e eficaz que se mostra pela praia); e um corpo de sensibilidade pós-moderna (isto é, que prima pela mesma obsessão “normativa” pela diferença). /
Tal ocorre por exemplo com a Piscina-Praia e outros equipamentos afins. /
Poderemos reservar tal significado especial a variadas outras obras arquitectónicas modernas da nossa cidade. Um significado profundo, cuja compreensão requer atender à história da forma e actividade urbana da cidade em que surgem no recente século XX, bem como especificamente do domínio da cultura arquitectónica e artística (o que procurámos iniciar e aludir em anteriores números desta revista). /
ii.
E vários foram os marcos arquitectónicos “modernos” na Figueira da Foz. /
Por exemplo, a construção do “Relógio” que data de 1945; a requalificação da Avenida (pavimentada e arborizada); e a reformulação das Esplanadas (de cima e de baixo). Ou já na década de 60 a elevação da marginal com a construção, e edifícios em altura como o “Johny Ringo” nos anos 70. /
Mas entre estes dois períodos, não podemos deixar de salientar importantes equipamentos como o Grande Hotel, que se insere no processo de chamar a cidade para o mar já afirmado pela Avenida Salazar. /
A já referida (em anterior artigo na revista Óbvia) “apetência” turística da cidade, inicialmente suportada por unidades hoteleiras fundadas no século XIX, justifica a quadruplicação do número de quartos entre 1879 e os existentes nas 28 instalações em funcionamento no ano de 1942. Como nos referido por Isaías Cardoso: “todo o equipamento turístico vindo do início do século, isto é quando a Figueira nascera para o Turismo, consistia em Unidades hoteleiras metidas na malha do Bairro Novo (Internacional, Universal, Aliança, etc)” [sic]. /
Na década de 50, surge o Grande Hotel que, como a Piscina-Praia, insere-se nesse processo de “chamar a cidade para o mar, em que participa a Avenida Salazar. Sendo que nos dias de hoje, para além destes “icónes”, constatamos que o skyline/imagem de parte emblemática da cidade está em grande parte influenciado entre outros pela mão e Isaías Cardoso: autor(es) da Piscina Atlântico, a esplanada Silva Guimarães (pela Sacor) sobretudo o Turismo, o Edifício da Esplanada, o Costa de Prata, o Atlântico, etc. /
De facto, a década intermédia do século XX e seus marcos arquitectónicos foi significativa. Em 1950-53 inicia-se em particular a construção do “grande” e qualificado Hotel moderno. Este importante equipamento foi impulsionado inicialmente, entre outros, por Augusto Alves da Silva, (personalidade figueirense que, mais tare, seria igualmente responsável pela promoção da Piscina-Praia e da Estalagem). Projectado por Inácio Peres Fernandes na privilegiada marginal oceânica, trata-se de um edifício marcado pela horizontalidade do envidraçado térreo e das varandas dos quatro pisos superiores a que se contrapõe a torre encabeçada por um grande “lettering”, as linhas arquitectónicas modernas e a elegância dos espaços interiores com o hall ou salão. Esta peça está hoje classificada como “Imóvel e interesse público” (a título de curiosidade tal deveu-se em grande parte à acção de Tomás Taveira). Apesar das várias alterações, que são hoje facilmente visíveis na sua cara (recorde-se que face é precisamente o significado do termo italiano para fachada – “facciata”). /
Surge também um burburinho em redor da construção de uma Piscina junto ao mar, que os periódicos locais não deixaram de registar, apesar de já não com a controvérsia que gerara a Torre do Relógio. /
Assim, um mês após o Grande Hotel, na tarde de 6 de Agosto, é inaugurada a Piscina-Praia perante uma sessão de saltos e um copo de água com 400 convidados. (Obras que hoje figuram em múltiplas fotografias no Arquivo Municipal). /
A Piscina-Praia, surgiu do sonho desse ilustre figueirense chamado Augusto Silva – “(…) um homem do seu tempo que veio na altura certa”, enriquecendo o turismo e desporto figueirense com umas instalações que tiveram reconhecimento imediato. (Veja-se o texto “Augusto Silva um homem de acção”, incluído na publicação “Piscina-Praia, a mais bela realização do Turismo-desporto nacional”). Também como recordou Isaías Cardoso “(…) um homem que se entregou de corpo e alma num recém nascido para a arquitectura” [sic]. /
A Piscina erguer-se-á sobre o casario recortado que formava a frente urbana. Instalada na então Avenida Dr. Oliveira Salazar e próximo do Bairro Novo (que também um dia com os eu traçado expressara modernidade), participa no fervoroso ambiente da estância balnear, condimentado pelos seus hotéis, restaurantes, teatros, edifícios históricos e casinos. Com a presença do seu ambiente sofisticado e cosmopolita marcava e dinamizava a envolvente citadina. /
Diga-se que Isaías Cardoso será em 1972 autor da remodelação exterior do Grande Casino Peninsular que, por sua vez, tinha substituído o Teatro Circo Saraiva de Carvalho de José Luís Monteiro. Como referido em publicação: “Em 1972 o Grande Casino Peninsular conhece outro rosto! As obras alteram profundamente o seu aspecto exterior. O arquitecto Isaías Cardoso foi o autor (…) enquanto que a decoração interior foi assinada por Daciano da Costa”. /
Salientando, a titulo de curiosidade, que o mestre José Luís Monteiro foi um dos mais reputados arquitectos clássicos do século XIX/XX, ex-bolseiro na Beaux Arts de Paris, director da Escola de Belas Artes de Lisboa, e autor de projectos como a Estação do Rossio em Lisboa. Já Daciano da Costa foi responsável por importante arquitectura e promotor do Design em Portugal. /
Mas - retomando a nossa história - teremos de reforçar a ideia que a Piscina foi um cisne que contou num território adverso em que a surdez era maioritária… Um contexto que, apropriando as palavras proferidas por Dinis Guarda relativamente à Arte Portuguesa) estava/está “Atrasado por uma ditadura fascista com poucas preocupações artístico-estéticas de vanguarda, uma ignorância e um provincianismo generalizado, apresentando fenómenos retrógrados, uma censura acentuada e uma educação (ou falta desta) frágil a que se acrescenta o grande número de analfabetização e a dificuldade acrescida por um isolamento internacional e económico, (justifica o facto de) as artes em Portugal, sofrerem todo um clima pouco propício para o seu desenvolvimento (…)”. Prossegue Dinis Guarda - dizendo em texto intitulado “Chuva no ecrã” publicado na página 99 da Número 5 – “(…) Razão talvez porque , ainda mesmo actualmente não exista uma verdadeira internacionalização da Arte Portuguesa (…)”. /
De facto esta obra, de considerável envergadura e investimento relativamente ao contexto provinciano local, surgia também como contributo à imagem de uma cidade permeável à modernidade e progresso. /
A obra surge inserindo-se na retícula do Bairro Alto em fotos como as gentilmente me mostradas/partilhadas pelo Arquivo Fotográfico Municipal. /
Enquanto objecto arquitectónico qualificado foi pedra de toque no entendimento de novos valores e ideais modernos, isto é, uma metáfora de modo de vida e comunidade. Podemos afirmar que o jovem Isaías Cardoso estava consciente e estar a afrontar projectualmente um equipamento que respondia a necessidades programáticas suscitadas pelo novo estilo de vida – um “Espirit Noveau” como diria Le Corbusier – e, também, a possibilidade de aplicar, com excepcional impacto socio-cultural, os avanços arquitectónicos e construtivos referenciados funcionalmente no modernismo e estético-formalmente no estilo “Internacional”. /
O resultado foi uma peça de arquitectura notável, incluso no quadro da produção nacional e europeia. /
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