5/11/23

Isaias Cardoso (EBAP/CODA, 1940/50s etc)

F.F. #4: Paradigma, por, um ideal moderno (por Gonçalo Furtado). / Várias cidades portuguesas, em meados do século XX, começaram a ser local de construção de obras de arquitectura moderna. No caso da Figueira da Foz destacam-se, por exemplo, obras de Isaías Cardoso – como a sua casa-atelier, vivendas junto ao Sotto Mayor ou equipamentos como o da Piscina-praia. Possuem um carácter arquitectónico que apenas ressalta da sua contextualização na história da arquitectura portuguesa. / Trata-se de um conjunto de obras, que constituem uma expressão do “novo”, localizadas num espaço-tempo específico (no caso antes mencionado, a Figueira-da-Foz dos anos 50s), cuja genuinidade é ainda maior se pensarmos que a própria modernidade nacional foi por si já singular. De facto, nas palavras de Manuel Modens tivemos em Portugal uma “modernidade de fronteira”, assente no argumento de uma “passagem inconclusa”, onde “permanência versus continuidade”, constituem uma diléctica em que “significam a revelação do lugar específico contra a indiferença do espaço técnico e económico”. (Vd. M. Mendes, “Nós, uma modernidade de fronteira: nós para uma passagem inconclusa”, in: “Arquitectura do movimento moderno-Inventário DOCOMOMO Ibérico 1925/1965, página.14-25)./ De certa forma, a produção arquitectónica portuguesa da década de 50s, devido à sua condição periférica do ponto de vista geográfico, tecnológico e cultural, pode ser vista como uma apropriação tardia dos princípios modernos./ De facto, a incursão algo epidérmica mas decisivamente significativa da denominada “geração de compromisso” na década de 20/30, cedo foi preterida em prole da censura pseudo-nacionalista (1933-1945 etc), levando a uma oposição disciplinar nítida e facilmente constatável nos anos 40. (Sendo que, no concernente à específica condição urbana Figueirense pode ser observada, por exemplo, na “Carta militar nº 239”, de 1947)./ Neste sentido, os anos 50s são uma década e que começa, como refere Manuel Mendes, a ter obra significativa uma “3ª geração” constituída por arquitectos nascidos em 1917/27, como Alberto Pessoa ou o figueirense Isaías Cardoso. (Op cit). / Com a publicação dos “Os verdes anos” (FAUPpublicações), também Ana Tostões clarificou notavelmente a produção da década de 50, posicionando-a entre dois momentos, que primeiro exalta e depois reequaciona o modernismo./ O primeiro momento corresponde ao Congresso nacional de 1948, onde o “realismo” do ideal moderno é assumido ético-políticamente de modo colectivo definindo, segundo o historiador José Augusto França, um segundo período da arquitectura moderna após as experiências dos anos 30s./ O segundo momento, correspondente ao “Inquérito” à arquitectura portuguesa (1955-60) publicado em 1961, atesta uma nova consciência, – (na verdade nunca superada mas que se reforça a meio da década) – em redor da adequação e digestão do “Estilo Internacional”. Sendo que em ambos, o norte teve um protagonismo decisivo, bastando recordarmos o protagonismo da “Organização dos Arquitectos Modernos” (1946) e a personalidade de conciliadora de Fernando Távora. (Autor mais tarde de obra notável, do Barredo e Aveiro ás e Coimbra) etc./ (Já no concernente à forma urbana Figueirense deste período, fotos como as existentes no Arquivo fotográfico Municipal, atestam em vista aérea, um casario rasteio que tem a foz do Mondego como fundo). / Foi precisamente por volta de 1952/53? que o recém formado Isaías Cardoso se fixou na sua terra de origem, com o “aval” do mestre Carlos Ramos, director da Escola de Belas Artes do Porto./ Nas palavras que registámos (no ido fim do século XX), contou-me: “Eu tive uma conversa com o mestre Ramos, que concordou com esta atitude algo monástica, de me fixar numa região em que não havia arquitectura. (…) Na (…) sua ideia, os da província deviam enveredar por uma atitude de fixação nos seus locais de origem”. Ao que como interlocutor/entrevistador lhe retorqui: “Marcar o território?...”. / De facto, o recém eleito director da EBP, cuja actividade no Porto ao longo dos aos 40/6«50ss seria determinante para a promoção do moderno e o enriquecimento da arquitectura que se verifica na passagem e o enriquecimento da arquitectura que se verifica na passagem para a década seguinte, via nestes “retornos” um contributo para a afirmação do papel da arquitectura. / Diga-se que o projecto da Piscina-praia de Isaías Cardoso, foi apresentado na velha escola de Rodrigues Freitas, como CODA, Concurso para a Obtenção do Diploma de Arquitecto”). Como me recordou Isaías Cardoso: “Por volta de (1943?) cheguei de armas e bagagens ao Porto, (…) onde estava o mestre Carlos Ramos. Ainda apanhei aquela altura em que [a disciplina d]o ‘arquitectónico’ do 1º ano era copiar o [tratadista] Vignola (…). Depois, no segundo ano, onde o Carlos Ramos estava a dar [a disciplina de] ‘Arquitectura’, havia um grupo de atrevidos que começou a fazer arquitectura metendo no tema clássico coisas da nossa lavra”. / Na altura em que alargaram os quadros da EBAP (com professores novos), já Isaías estava cá fora e, visto não abundar trabalho, o convite para a Piscina foi irrecusável. A sua “primeira obra”, (se esquecermos duas pequenas moradiazitas), que acompanhará do 1º ao último dia, em paralelo com um emprego no ensino técnico. / Mas “era um projecto atrevido para a época, e o cliente ficou arregalado quando começou a ver pilares redondos, paredes independentes da estrutura, envidraçados á frente ou atrás dos pilares. E essas coisas todas, que nós começámos a fazer. Diga-se, honestamente, com a influência da arquitectura Brasileira”. / O colono cultural Isaías Cardoso protagonizava de certa forma o panfletado pela ODAM em 1951: “(…) com vista a dar ao nosso país uma fisionomia conforme os tempos actuais; (…) Hoje no Porto, (…) amanhã em Lisboa, depois em qualquer outro ponto do país (…).” (vd. Cassiano Barbosa ed., “ODAM: Organização dos Arquitectos Modernos”, Porto, 1947-52”, Ed. Asa, 1947, página 143). / Para clarificar este período, e no âmbito da reflexão sobre esta obra concreta, é produtivo observar-se o próprio “Inquérito” à arquitectura portugesa como (também) uma consequência do Congresso nacional de 1948. (O Inquérito foi lançado em 1948, iniciado em 1956 e publicado em 1961). E, sobretudo, como a aniquilação de um “mito romântico antigo”, visto revelar que a dialética moderno/tradição e “ruptura/continuidade” - (para usar termos usados por Rogers em 1957 para expressar a referida dialética) – sempre fora um vector de presença constante entre nós. Constituiu sobretudo uma consciencialização moderadora relativamente ao dogmas modernos. Um contributo para revermos o racionalismo “internacional” - (para referirmos termo que remete para a exposição “The international style” realizada por Hitchcock e Johnson no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque em 1932). Revelando a própria crise presente na 3ª fase dos “Congressos internacionais de arquitectura moderna” (desde 1951), em prole de uma evolução contextualizante, humanizadora e comunicativa que caracterizará já o início da década de 60s. / Como refere Manuel Mendes, é a “oportunidade para os que (…) se propõem creditar (…) o conflito tradicional/moderno, (… e) o trabalho de projectar (…) mais ligado ao caso concreto (…)”. Mas também ainda a oportunidade “(…) para os que se mantêm fiéis à ritualização do movimento moderno (…): os postulados operativos típicos do moderno liso e funcional (…), a fragmentação do edifício como caixa e a libertação da cobertura e os envidraçados, a individualidade da estrutura, o surto de elementos como grelhas, sombreadores (…)”. (vd. Mendes, Op. cit) / De facto, ainda que perseguindo a continuidade, os autores da geração nascidos em 20s, como refere Ana Tostões relativamente ao anteriormente já mencionado Alberto Pessoa, “permanecem seduzidos pela clareza das propostas racionalistas (…), nestas se adaptando aos valores do sítio, e, (…) menos permeáveis aos valores do vernáculo (…), destacam-se pelas suas opções na linha de continuidade dos movimento moderno (…)”. (vd. Ana Tostões, “Os Verdes anos na arquitectura portuguesa dos anos 50”, Porto: FAUPpublicações, página 50). Antecedendo a geração dos arquitectos nascidos em 1903 (como um Siza Vieira, Nuno Portas ou Pedro Vieira de Almeida) que, do ponto de vista teórico e prático, demonstrariam de modo inquestionável uma capacidade de síntese. / Cumprindo aqui fazer uma pausa para referir que Alberto Pessoa, que integra a geração de 1919/25, foi um dos protagonistas maiores da época. Trabalhou, curiosamente, entre outros locais, também na Figueira da Foz, nomeadamente os primeiros PP sobre o Plano Garret. Entre as obras do autor, salientam-se a “Casa cantante da moita” congratulada com o prestigiado “Prémio Valmor”, as “Instalações Académicas de Coimbra, e coautoria na Fundação Calouste Gulbenkian por volta dos anos 70. (Podendo ainda acrescer, a título de mera curiosidade, que outro prestigiado arquitecto figueirense a referir foi Vítor Figueiredo da geração de 1929, um peregrino silenciado que próximo do final do século XX que foi congratulado com o Prémio Nacional de Arquitectura). / Ora, mas retomando o jovem Isaías Cardoso, esse cultivava uma atitude semelhante à de Pessoa, com quem de resto sedimentou um relacionamento profissional e de amizade, e o período inicial da sua obra (e os anos da Piscina-praia) são pois paralelos a vários acontecimentos decisivos para a confirmação-conformação da cultura moderna, de que se reclamava herdeiro. / Façamos aqui referência que, para a arquitectura do pós-guerra portuguesa, foi central a matriz Brasileira. Como reconhece Isaías ao dizer, nos recordando em conversa registada que: “Foi uma pedrada no charco quando apareceu o ‘Brazil builds’, e nós bebemos no ‘Brasil builds’ de uma maneira escandalosa… ficou tudo louco (…)” com aquela arquitectura moderna!. (Sendo de entender “Brazil builds”, a impactante exposição ocorrida no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque em 1943; de onde resultou catálogo intitulado “Brazil builds: Architetcure new and old, 1652-1942”). / Por enquanto, não se procurava uma “terceira via”. Aquela que que Távora anuncia em 1953 com as palavras “o estilo não conta”. (Protagonista recorde-se, e como antes adjectivado, de uma “reconciliação”, identificável pelna evolução nítida eentre a sua CODA “Casa para o Mar” de 1950 ou do Bloco da Foz” de 1950, para a impactante “Casa de ofir”). Uma “terceira via”, que a revista “Arquitectura” da altura reclamaria (desde 1956); que a influências “organicistas” em conjunto com as preocupações urbanísticas-sociológicas e teorizações dos anos 60s (Vieira de Almeida, Lixa-Filgueiras, mas também Távora e Condensso etc), fortaleceriam. / Avance-se que também a produção do figueirense Isaías Cardoso sofrerá, ainda que mais tarde, também uma certa evolução estética próxima á arquitectura dita “brutalista”. Tal está presente em variadas obras, mas que não se enquadra no período e aspectos sobre o qual nos pretendemos deter no presente texto. Mas no período temporal coincidente com o inico da sua (“Piscina-praia” etc); o arquitecto Isaías Cardoso empreendeu o que nos partilhou nas palavras registadas: “Sempre me mantive fiel aos princípios em que me formara e alheio ao discurso do Português Suave”. / Recordo com saudade conversas tidas: / Gonçalo - “Na década de 50 calculo que continuasse a ser um desafio e risco desenhar estas coisas ‘diferentes’, incluso na escola (…). Não muito depois o racionalismo é posto em causa, os pressupostos que o legitimavam desvaneciam-se e realiza-se o ‘Inquérito à Arquitectura Popular’ que sugere a sua revitalização. Como é que você (Isaías Cardoso), se posicionaria neste movimento crítico que viria a exorcizar o modelo moderno?” / Isaías - “Eu fui, e continua a ser um bocadinho irredutível nesta minha posição…. Eu escolhi um rumo e só quando não podia deixar de ser o comprometi…, por exemplo nunca pus o pé no ‘português suave’, nem naquela coisa…, nunca. Se percorrer os meus projectos nunca fiz concessões nenhumas a essas reticências”. / Gonçalo – “Como é que (…), na década de 60, depois de realizar estas obras fortes, a sua obra se ressentiu. Desta crítica de que Távora é um expoente no fim da década de 50s, a um moderno que não entendia tanto valores locais e que era mais inoperante do ponto de vista comunicativo? / Isaías – “Houve, não digo uma cedências… mas uma compreensão. Até porque as pessoas para quem eu trabalhava (…) pressionaram no sentido de eu não exagera, não pisar o risco. [De não fazer arquitectura tão avançada]. Mas a verdade é que não me vejo assim muito de abandonar o barco daquelas ideias com que fiz a minha formação. Não quero dizer que em todas as obras que fiz tenha oportunidade de fazer grandes voos…, mas se reparar bem em projectos recentes a coisa mantem-se. A ideia/conceito de arquitectura perdura durante a minha vida”. / Se quiserem, podemos dizer que a Piscina-praia prescindia de anunciar a revisão do moderno. Não verdade, nem era suposto que o fizesse, porque nem o moderno tinha quase chegado á Figueira… E, na cidade, precisava-se de uma cirurgia mais seguramente drástica, pela via silenciosa de racionalismos seguros. / Já desde o século XX, que a historiografia crítica do movimento moderno não deixa de dar valor a tendências menos ligeiras do movimento moderno que, durante a década de 70s foram um pouco alheadas do debate/pensamento arquitectónico mais comum. Por constituírem uma contradição que lhes era demasiado próxima. / E livros, como o “Verdes anos” (Verdes anos na arquitectura portuguesa dos anos 50”) de Ana Tostões, entre outros, têm desde os anos 90s o significado de vir revalidar o interesse por esta tendência-períodos da arquitectura portuguesa. / Gostaria de terminar, remetendo o leitor para a lindíssima fotografia a preto e branco da Figueira da Foz, que integra a Coleção “Sebastião P. Monteiro” (figura na publicação de António J. Lé, “Grande hotel da Figueira”: Viajar no tempo”, editado pela Sociedade Figueira-praia S.A. em 1997), onde figura suspenso no tempo, os terrenos expectantes onde Isaías Cardoso viria a construir a sua primeira grande obra de um equipamento arquitectónico urbano.

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