5/21/23

Prólogo por Victor Neves para novo livro de Gonçalo Furtado

PRÒLOGO / Por Victor Neves (*) / Revisitar o tempo é quase sempre um exercício gratificante. Revisitar o tempo através da escrita não só é gratificante, mas também fascinante. Porque a palavra escrita é uma osmose do tempo que, em determinado tempo, estabiliza e retém as ideias, que se depositam, protegidas, aguardando que as recuperem. / Num debate realizado no longínquo ano de 2003 na Casa dos Dias da Água, em Lisboa, integrada no ciclo “Múltiplas percepções e que era comissariada por Gonçalo Furtado e onde eu próprio participei conjuntamente com José Bártolo, Vítor Silva, Ricardo Carvalho, Nuno Grande, Bruno Gil, falou-se de uma sobre-estilização que assaltava a diversidade (que se admitia como apenas aparente) da arquitectura contemporânea. De certa forma reconhecia-se uma espécie de crise de Ideias na Arquitectura. / Hoje, ao contrário, vivemos um dos períodos mais desafiantes da Arquitectura desde os heróicos anos 20 do século XX. Desafios globais, emergentes, que, no entanto, são acompanhados por um enorme manancial tecnológico e científico. / Talvez decorrente da pretensa crise de Ideias atrás referida, também se mencionava, nesse debate, um interessante cruzamento “fronteiriço” da Arquitectura com outras disciplinas - com as artes, em especial - que permitiam “contaminações”, “nomadismos”, “transmissões”, “migrações”. Perguntava-se então se a crítica (e a teoria) da arte e da Arquitectura não seria uma simples e mera mediação ou uma confrontação efémera da Cultura (mais ou menos errática) com o poder político. Hoje, ao contrário, esses cruzamentos enfraqueceram-se, sendo substituídos por uma afirmação mediática da arquitectura que ganhou protagonismo nos media e na net. E, no entanto, confrontados com os problemas climáticos e ambientais, vivemos hoje um período de verdadeira EMERGÊNCIA, que como se disse atrás, implica um desafio global onde a colaboração com a ciência, com os produtores de novas tecnologias, com novas correntes da Filosofia, será vital para a sobrevivência da própria ARQUITECTURA, enquanto disciplina de conhecimento, com valor artístico e social e de uma praxis a que está intimamente ligada. / Por outro lado, necessitaremos de uma nova “Crítica à Crítica” que envolva também a praxis e que envolva também uma crítica aos poderes políticos. E este último aspecto é relevante porque é ao poder político que se exige, em primeira instância, as decisões necessárias para a solução da EMERGÊNCIA em que vivemos. É o poder político que está pressionado por um activismo militante de movimentos ecologistas com ramificações políticas cada vez mais fortes e que acredita poder resolver a EMERGÊNCIA climática com manifestações públicas mais ou menos ruidosas. Ilusão preocupante…. / A emergência exige dos arquitectos e de quem escreve e teoriza sobre arquitectura, ideias claras e propostas claras, cientificamente e tecnicamente sustentadas e sobretudo rápidas porque urgentes. E que não são compatíveis com o “politicamente correcto”. / A mais poderosa tirania mental no mundo livre é o politicamente correcto (Doris Lessing). O politicamente correcto está a transformar-se numa nova forma de fundamentalismo que esta a afectar a linguagem quotidiana (Umberto Eco). Ser politicamente correcto costuma implicar a imposição de uma restrição ao que os outros dizem“ (ou podem dizer) acrescento eu. O politicamente é uma estratégia de controle da linguagem - e, por isso, do pensamento. / Reler os textos de Gonçalo Furtado que agora voltam a ser publicados neste livro , permite-nos fazer uma actualização do tempo e repensar os seus conteúdos. Os título dos textos publicados na revista Arqa desde 2001 até 2023 (ano em que a revista encerrou a sua publicação) são eles próprios reveladores de uma reflexão contínua a sempre actualizada da arquitectura e de todos os fenómenos que a ela estão associados, desde o início do milénio, até à actualidade: - “O imaginário utópico do pós-guerra e a sua herança pós-moderna” In: Arq/a, N.1; - “A viragem dos anos 60-70 e o reconhecimento de novas atitudes” In: Arq/a, N.61; - “Rumo a uma estética arquitectónica evolutiva: interesses tecno-científicos actuais, complexidade, e a iniciais permissões do emergente” In: Arq/a, N.53; -“Desafios na arquitectura actual” In: Arq/a, N.62; - “Redes, fluxos e interações expandidas: a sobrevivência da cidade e o ethos global” In: Arq/a, N.74; - “Modelação e manufactura: modelação geométrica, manufactura e construção assistida por computador” (com D. Aguiar) In: Arq/a, N.69; -“Flexibilidade e mobilidade: a necessidade de ponderar a condição contemporânea e um resvalar para a política” In: Arq/a, N.77; “Evolução de paradigmas no século XX: da conservação urbana à reabilitação urbana” (com R. Macedo) In: Arq/a, N.82-83; -“ Revisitando matérias: a diluição de distâncias na pós-modernidade digital (1999- 2009)” In: Arq/a, N.84-85; - “A ficção tardo-moderna: derivações pós-modernas e o nosso transitório presente” In: Arq/a, N.100, - “Rural e urbano: da urbanização do rural à ruralização do urbano”(com R. Macedo) In: Arq/a, N.101; - “Arquitectura e cultura: arquitectura portuguesa face à cultura global” (com E. Lopes) In: Arq/a, N.105; - são alguns dos títulos que evidenciam essa contínua abordagem crítica no tempo, de diferentes temas que se sucediam no panorama internacional da arquitectura, sempre actualizando temas e modos de ver e pensar. A revista Arqa, que eu dirigi em dois períodos distintos, beneficiou muitíssimo com a colaboração de Gonçalo Furtado e com a sua interpretação crítica, intelectual da meteórica evolução de tendências que se sucederam desde o início do seculo XXI na arquitectura até aos dias de hoje e que não são os “ismos” da segunda metade do seculo XX, mas tendências fugazes que se atropelam no espaço digital que domina os nossos dias. Actualmente vivemos num tempo de hiperestimulação de pensamentos e de imagens vindas do digital. Isso gera “mendigos emocionais”. O mendigo emocional vive de estímulos, mas não consegue satisfazer-se no vórtice da informação que recebe. Então precisa de muitos estímulos, rápidos para ter migalhas de prazer. Já não se trata do individualismo hedonista de que falava Gilles Lipovetsky nos anos 90, mas de uma geração que se alimenta de “soundbites” de cultura instantânea. / A obra crítica e teórica de Gonçalo Furtado está (estará), estou certo, em contraciclo, relativamente a essa cultura “instantânea” e isso é reconfortante, porque pretende sempre ser abrangente , ligando o mundo largo que é hoje a Arquitectura e o trabalho dos arquitectos./ “Temos, sobretudo, de aprender duas coisas: aprender o extraordinário que é o mundo e aprender a ser bastante largo por dentro, para o mundo todo entrar” (Agostinho da Silva, “A última conversa” 11ºedição casa das Letras, 2006) / (*)Victor Neves: - Arquitecto, (ESBAL-1980)- Doutorado pela ETSAB-UPC de Barcelona. É professor Associado na FAA da Universidade Lusíada em Lisboa. - Foi director da revista “arq/a- revista de arquitectura e arte” em dois períodos distintos. É co-autor da série de 26 programas para televisão ( RTP2) –“Atelier D´Arquitectura”. Tem realizado várias conferências sobre temas de arquitectura, ou sobre a sua obra projectada ou construída, em Portugal e no estrangeiro. É autor de vários textos de crítica e teoria de arquitectura, alguns dos quais publicados em livro. É coordenador do atelier "Victor Neves Arquitectura e Urbanismo, Lda", com sede em Lisboa e fundado em 1984.Tem desenvolvido a sua actividade como profissional liberal, sendo responsável por vários projectos na área de arquitectura, urbanismo e design, vários dos quais publicados. /

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