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CONVERSA SOBRE ARQUITETURA E ESCOLA DO PORTO _ MAIO 2020 (António Madureira, com Gonçalo Furtado)

CONVERSA SOBRE ARQUITETURA E ESCOLA DO PORTO _ MAIO 2020 (António Madureira, com Gonçalo Furtado) I. [Gonçalo Furtado] - António Madureira, és filho de arquiteto. Começava por te perguntar primeiro, como é que foi o teu contexto e o teu tempo de estudante na escola. [António Madureira] - Ora bem, realmente eu não nasci no Porto, nasci em Barcelos. Barcelos era uma terra pequenina, não tinha liceu, não tinha secundário, não tinha nada e não sei quê. Portanto a família, quando nós começamos a ter idade de avançar para o secundário, teve que se mudar para o Porto. As duas alternativas era o Porto ou o Braga, mas a família optou pelo Porto e viemos para o Porto. / O meu pai era arquiteto, a minha mãe era professora primária. Concorreu para aqui, fixou-se e o meu pai trouxe o trabalho para aqui, e fixou-se. [GF] - No público? [AM] - Não. O meu pai esteve no público, nas obras públicas, mas muito antes de eu nascer. Antes mesmo de terem ido para Barcelos. / Ora bem, pronto, fiz o liceu aqui no Porto. E no fim do liceu tive muitas dúvidas de onde é que ia, ou deixava de ir. / A uma certa de altura percebi que o meu pai achava que eu nunca deveria ir para arquitetura e, portanto, foi a razão suficiente para eu ir para arquitetura. Meti os pés à parede e fui para a arquitetura. / Voltando atrás, eu acho que o homem tinha toda a razão, mas agora também não vale a pena estar a discutir isso. Pronto e, fui para arquitetura, por essa via. [GF] - Entraste no início dos anos 60. [AM] - Entrei na escola em 1961. [GF] - Quem eram os teus colegas do curso? [AM] - Na altura? Olha, assim de uma assentada, o Zé Quintão, que já cá não está, e o Mário Moura. O Ricardo Figueiredo não, que esse entrou um ano depois. Não era colega na mesma altura, mas era assim um grupo, eram uns 15. [GF] - Quem eram os colegas com que andavas e estavas mais? Se calhar era com todos, também aquilo eram 15. [AM] - Sim era com todos. / Mas eu dava-me bem com o Mário Moura, dava-me bem com o Mário Trindade, que ainda está por cá e, dava-me muito bem com o Zé Quintão, sempre dei. / Mas havia mais. Na sala eramos 15, nessa altura o curso estava dividido em dois. Um grupo de disciplinas na Faculdade de Ciências. [GF] - Com a reforma de 1957? [AM] - Sim. Com a reforma. [GF] - Tinham algumas disciplinas na Faculdade de Ciências, Matemáticas Gerais, Geometria Descritiva e Química, no 1º ano, e depois Física e Sociologia no 2º ano. [AM] - Acho que eram essas. Era uma chatice e aquilo correu mal de um modo geral. [GF] - Mas vocês contestavam isso, não é? [AM] - Aquilo não estava bem, não havia razão de nenhuma coisa para ser assim, era mau. / A própria Faculdade de Ciências nessa altura já estava uma crise profunda, todo aquele sistema de exames e não sei quê, era uma coisa absolutamente abominável. Mas eu também propus, dito característico, decidi que ia investir era nas aulas da Faculdade de Ciências e tive as notas mais altas do meu curso, em Matemática e etc. [GF] - E o ambiente nas Belas Artes? Na Faculdade de Ciências houve um ambiente político. Em 1961/62 começou a crise académica. [AM] - De 1961/62, mas já apanhou connosco mesmo. [GF] - O Carlos Ramos está até meados e finais dos anos 60. Na altura faziam exposições Magnas. [AM] - Faziam essas exposições Magnas. Havia muita vitalidade e o Carlos Ramos sempre fomentou isso, sempre foi muito importante nessa coisa. / Por outro lado, também tinha uma grande capacidade de se mover no poder, se bem que nunca tenha sido abertamente ligado ao poder. [GF] - Tinha capacidade de se mover bem no poder. [AM] - E quando havia exposições e inaugurações das exposições Magnas, ele conseguia trazer à escola de Belas Artes a fina flor do entulho de todo o poder aqui. / Ele era o comandante da Região Militar, da Câmara, o Governador Civil, vinham Ministros de Lisboa e não sei quê. Até o Bispo vinha. Tinha tudo pronto. [GF] - As Magnas era um momento que abria a escola à cidade, aos cidadãos portuenses. [AM] - Aquilo ficava porta aberta à e na cidade. Pronto, a porta estava aberta, quem quisesse ir lá era sempre bem recebido. / Mas naturalmente quando se fala nisso a ideia é sempre que o poder é que foi lá, que ia lá. [GF] - E foi também uma maneira do Carlos Ramos justificar e ganhar força para o que andava a fazer. [AM] - Vamos lá ver. O Ramos quando foi para lá a Escola de Belas Artes, estava numa crise de direcção, tinha dominantemente professores velhos, (todos eles eram muito mais novos do que eu sou agora!), mas funcionavam como velhos, era clara a ideia a ideia de que eram todos velhos. / O Ramos teve uma política de arrumar essa gente toda e promover gente nova. [GF] - Alguns bons. [AM] - Verdadeiramente bons, interessantes, interessados, etc. Outros não. Ponto. / E arrumou os professores velhos, o Rogério de Azevedo, o Júlio de Brito e o António Brito, por exemplo. / Mesmo na Pintura, aconteceu isso também, e meteu gente nova. Um pouco aquela ideia que, sim senhor, que a gente nova é que vai resolver isto e tal, e não foi mau, correu bem. Mas os velhos foram muitíssimo mal tratados. [GF] - Porquê? Como? [AM] – Foram para a prateleira, com a responsabilidade de disciplinas absolutamente nada interessantes. [GF] - Depois, da gente nova. É o Arnaldo Araújo, o Fernando Távora, o Octávio Filgueiras, o José Carlos Loureiro. [AM] - O Arnaldo é um tipo muito mais novo, aliás é mais novo do que esse primeiro grupo da gente nova. [GF] - Era o Fernando Távora. [AM] - Mas o Távora tinha um peso maior, apesar de tudo e, rapidamente se percebeu que o Távora era uma figura. Os outros, o Figueiras o José Carlos Loureiro, foram importantes, na altura, para a afirmação de um “espírito moderno”. / Depois, mais tarde apareceu o Arnaldo Araújo. Dizer isto é ser um bocado estúpido e não sei quê, mas para mim foi, se não o único, pelo menos o melhor professor que eu tive no curso de Arquitetura. [GF] - O Domingos Tavares também tem muito respeito por ele. [AM] - O Arnaldo Araújo era outra coisa. [GF] - Era assistente do Filgueiras. Para além de politicamente consciente era muito empenhado, não é? [AM] - Era muito empenhado, era muito culto e era muito inteligente também. [GF] - Já ouvi pessoas diferentes a expressar grande respeito por ele como intelectual da altura. O Filgueiras deixou um centro em nome dele, foi o assistente daquilo? [AM] - Não, não era assistente. / O Filgueiras, por exemplo, era professor de duas cadeiras, uma no 1º ano, outra no 2º ano, que era a chamada Arquitetura Analítica. O Arnaldo foi professor de Teoria, foi meu professor de Arquitetura ou Composição de Arquitetura. [GF] - Que era Projeto não é? [AM] - Que era Projeto. Foi no 3º ano. / Digo que nunca foi assistente de ninguém, porque, então, os docentes convidados entravam e o esquema académico típico ali não funcionava. O tipo entrava e, por exemplo, muito mais tarde, já em 1966, salvo erro, o Siza entrou para dar uma disciplina de Projeto e, ninguém perguntou quem era o assistente e o professor. Não tinha significado isso, era diferente. Entrou para fazer aquilo. II. [GF] - Há bocado interrompi-te. Tu ias dizer dois grupos, um destas matérias digamos científicas, durante o curso. / Antes de avançar para os professores. / Dizias que havia dois grupos, Ciências e Belas Artes. [AM] - Era, eram as aulas nas Belas Artes e as aulas na Faculdade de Ciências. / Havia sistematicamente um problema de muita malta que reprovava nas ciências. / Já estavam no 3º ano de Arquitetura e ainda estava a fazer cadeiras do 1º ano e não sei quê. E houve gajos que foram mesmo até ao fim do curso ainda com cadeiras do 1º ano por fazer. Era uma situação muito chata. / Foi uma reforma que foi feita em cima do joelho, claramente em cima do joelho. [GF] - Fora do seu tempo. Porque ele tinha aquela ideia já há algum tempo, de supostamente cientificar. [AM] - Já não dava, não funcionava. Aliás esse tipo de conceitos etc., nunca funcionou, não é assim, não dá. E nós sentíamos isso perfeitamente. / E mais, quando mais tarde foi possível mexer um bocadinho, isso caiu. Das primeiras coisas que caíram foram as aulas na Faculdade de Ciências. Que aliás, também não era de admirar porque a própria Faculdade, vegetava em completa crise. [GF] - Embora tu nessa altura tenhas investido como aluno nessas disciplinas científicas. Depois ali o ambiente nas Belas Artes como é que era? [AM] - Era porreiro. / O curso no meu tempo eram 15 por ano, ou menos ainda. Sim. [GF] - E o curso inteiro, os 5 ou 6 anos? Eram uns 60. [AM] - Os 5 anos, vamos dizer 6 anos, no máximo 70 alunos, muito mais não. / Era uma coisa pequeníssima. E havia relativamente bom contacto entre toda a gente, mesmo dos cursos mais adiantados e tal. E havia uma coisa que era fundamental e que para mim foi essencial, que era contacto com a pintura e com a escultura. Esse contacto era feito com duas ou três cadeiras comuns, designadamente História de Arte e Desenho de não sei quê, como era natural. [GF] - E no fim do curso havia uma cadeira que juntava todos, Conjunção das três artes. [AM] - Era, era a Conjunção das três artes. Era um disparate completo. Esse era um perfeito disparate, nunca ninguém levou aquilo a sério. [GF] - Os cruzamentos eram feitos ali no jardim e na cantina e, se calhar, à noite. [AM] - E eu, por exemplo, nessa altura já tinha casado e como a Albertina era de pintura, eu fui ter com o Cristiano, que era o professor e disse: “eu garanto a conjugação em casa , serve?”. [GF] - Cristiano Moreira. [AM] - Sim. “A conjugação faço lá em casa, portanto não me chateie, aqui não tenho de fazer nada”. E ele: “Está bem, está bem então”. / Fez-se a cadeira e acabou, ninguém nos chateou. Era caricato, não tinha sentido. Mas tinha a vantagem de nós, por exemplo, sabermos o que se passava na Pintura e na Escultura. Também aprendi muito com a Albertina, ela estudava muito e eu ia sabendo. Nós sabíamos. Nós tínhamos esse conhecimento. [GF] - O contexto social era uma coisa com artistas. Muito mais do que hoje. [AM] - Sim. Agora não há contacto nenhum, virtualmente nenhum. O que para mim é profundamente lamentável, quer dizer, não é possível. Enfim, lá sabem... / Como é que a malta pode saber alguma coisa de arquitetura e, de quem anda a fazer, se não conhece a pintura, escultura, etc., que se faz ao mesmo tempo. Agora se calhar já não se faz ao mesmo tempo, mas pronto. [GF] - Quem eram as personagens? Estavas a falar das personagens que te marcaram no curso. [AM] - É assim, que me marcou, evidentemente o único máximo foi o Arnaldo Araújo. O Filgueiras era um tipo que eu andava sempre a provocar e dávamo-nos bem. Tínhamos uma relação correta, mas andávamos uns tempos à carolada, eu e ele, sempre. Mas eu tinha respeito por ele. Ele também tinha respeito por mim, dávamo-nos bem, mas não foi assim um professor que me tenha marcado muito. [GF] - Os grupos, quem eram? Era em redor do Távora, em redor do Viana de Lima mais tarde e... [AM] - Não. O Viana de Lima, ninguém tinha nada a haver com o Viana de Lima, calma lá. O Viana Lima entrou mais tarde. [GF] - Seria uma personagem isolada? [AM] - Sim. [GF] - Depois foi para Lisboa. [AM] - Não, mas isso foi muito depois, e outra coisa. Ele foi para Lisboa, uma maneira de dizer. / Bom eu conheci muito bem o Viana de Lima, dei-me bem com ele, como aluno, etc., mas nunca tive muito respeito por ele. Não era um tipo para o qual tivesse grande respeito. Tinha respeito pela arquitetura dele e pela maneira como ele fazia e etc. Mas depois quando comecei a estudar um pouco mais e a conhecer e tal... [GF] - Eu Falei no Viana de Lima, no Távora, no Lixa Filgueiras e, estavas-me a descrever estas personagens. [AM] - Com o Viana de Lima foi uma catástrofe porque houve um acidente de automóvel quando ele vinha do Natal. Passavam sempre o Natal em Paris e, quando vinha de Paris teve um acidente automóvel e o filho Alexandre e a filha Sílvia morreram e foi uma catástrofe. [GF] - A filha do Viana de Lima era a namorada do Alcino Soutinho. [AM] - Sim, creio que sim. Foi uma catástrofe. E o Ramos... [GF] - Nunca recuperou... O Sérgio trabalhava com o Viana de Lima e tomou conta de uns projetos. [AM] - Não, não. O Sérgio trabalhava com ele, trabalhou durante muitos anos com ele. Não, o Carlos Ramos e a malta com quem ele andou a estudar, resolveram convidá-lo para a escola. Enfim, porque estava numa situação lixada e não sei quê e, ele foi para a escola. [GF] - Mas como arquiteto... [AM] - Como arquiteto, vai ver as primeiras obras dele, ainda quando estava a trabalhar em lá em cima a caminho de Viana, como é que se chamava? [GF] - Era de Esposende. [AM] - Esposende. [GF] - O Lixa Filgueiras interessou-se por arquitectura náutica e ganhou uma reputação internacional, era um homem culto. Davas-te com ele? [AM] - Sim, mas isso não tem importância nenhuma. [GF] - E com o Viana de Lima? [AM] - Com o Viana dava-me bem. Eramos vizinhos. Ele vivia no mesmo prédio, que era ali na Costa Cabral, chamado setecentos e cinquenta. Que é um prédio de projeto dele. [GF] - O Prédio da Rua Costa Cabral que tem uma pala na entrada. [AM] - Sim. Vivia lá e ele vivia lá também. Era aluno e dávamo-nos bem, depois deixei de ser aluno e continuamos a dar-nos bem. [GF] - Tu aluno foste viver num prédio desses. [AM] - Eu casei-me. Enquanto aluno, muitas vezes saía diretamente do escritório para ir para as aulas do engenheiro António Cândido às oito da manhã. Trabalhava. / Não tinha alternativa. Sempre à rasca, mas pronto. E a minha mulher mal acabou o curso começou logo a dar aulas, fomos independentes muito rapidamente. Nós casamos eu tinha vinte e três anos. [GF] - Na altura era comum, vocês casavam-se mais cedo. [AM] - Sim, não fomos os únicos. [GF] - Ainda não tinham acabado o curso. [AM] - Estávamos a acabar. Aliás, repara, havia um outro problema. / Provavelmente não tens a consciência dele, que era guerra. Ora, um tipo podia ter adiamentos da incorporação se acabasse o curso até aos vinte e sete anos. Se tivesse garantias que acabava até aos vinte e sete anos. Se eu, por exemplo, estivesse já com vinte e cinco anos no 2º ano, já estava lixado, porque no ano seguinte já era incorporado. Mas se eu estava como estava com vinte e três anos no 5º ano ou no 6º an, tinha perfeitamente hipóteses. E o que eu fiz foi, o 6º ano fi-lo em praticamente três anos. Fiz duas ou três cadeiras, e quando cheguei aos vinte e sete anos alinhei e marchei. [GF] - Foste para a tropa? [AM] - Para a tropa. [GF] - Foste para Angola, como o Correia Fernandes. [AM] - Fui, para Angola. / Fui substituir o Correia Fernandes em Luanda, em Angola. Ele era dois anos mais velho do que eu, portanto bate certinho, ele a acabar a comissão e eu a começar a minha. [GF] - E as tuas lides do partido são daí de estudante ou são posteriores? [AM] - São posteriores, isso é posterior. Andei sempre ligado a marchadelas e não sei quê. Até porque naquela altura... [GF] - Era perigoso. [AM] - Não. Não era por isso. Aquilo era muito confuso. [GF] - A esquerda? [AM] - Sim, a esquerda, assim chamada. Era muito complicado, porra. [GF] - Então, antes de irmos por aí, as personagens. Ainda falavas de uma... Depois ainda falta o Távora. [AM] - O Viana de Lima, como professor era mau. A qualidade das obras dele era excelente, mas como dizia um professor na altura: “Sim, sim, sempre com o Corbusier debaixo do braço”. E realmente era aquilo, era sempre com Le Corbusier debaixo do braço. Mas era claro que era bom e era um tipo que fazia bem aquelas coisas e fazia-as muito bem. [GF] - E ele era o representante da revista francesa cá, da L'Architecture d'Aujourd'hui. Aparece lá o nome dele, ia aos CIAM. [AM] - Sim, mas o que é que ele escreveu alguma vez? [GF] - Mas dizem que ele desenhava um bocado, embora falasse pouco. [AM] - Ele nem desenhava um bocado, era praticamente nada. [GF] - O Távora desenhava em cima dos vossos desenhos de arquitetura com a caneta de aparos? [AM] - Nunca vi. / Havia quem às vezes fazia isso e não era por mal. / O Loureiro é que puxava da caneta dele e fazia-nos uns esquiços com a caneta dele. O Viana nunca o vi fazer isso. Mas o Viana, como professor era mau, era o gajo que dizia coisas. [GF] - Competências pedagógicas? [AM] - Não. Dizia: “Isto é um ponto. A cozinha do hotel é muito complicada. Tem a parte elétrica, parte a gás, aquela coisa toda e tudo. E está explicado”. E tudo era sempre assim nessa coisa. E aquela coisa toda e tudo, ficou explicado. Está dito. Era assim nas aulas, o gajo é bom nisso. Mas muita malta achava graça e aceitava. / Ele depois, o fim de carreira dele é que foi muito... [GF] - A saída da escola, ainda por Lisboa. [AM] - Ele sai da escola, a seguir ao 25 de abril, com medo que o tratassem mal. / Na realidade foi isso, na realidade eu acho que ninguém o tratou mal. Eu já não estava cá nessa altura, já não estava na escola nessa altura. Antes do 25 de abril estive em Angola, quando vim para cá, em março de 1974, imediatamente antes da revolução e não andei pela escola. Andei uma vez ou outra, numas reuniões que se faziam e não sei quê e tal, mas não andei pela escola. / Não acho que o Viana alguma vez tenha sido maltratado. Havia um outro gajo com quem o Viana se dava muito bem, almoçavam juntos e às vezes eu também almoçava com eles, quando almoçava no solar da Conga na Rua do Bom Jardim, na chegada à praça Dom João I, que era o Duarte Castelo Branco. / O Duarte Castelo Branco era um gajo, na altura chamava-lhe “o Jaguar E”, porque era muito aspeto e não sei quê, mas aquilo não andava grande coisa. [GF] - Estás a falar dum carro do Duarte Castelo Branco? [AM] – Não, o Duarte não tinha nenhum Jaguar Era o imagem de um Jaguar E. [GF] - Não sei se foi ele que traduziu o Zevi, uma coisa que falavam muito e não sei quê, que foi no Primeiro de Janeiro, numas máquinas do jornal que fez assim umas edições? [AM] - Não tenho ideia disso. Disso eu não posso dizer nada, não sei, pode ter sido, mas eu isso não sei. / Sei é que ele virtualmente entrou em pânico. Repara ele tinha tido... [GF] - Que lhe acontecesse alguma coisa? [AM] - Uma atuação política antiga dos 70, porque não era ligada ao sistema. Ele fazia parte da daquela malta que assinou um manifesto. [GF] - A pedir a demissão do Salazar. Os chamados católicos progressistas, etc. [AM] - Que fizeram um e ele alinhou nisso. E quando o Ramos decidiu convidá-lo, ele estava em Lisboa já nessa altura, não estava cá no Porto. Quando o Ramos decidiu convidá-lo para Lisboa (ao que se disse e eu acredito, porque as coisas funcionavam assim), o Ramos entrou… de gorjeta a um gajo... Seria, era dito, ninguém negou. [GF] - Limpar fichas, etc? E histórias das bolas brancas e pretas nos júris. [AM] - Isso era outra coisa. / É o cadastro de um gajo. Um gajo tem que ter o cadastro limpo. E ao que constava, o Ramos... [GF] - Em pessoas que iam parar a professores nas Belas Artes, uma parte não deveriam ter. [AM] - Sim, tinham sempre participado em qualquer coisa, aqui ou ali. Houve uma altura em que, por exemplo, o Alcino Soutinho foi preso. [GF] - O Soutinho foi o único também que foi preso. [AM] - Não. Houve mais gajos. E houve alguns arquitetos que foram presos depois, pela mesma altura, não pela Faculdade ou pela Escola, mas por outras razões. [GF] - Havia um funcionário, nas Belas Artes.… [AM] - Olha, pronto. Acredito que sim, porque havia disso em todo o lado, mas pode ser que sim, pode ser que não, não vale a pena estar a jogar nesta aposta. [GF] - Agora que a PIDE estava à porta, às vezes cá fora estaria. [AM] - E estava no café São Lázaro, iam a pé para a repartição, passavam ali e tomavam café, isso era sabido e não havia qualquer problema. / Agora, o Duarte realmente a seguir ao 25 de abril entrou em pânico e, provavelmente teria sido, acredito, ou teria achado que estava a ser maltratado. Não sei. / E o Viana aliou para o lado dele. E então ele saiu. Não acredito que alguém tenha pedido ou sugerido que saísse, foi ele que saiu. [GF] - Ah, a saída do Viana tem a ver com a saída do Duarte. [AM] - Tem a ver com a saída do Duarte. O Duarte saiu e... / estou como o outro, é simultâneo. Eu sei que é um vício de lógica relativa. Quer dizer, se foi depois de, se é por causa de. Foi simultâneo. O Viana saiu a dizer mal daquela merda, pronto. Sem razão nenhuma para dizer mal. E fez uma coisa realmente... [GF] - Foi ter com o Ministro, foi o Lixa Filgueiras. [AM] - Não, foi realmente. Foi quando chegou à reforma, foi fazer o último ano como professor em Lisboa. Foi ostensivo. / O Filgueiras, por exemplo, que também tinha saído da Faculdade e se calhar não tinha saudades nenhumas da Faculdade, até porque se especializou numa área que tinha muito mais a ver com a Faculdade de Letras. [GF] - Entrou na de Letras e só regressou aqui nos últimos anos. [AM] - Veio acabar a carreira aqui. O Viana não, porra, o Viana foi fazê-lo exatamente à oposição, foi sem necessidade. [GF] - Mas havia essa perceção na altura, de que foi para a oposição e não sei quê? [AM] - Claramente. [GF] - Se um colega teu fosse para Lisboa já era? [AM] - Não, não era isso. Repara, o gajo foi acabar a carreira a Lisboa, onde nunca tinha dado aulas, onde nunca tinha feito nada e não sei quê. Foi ofensivo. E mais ainda, houve um outro problema em que ele foi realmente... Tem a ver comigo diretamente, com o Távora e com o Jorge Gigante. [GF] - O Comissariado para a renovação urbana da área em Ribeira-Barredo, de que numa fase inicial o Gigante... [AM] - Era o comissário do governo e convidou-me para ir para lá, para trabalhar com ele. Eu estava a trabalhar com o Siza nessa altura e, o Gigante, um dia foi lá e convidou-me para ir trabalhar para o Comissariado. Eu estava cheio de entusiasmo com o quadro revolucionário e aquilo era uma coisa espantosa, era um trabalho fantástico. É preciso perceber o que é que era, como era o Barredo, como é que aquilo tinha começado. Tinha começado porque um dia o Távora, contratado pela Câmara do Porto… [GF] - Tinha-se, acho que em final dos anos 60, feito um estudo sobre o Barredo, lá em baixo na Ribeira, não é? [AM] - Chamado Barredo. Sessentas puxados, já a entrar nos setenta, quase. / Sim e aquilo deu porque o Távora, porque... [GF] - Na altura o plano diretor do Auzelle propunha arrasar... [AM] - Pura e simplesmente arrasar aquela merda toda, tudo para o pau do gato. E o Távora consegue virar devagarinho essa hipótese… [GF] - E começa a estudar aquilo em termos da densidade da população, as necessidades da habitação. [AM] - De como era possível perceber um problema fundamental ali. É que havia um excesso inultrapassável de população. Naquela altura a população do Barredo era a mais alta densidade população da Europa. Tinha dois mil habitantes por hectare, números redondos a subir. E era uma enormidade, uma coisa absolutamente catastrófica. [GF] - Porque tinham o emprego próximo. [AM] - Algumas tinham emprego próximo, havia uma coisa que era importante que era as obras, por exemplo da barragem, havia muito pedreiro. [GF] - Nas Barragens no Douro. [AM] - E apanhavam o comboio ou barco, viviam em camaratas enormes no Barredo. As próprias famílias viviam em condições miseráveis e depois aquilo era tudo complicado. Era um estudo sociológico interessantíssimo que o Távora iniciou com gente boa a trabalhar com ele. [GF] - O Barredo foi estudado na Escola por estudantes. [AM] - Foi sim senhor. Não no meu ano. No meu ano nós estivemos em Matosinhos, etc. [GF] - Pois. Depois estudaram Matosinhos, as casas dos pescadores, em Arquitetura Analítica. [AM] - Exatamente. Mas no ano seguinte foi o Barredo, exatamente com o ano do Chico Guedes e uma série de outros (alguns já cá não estão também), que eram muito interessantes. Era uma boa equipa, era muito melhor do que a minha, e trabalharam forte no Barredo, o Ricardo Figueiredo por exemplo. Portanto a Escola e o Barredo estiveram ligados. [GF] - Essas duas experiências, Matosinhos e o Barredo, antecederam o SAAL. [AM] - Não, não. Vamos lá ver. O SAAL… [GF] - Em contacto com as questões sociológicas. [AM] - Sim está bem, está bem. Mas o SAAL, para começar, não foi durante o fascismo, foi depois. Foi depois do 25 de abril. Como é que o SAAL nasceu... / O Comissariado, nasceu ao mesmo tempo. Como é que nasceu? [GF] - Nasceram porque o Nuno Portas era subsecretário de estado da habitação e do urbanismo do primeiro governo. E depois o Alves Costa tinha estado no LNEC. [AM] - Sim, sim. Isso já se conhecia tudo. Já se conheciam todos. Toda a gente se conhecia. [GF] - E o Portas tinha vindo da América do Sul e tinha assistido lá, àquelas movimentações extremamente interessantes que houve nessa altura das comissões de vizinhos. [AM] - Coisas desse género e tal. E chegou cá com a ideia de tentar fazer isso aqui. E foi ele que criou o SAAL e o Comissariado do Barredo. Porquê? [GF] - Porque já conhecia o trabalho do Távora, já tinha visto os trabalhos dos alunos da escola, que andaram lá a fazer levantamentos, etc. [AM] - E achou que o Barredo era uma coisa, como era muito contido, ali muito importante, podia ser uma operação piloto com grande importância. Criou o Comissariado do governo para aqui e convidaram o Jorge Gigante. Também havia outro gajo da câmara que estava lá, também no Comissariado e, o Gigante começou a perceber que ia ter dificuldades com ele, pronto. E eu que tinha vindo da tropa, de Angola e porque tinha fama, creio que era absolutamente injusta, de ser um gajo duro, o Gigante veio ter comigo a dizer: “Precisava de si lá em baixo”. “Pronto, vamos embora”. [GF] - Duro no sentido de alguém que pudesse andar lá misturado com as pessoas. [AM] - Não. Porque havia lá gajos que pura e simplesmente se estavam a meter naquela merda, não estavam a fazer a ponta de um corno. [GF] - Ah no sentido profissional e disciplinar. [AM] - No sentido profissional, para com aquilo. E eu fui. E realmente naqueles… Portanto, não tinha a ver com os clientes, com a classe sociológica nem nada. Não, era com os arquitetos, com a equipa de arquitetos e engenheiros, etc. Aquilo era uma coisa muito complexa pá. Mesmo complexa, porque havia aquilo a que se chamada na altura de caciques locais. [GF] - Os tipos que dominavam a população. [AM] - Havia gajos que emprestavam dinheiro e gajos que sabiam da vida dos outros. Havia as sugas, as subalugas. / Por exemplo, eu fiz dois prédios. Um prédio ainda consegui acabar, na rua da Reboleira. A Rosa Padeira alugava o prédio todo e depois subalugava merdas que nem apartamentos eram. Chegava a cobrar por dez paus por noite um degrau de escada. Aquilo era demais. E essa Rosa Padeira tinha muita força no meio daquilo. Muita gente tinha. Quando começámos a mexer ali e a fazer as expropriações, e a Câmara mudasse ou fizesse alteração! Por exemplo, a legislação da história dos subalugueres, acabou, pura e simplesmente. Se um tipo estava a viver ali, tinha direito a um contrato de arrendamento de onde estava a viver. A Junta de Salvação Nacional dizia que sim e vamos embora para a frente. E foi. Era o quadro revolucionário que vivíamos, tempos gloriosos. / Evidentemente que muito complicado foi a seguir. / Ah! O Gigante cometeu um erro tático grave. Entrou mais ou menos em conflito com o Nuno Portas. Porque o Portas prometeu isto, aquilo e aqueloutro, era tudo para a frente e “vamos embora” e tal. Mas o que toca é que é preciso algum poder para fazer as coisas, e o Portas começa a fazer... E o Gigante foi negociar com o secretário de estado, e passava eu para comissário e o Gigante demitia-se. E nós dissemos: “Epá, você não faça isso. Isso é um disparate medonho, você não imagina”. E ele: “Não, é a única maneira, porque assim não posso”. “Oh pá, se você não pode, ninguém mais vai poder. Você tem prestígio, você é considerado, ninguém lhe vai dizer que não. Agora se você sair está tudo fodido”. [GF] - O que acontecesse seria por causa dele. [AM] - O gajo saiu. O gajo foi levou-me ao secretário de estado, já era do sexto governo, já no ascenso do reacionarismo mais puro. Levou-me ao secretário de estado com a proposta de ser eu o nomeado, etc. / E o secretário de estado no dia seguinte nomeou o José Gomes Fernandes. Que era o gajo da Câmara e que já tinha estado metido. Eu ainda aguentei lá. Fui despromovido, fui não sei quê, mas ainda aguentei uns tempos. Ainda trabalhei enquanto pude e me fartei. Mas, a certa altura, o gajo despediu-me pura e simplesmente. E eu vim-me embora. [GF] - Nós estamos na segunda metade dos anos 70. [AM] - Estamos em 1977. Foi entre 1975 e 1977. [GF] - E o Távora que não falámos atrás, aquando das memórias de estudante. [AM] - O Távora. Dei-me sempre bem com ele. Quer dizer, tínhamos uns conceitos bastante diferentes, mas é muito engraçado isto. Por exemplo, do ponto de vista político ou coisa que valha, sou relativamente próximo do Siza, não do Távora. Mas do ponto de vista de arquitetura sou muito mais próximo do Távora do que do Siza. De longe. E isto é verdade, é um facto. [GF] - Ah. [AM] - É verdade, é um facto. Não tem mal nenhum. / Dou-me muitíssimo bem com o Siza e trabalhei sempre muitíssimo bem com ele. Mas, para mim, o que o Távora tinha relativamente à arquitetura... [GF] - Com o Siza tens coautorias. [AM] - Sim. Sim. Mas isso não interessa. / O entendimento que o Távora fazia da arquitetura, e se calhar também da vida, era para mim muito mais próximo. Para mim era muito mais próximo do que o do Siza. / Por exemplo, para o Siza, aberta e completamente, a arquitetura é tudo, ponto final. Para o Távora, epá, isso é muito complicado. Não, a arquitetura é importante, com certeza, mas há tanta coisa tão mais importante. [GF] - Mas falas da vida e da cultura? [AM] - Da vida, da cultura. / O entender da vida do Távora era muito mais próximo do meu. E a arquitetura dele também. Apesar de algumas coisas eu nunca ter gostado, não me interessa. Mas era mais próximo da minha maneira de lá chegar. E dei-me sempre muito bem, sempre. [GF] - E o Távora era o consultor principal do Comissariado Barredo. [AM] - Portanto, ia lá sempre que a malta precisava. Via os problemas, ajudava a resolver os problemas, fazia as propostas que vinha a fazer. Ele conhecia bem a questão, conhecia bem aquilo. Já há uma data de anos tinha trabalhado lá, não é? E foi um tipo absolutamente essencial. Nós como éramos poucos no comissariado e uma equipa era muito pequena, usamos o sistema de contratar malta que fizesse projetos para lá. Contratámos o Chico Guedes, contratámos o Siza para fazer umas coisas, contratámos o Rolando Torgo; uma data de outros gajos fizeram projetos para lá. Projetos e obras. Alguns deles chegaram a fazer obras, por exemplo o Chico Guedes. [GF] - O Távora não era mais elitista do que o Siza? No sentido de… [AM] - Não, de maneira nenhuma. Ele isso nunca foi. Nunca foi, o Távora. [GF] - O Siza tem um ar tão humilde. O Távora era só da fotografia. [AM] - O Távora era, vamos lá ver, o Távora era aquele género de tipo que estava tão perfeitamente à vontade na casa da Marquesa, como num tasco do mais porco aí da rua da Reboleira. [GF] - E ia. [AM] - Ia claro. Dizia: “Epá, isto não são bolos de bacalhau”, e pronto. Alinhava. / O Távora nesse aspeto era fantástico. Não era elitista. [GF] - Tinha humor também. [AM] - Sempre bem-dispostíssimo. Muito culto, conhecia muito bem tudo da vida. Sabia. / E o Távora era o consultor do Comissariado. E um dia, o Ricardo Figueiredo, que estava a trabalhar comigo no Comissariado, disse-me: “Olha que o Távora vai ser corrido e vai ficar o Viana de Lima”. [GF] - O Távora vai ser substituído no Comissariado pelo Viana de Lima. [AM] - No Comissariado, vai ficar o Viana. Como é que se soube isso, não sei. Mas soube, pronto. / E eu fui falar com o Viana Lima, de caras. Porra, tínhamos sido vizinhos, tinha sido aluno dele! Fui falar com o Viana Lima e disse: “Olhe lá, é verdade que você vai ficar consultor principal do Comissariado Barredo e que o Távora vai ser corrido?” E o Viana de Lima diz: “Eu nunca faria isso, sem antes ter uma conversa muito leal com o Távora e com o Jorge Gigante. Nunca lhes faria isso”. Dois dias depois fez. / Bem. Suponho que foi também a partir daí... Que ele depois decidiu onde ia fazer o fim da carreira. [GF] - Nesse ano já não estaria na escola. [AM] - Já não estava, já teria saído. / A escola na altura está muito complicada, muito esquisita. III. [GF] - Recuando no tempo em que estavas ainda como aluno. Como é que era a posição do Carlos Ramos? Tinham dado o concurso ao Lixa Filgueiras em vez de ao Távora? [AM] - Não foi bem assim. [GF] - Como é que se organizou. Desde os tempos do Carlos Ramos, até tu saíres. Até 1974? Mesmo que não estivesses lá, ias lá de vez em quando. [AM] - Foi uma guerra. No meu 1º ano e no meu 2º ano. Eu, aliás, como aluno, fui vítima dessa guerra. Guerra em que se criaram dois campos. O campo dos intelectuais de esquerda e não sei quê, que eram pró-Filgueiras. O campo dos outros, era pró-Távora. [GF] - Dos outros... Mas associa-se o Távora, de alguma forma ter sido promovido por figuras que estão ligadas à esquerda. O Alexandre Alves Costa e muitas outras pessoas./ Noutro género? [AM] - Muito depois, muito depois. [GF] - Isto é muito antes. [AM] -Não. [GF] - Então, em inícios dos anos 70. [AM] - Sim, estamos a falar de 1962. Há um concurso. [GF] - A esse concurso concorre o Filgueiras, o Távora, e o Zé Carlos Loureiro. [AM] - E foi também concurso o Arnaldo Araújo, que desiste, e não continuou. [GF] - O Arnaldo Araújo esteve em concursos destes. [AM] - Mas os outros três vão à luta. Realmente o que se dizia na altura é que o Távora era o gajo da nobreza, o gajo do Visconde, o gajo do Marquês, o gajo do não sei quê e não sei que mais e tal. / Portanto a figura era o Filgueiras. / Mas isso mudou rapidamente. Porque, a certa altura, se percebeu. Mesmo a malta que. Sei lá, a minha irmã Beatriz, o Alexandre Alves Costa, que eram unha e carne naquela altura. [GF] - A tua irmã Beatriz Madureira e o Alexandre Alves Costa. [AM] - E aquela malta toda, que eram da mesma altura, do mesmo tempo. / A minha irmã era pró-Filgueiras durante uma data de tempo. Depois, mais tarde, virou, pronto. Quando se percebeu que o Filgueiras era porreiro e tal, mas era um gajo mais vazio. E que o Távora de vazio não tinha nada. Isso também conta, não é? / Abre-se a guerra. [GF] - O concurso contribuiu para a divergência. [AM] - Também tem a ver com o concurso, curiosamente. [GF] - Ocorrido em fins de 1962. [AM] - Foi 1962. Curiosamente, teve como resultado que os professores se baldaram completamente para as aulas. Estavam a tratar do concurso. As aulas que se…. Não havia aulas. / E depois houve uma coisa chata. [GF] - O projeto do concurso e dar uma aula. [AM] - Era isto, um programa de cadeiras, era não sei quê, e era um projeto. / O projeto era para ser feito em sala fechada, na escola, no pavilhão de arquitetura. Era ali que era feito, os concorrentes só trabalhavam ali, não levavam papéis para casa, não traziam papéis de casa e não sei quê. Essa era a regra. [GF] - Sozinhos? [AM] - Sozinhos. [GF] - Era a regra de concurso, fazia-se na escola. Como, aliás, o próprio concurso para a obtenção do diploma de arquiteto, CODA. [AM] - Era para ser feito, em princípio, obrigatoriamente pelo próprio e só por esse. / No o CODA Siza, que tem parte escrita, fotografias e não sei, que depois tem peças desenhadas, e por baixo, colaboração de António Madureira, está lá escrito. / O Filgueiras veio ter comigo e disse-me: “Olhe que o senhor em Lisboa não passava”. / O problema é que o Filgueiras não fez o trabalho na sala, e ao que consta, o trabalho foi feito pelo Soutinho. Ao que consta, não estou a dizer que foi. Na altura soube-se. Portanto foi uma coisa um bocadinho... [GF] - Dizem que o Filgueiras foi ajudado pelo Soutinho. [AM] - Mas o Filgueiras insistiu, e o trabalho foi feito fora. / Ora bem, por outro lado percebeu-se que o júri se virava para o lado da Filgueiras. / E então, o Távora, contou isto. E não contou só a mim, portanto contou a mais pessoas, etc. Nas vésperas do juiz se pronunciar, o Távora recebeu o Carlos Ramos em Casa, e o Ramos disse-lhe que ia ser assim e pediu-lhe que não contestasse. [GF] - Ah. [AM] - Explicando que ele estava ali no Porto por causa de uma situação rigorosamente igual. [GF] - Ah. [AM] - Ele tinha concorrido em Lisboa, onde foi ultrapassado pelo Cristino da Silva. / Tinha sido ultrapassado, e o Cristino tinha feito também o trabalho em Paris, e o Carlos Ramos contestou. E ao Salazar? Disse: “Mandem-me embora, olha, e mandem-me para o Porto”. E veio para o Porto. [GF] - Dizem que foi o Salazar que o mandou de lá para cá? [AM] - De lá para cá. [GF] - Mas dava-lhe jeito, porque dizem que tinha alguém em Vila Nova de Gaia. [AM] -. Não, isso teria sido depois. / E o Távora engoliu. Mas o que é que acontece? A partir daí o Filgueiras deixou de falar com o Távora. Zangou-se com o Távora. Por duas vezes, o Távora estendeu a mão e ficou com a mão pendurada, porque o gajo não respondeu. / Portanto, havia uma guerra clara. E foi a partir daí que se começou a perceber que o Távora se calhar tinha características que a malta dita de esquerda, os intelectuais e não sei quê, ainda não tinham visto. E ele começou a ser uma coisa importantíssima. [GF] - Ou seja, perdeu o concurso, mas começou a ter maior respeito pelos alunos. [AM] - Exatamente. Até porque o Távora foi impecável, não abriu a boca. Só falou nessa história do Carlos Ramos muito depois desse ter morrido e do Filgueiras ter morrido. / O Távora tinha uma dignidade pessoal espantosa, não é? [GF] - Um desvio. Não sei se me permites falar da tua irmã. [AM] - Sim. [GF] - A professora Beatriz Madureira esteve no curso no início dos anos 60. [AM] - Ele é quatro anos mais velha do que eu, portanto em 1961/62, estaria no 4º ano. [GF] - E depois trabalhou com o Siza. [AM] - Ela trabalhou com o Siza. / Foi ela que começou. [GF] - Ela e o Alexandre trabalharam no escritório do Siza. [AM] - E depois decidiram ambos, quando acabaram o curso em 1964, ir fazer o estágio a Lisboa. [GF] - A professora Beatriz Madureira e o Alexandre Alves Costa foram para o Laboratório de Engenharia Civil. [AM] - À proposta do Nuno Portas. / E nessa altura saiu do escritório. Eu estava em crise, porque tinha estado a trabalhar com um gajo absolutamente insuportável. Nós jantávamos em casa, e ao jantar eu disse: “Epá com esse filho da puta nunca mais trabalho no atelier”. E a Beatriz disse: “Olha, o Siza vai ficar sem 2 gajos e anda à procura de um tipo para passar a tinta, não queres ir lá?”. E eu fui. Pronto, e fiquei. Foi só por isso, porque ela e o Alexandre saíram e o Siza ia ficar sozinho. Tinha muito pouco trabalho na altura. [GF] - Mas já era? [AM] - Não, mas já se sabia que ia ser. Quem tinha olhos já tinha percebido que ia ser. Por aquela personalidade, aquela teimosia, aquela capacidade de virar as coisas. [GF] - Então, em 1964/65 substituíste-os no atelier do Siza. [AM] - Sim eles em 1964 já estavam Lisboa. / E depois veio fazer o relatório de estágio cá. Foi maltratada como o caraças pelo Loureiro, principalmente pelo Loureiro, foi muito maltratada. [GF] - Eu vinha no carro, quando vinha ter contigo, e vinha-me a lembrar-me do meu 1º ano, mas com carinho da professora Beatriz. Algumas pessoas diziam: “A mazinha”, e que era, era que ela realmente não suportava incompetência e pessoas que não tinham paixão pela arquitetura. Ela não suportava. [AM] - Sim. [GF] - E eu lembro-me que eu era aluno no 1º ano, vinha de fora, epá, e ela olhava para mim. Havia um terror em pessoas. Mas eu ia normalmente e ela olhava-me meigo. E depois no fim do ano lá me explicou que, a gente tivera que escrever qualquer coisa logo no início do ano que ela lera e disse-me: “Olhe, o que você escreveu no início, percebi que era um gajo que interessa”, e parecia um colega. Eu vivia com um irmão mais velho que já estudava arquitetura, pelo que se calhar usava algum vocabulário ou qualquer coisa em que ela conseguia ler naturalmente. [AM] - Era pela coordenação de ideias. Normalmente era por aí que se notava, por exemplo, a de juntar ideias e dispor ideias. [GF] - E ela comigo tinha um olhar, algo maternal, olhava-me nos olhos, com um sorriso especial. Mas obviamente assistia a coisas dela incríveis. Mas o que eu acho é que não suportava realmente quando alguém não tinha paixão, não estava a fazer as coisas com paixão. / A biblioteca dela ficou toda para a Faculdade. [AM] - Ficou, está lá. [GF] - Nesse meu primeiro ela era assistente do Távora? / Lembro que naquela altura, portanto início dos anos 90, a proposta dela foi trabalhar sobre o Frank Gehry. Portanto, uma coisa que ainda hoje me dá... Porque o Siza o devia ter conhecido naquela altura, estava-se a começar a falar dele em Portugal. Acho piada também a isso. Em 1993. [AM] - Eu estive com o Siza na Califórnia no atelier do Gehry. Um pouco mais tarde. [GF] - E havia uma viagem qualquer que tinha havido, quanto era assistente do Távora. [AM] - Era com a disciplina de… [GF] - Deve ter sido anos antes. Aquelas aulas que toda a gente fala, as aulas magistrais dele, algumas baseando-se em viagens. [AM] - Sim, sim. [GF] - Algures então deu a última aula. Ela deve ter acompanhado isso tudo, ao trabalhar com ele. [AM] - Foi também uma das razões porque lhe fizeram uma guerra do caraças na escola. [GF] - Então? Ela trabalhou com o Siza e foi assistente do Távora. Ela era das únicas mulheres a mencionar o curso de arquitetura e então fazia umas piadas. [AM] - Eram poucas a frequentar. Não era a única, mas eram poucas. Havia algumas, a Anni pouco depois dela. [GF] - A Anni Gunther? [AM] - A Anni Gunther e houve mais. [GF] - Depois mais tarde, houve um concurso deles, e eu lembro-me que estavam todos os professores do 1.º ano. Falara-se muito. / E era o Matos Ferreira. [AM] - Ela vivia com o Matos Ferreira, nessa altura. [GF] - Acho que era no Baião, o projeto era assim muito Rossiano, com umas portinhas e janelinhas. [AM] - Não. Esse Baião é um lar de terceira idade, ou coisa que o valha. [GF] - Não? É um concurso. Trouxeram folhas e a gente olhava para os desenhos e admirava aquilo tudo bem passadinho a preto. Eles contavam que se tinham fechado todos, feito não sei quantas diretas para fazer aquilo. Criou-nos um fascínio imaginar não sei quantos professores fechados a passar a tinta, não é? [AM] - Não tenho ideia nem sei o que é. O Alfredo nem publicou, nem sequer meteu isso no livro de memórias dele. [GF] - A publicação do Matos Ferreira foi assegurada pelo Manuel Mendes. [AM] - Sim. [GF] - Ela fazia parte do grupo, um bocadito mais à frente, do Alves Costa e outras pessoas. [AM] - Sim. [GF] - No início estava mais próximos do Lixa Filgueiras e depois é que deixaram para o Távora. [AM] - Foi derivada completamente. [GF] - O Távora foi arrumado após o concurso de 1962. [AM] - Quando entrei, o Távora nessa altura estava arrumado para o lado porque estava a fazer o concurso. Portanto, no meu 1º ano e parte do 2º, o Távora virtualmente não contactava connosco. Dava umas aulas de Teoria e História da Arquitetura. / Era interessante a falar, era bom, era porreiro. Mas claramente estava com o pé levantado, porque estava mais preocupado com o concurso. [GF] - Aliás aconteceu com todos os professores. Mesmo os de pintura. [AM] - Que concorreram também e por durante uma data de tempo não fizeram tudo, não deram aulas. [GF] - Acho que mais tarde vocês fizeram a contestação à reforma de 1957. [AM] - Isso já foi muito mais tarde, já foi em cima da viragem da década. [GF] - Tu já tinhas saído. [AM] - Já tinha saído, mas andava por lá. Porque repara, só aos 27, em 1970, fui para a tropa. Portanto ainda andei ali a fazer uma cadeirita ou outra, naquela altura. E em 1970 é que fui para a tropa. Portanto, até 1970 ainda fiz uma cadeira. A última que fiz foi urbanismo, que se chamava Urbanologia. Exatamente. [GF] - Urbanologia com o Duarte Castelo Branco e com o Gigante. [AM] - Estava bêbado como... quando fui fazer o exame. / Sim, porque estava cheio de febre. E negociei com eles uma coisa que era… Que era, fiz a escrita, e fui fazer a oral imediatamente a seguir. Porque eu sabia que ia ter uma gripe e ia para casa. E pedi-lhes: “Epá...”. E eles: “Epá, isso não pode ser, tem que ser depois de 24 horas”. “Epá, porra, publiquem o resultado daqui para 24 horas, mas deixem, para acabar esta merda”. Negociei isso com eles. E fui almoçar ao Aleixo, que era ao pé da estação Campanhã: “Não tem aquela ardente boa, para as constipações?”, “Tenho sim senhor”. E fui para a oral completamente com a tosga. / Mas desenrasquei-me naquelas coisas todas. Nem dei por nada. Vim-me embora, fui para casa que me estava a doer. Foi a última disciplina que fiz, foi a minha curva de glória, foi um oral grosso. Foi porreiro. [GF] - Fizeste o curso em 8 anos. Começas-te em 1962 e acabaste em 1970. [AM] - Foi. Eu ainda andei, 1969 e 1970. Eu acabei em 1970. Eu creio que foram mesmo 9 anos. Eu estive no 6º ano três vezes, com o adiamento da tropa. [GF] - E depois andavas por ali, e participavas às vezes em algumas reuniões. [AM] - Sim. Sim, aquele entusiasmo todo. [GF] - A coisa das Bases gerais e do SAAL. [AM] - Isso é posterior. Isso das Bases gerais é posterior. Isso é 1976. [GF] - Isso já não é contigo, mas sabias do que se passava./ O Siza andava lá, tu ouvias no escritório. [AM] - No escritório, o Siza, sim. / Mas isso não era comigo. Nessa altura ainda estava entusiasmado com o Comissariado do Barredo e, portanto, não tinha tempo para me dispersar noutras coisas. IV. [GF] - Quando é que, depois, vieste para a escola? Quando começaste a ensinar na escola? [AM] - Creio que foi em 1979, acho eu. Não garanto. [GF] - Vieste quando se estava a iniciar a Comissão Instaladora. [AM] - Não. Foi quando começou a guerra da Comissão Instaladora. Aparece uma Comissão Instaladora. [GF] - Começa em 1979. [AM] - Uma Comissão Instaladora. Que era um professor das Letras, um professor de Engenharia, um professor de não sei quê. Tudo malta da Universidade, tudo universitários e nós não tínhamos ninguém. / E nós batemos o pé e dissemos que não podia ser. Tão simples como isso, pronto. Abriu-se ali uma guerra. O governo que já era abertamente de direita, também não tinha tomates para resolver o problema. [GF] - Mandaram um gajo negociador do governo. [AM] - Que eu tinha conhecido na tropa, que também não tinha capacidade para dar um berro. E os gajos acabaram por ceder, e criou-se uma Comissão Instaladora. Que tinha colocado o Domingos e o Alexandre. [GF] - E uma pessoa de outra Faculdade (não sei se era de história?). [AM] - Houve. / Não sei se era um engenheiro. Se era um engenheiro, era o Joaquim Sampaio. Eu não tenho a certeza. / Ou se era das Letras. [GF] - O Domingos contou-me a história. Era de Letras ou de Engenharia. [AM] - O Joaquim Sampaio andou bastante connosco, com a Faculdade. / Falava-se muito com ele e ele falava connosco. Era um tipo muito interessante e era professor da Faculdade de Engenharia. Era um gajo bestial. / O outro já não sei quem era o gajo. Esqueci-me do nome do gajo. Até suponho que foi um gajo que depois morreu no Brasil afogado para salvar um filho, ou coisa que o valha, uma coisa dramática. Como é que o gajo se chamava? Se bem que era isso, que era das Letras, da História. / Isso foi. / Eu entrei para a Construção. Sim. [GF] - Estiveste na escola com o Gigante pai. [AM] - Sim, estive, com certeza. Aliás nós éramos como unha e carne. / Ele também tinha Construção, mas eram turmas separadas. [GF] - O Siza estava? [AM] - O Siza tinha saído e estava a entrar, ou tinha saído e entrado. O Siza estava lá também. [GF] - Ele inicialmente deu aulas de Construção. Não sei até que ano. Mas tu não deste aulas de Construção com ele. [AM] - Não. [GF] - Passando para a década de oitenta, a instalação da Faculdade vai até 1984. Quem era e foi sendo os professores de Construção? Como é que foi assim o ensino da Construção? [AM] - Deu uma volta grande. Porque, na realidade, a disciplina até então não tinha prestígio. [GF] - Dizem que não tinha prestígio, ganhou com o Siza, o Gigante e o Soutinho. [AM] - Não, e o prestígio ganhou-o com o Siza, com o Soutinho e com o Gigante. / Quando eu entrei a cama já estava feita. [GF] - O ensino sempre foi baseado em Projeto. Naquela altura, anos 70/80, o peso da Construção era maior? [AM] - Não. Era muito pouco, não pesava nada. Isso começou a ser depois. / Ninguém pensava nisso. Ninguém se preocupava com isso. Isso foi uma conquista que foi andando devagarinho. Mas foi andando, sempre na perspetiva de que a Construção era uma parte essencial do Projeto. Essa é que era a perspetiva, a Construção não era necessariamente uma disciplina autónoma e separada. [GF] - Trabalhava sobre Projeto diretamente. [AM] - E mesmo a pedagogia. [GF] - Na tua altura já não. Para o fim até tinhas a entregar no fim da aula folhas em A4. [AM] - Não, isso é outra coisa, calma. Isso é diferente. Já vamos falar nisso. [GF] - No outro dia falava com as pessoas que dão construção agora, colegas mais novos, que se calhar vão retomar isso. E alguém comentava que era abismal, como é que tu conseguias fazer isso sozinho. [AM] - Não, mas isso não é muito bem analisado. Porque eu sempre dei aquilo agarrado ao Projeto. O problema era o seguinte, estávamos a falar do 3º ano. O 3º ano tinha um projeto pesado, que era normalmente de habitação coletiva, com problemas complicados, etc. E não fazia sentido nenhum, na minha perspetiva, começar logo com questões que tinham a ver com a Construção. Era muito mais importante tratar de questões iniciais de projeto, questões como a implantação, a rede viária à volta, as volumetrias, e coisas desse género. Tinham que começar por aí. [GF] - Ah. [AM] - Em Construção já, calma lá. / Por isso é que normalmente eu no primeiro período, o que fazia, era uma série de exercícios rápidos. Em que as questões tinham a ver com a terminologia da construção e com os materiais de construção tradicionais. Porque, na altura, já se começava a falar de coisas completamente não tradicionais, mas não havia experiência nenhuma. [GF] - Ah. [AM] - Nos anos 80 ainda não havia muitas caixilharias pré-fabricadas. / Praticamente nada ainda. Uma grande parte dos prédios dos anos 80, andas a passear e vê-se. [GF] - Deve ter sido nos anos 80, os PVC’s. [AM] - Até fiz um projeto com o Siza, em que os gajos pediram para fazer as caixilharias em PVC. E nós escolhemos um desenho de umas caixilharias de PVC que eram muito facilmente transformadas em caixilharias de madeira. Porque os gajos do PVC faliram todos antes de começar a obra, e então foi tudo em madeira. E lá ficou, pronto. Esse entusiasmo pelos chamados novos materiais, nunca houve muito. Porque eu tinha um pouco o conceito de que conhecendo a história... [GF] - E conhecendo o quê, como, e porque é que se fazia, então podíamos ir avançar para outros materiais e para outros sistemas e outras técnicas. Desde que soubessem o que precisavam que fosse feito. [AM] - E, portanto, não estava muito preocupado. / Aliás, naquela altura repara... [GF] - Caixilharias em alumínio era um crime. [AM] - Não é? Era para os parolos e para as casas de emigrante, não é? Depois, a malta começou a fazer caixilharias de alumínio e foi um escândalo. [GF] - E isolamentos térmicos é mais tarde. [AM] - O problema dos isolamentos térmicos nasceu, essa consciência. Nasceu em 1973/74. [GF] - Nasceu com a grande crise energética e do petróleo. [AM] - Principalmente em países com um clima parecido connosco, como a França, em que se percebeu... Isso não aconteceu na Alemanha, na Noruega, na Finlândia e não sei quê. Porque eles, por necessidade óbvia, tinham construções fortemente isoladas. Paredes muito grossas ou coisas não sei quê, e evoluíram muito no estudo dos isolamentos nos países nórdicos, etc. Por exemplo, os ingleses, mantêm a utilização de paredes duplas de tijolo e não sei quê, maciços não sei quê. Mas com os franceses, e com os espanhóis, e não sei quê, esse problema tornou-se muito grave. Porque se percebeu que as perdas de calor dentro de casa eram infernais. Numa primeira fase, na televisão anunciavam-se bandas de Tesamol para isolar as frinchas das caixilharias para o ar quente não fugir, coisas dessas. / E então, o que é que acontece? [GF] - Começou a pensar-se que era importante reduzir o gasto, porque era caríssimo. [AM] - O aquecimento era caríssimo porque o petróleo disparou, portanto, a eletricidade disparou, e era importante reduzir os níveis de aquecimento e as despesas. [GF] - E então foi em França que começou a guerra do isolamento das paredes. [AM] - E a maneira mais fácil e mais direta de o fazer era isolar as paredes, ou com materiais isolantes por dentro. E depois de começarem, em dois ou três anos, aperceberam-se de que era uma catástrofe. Que as paredes partiram todas. As paredes aqueciam, estavam isoladas, não podiam irradiar o calor para dentro, portanto aqueciam mais e mais. Chega-se à conclusão de que uma parede branca ao sol chegava aos 60 graus ou coisa que o valha, facilmente. Não dava para ferver água, mas dava para um gajo pôr a mão e estar quente. E queimavam. [GF] - E então houve um cérebro qualquer que descobriu que o melhor era fazer os isolamentos todos por fora. [AM] - E então começou-se a fazer assim. Cá no Porto isso começou na Faculdade de Engenharia com o Vítor Abrantes. [GF] - O Vítor Abrantes foi depois também professor. De Estruturas era o Póvoas. Era de Redes e Instalações. [AM] - Isso! [GF] - Pois é. O Vítor Abrantes é que era a grande figura dos isolamentos térmicos. [AM] - Não só participou fortemente na legislação correspondente, como tinha o gabinete fortemente a ensinar a malta. Que funcionam muito bem. [GF] - Mas antes disso, pá, não havia preocupações nenhumas a esse nível. [AM] - Nenhumas. [GF] - Não havia, não fazia parte dos problemas dos arquitetos. / O ensino, dizes que numa primeira fase, o projeto no 3º ano, a construção entrava muito tarde. Trabalhavas com as terminologias dos problemas, uma referência histórica. / Uma história do século XX, portanto, era o Teles. O Teles, no 2º ano, começava dando a casa do século XIX. [AM] - Sim. [GF] - Dava também já construção moderna, de betão e materiais com que se projetava e construía na altura. [AM] - Sim, sim. / Para mim o importante era tentar que os alunos percebessem as razões porque se faziam as coisas. Porque percebendo isso, era fácil adaptarem-se e funcionar no quadro que tinham. Era fácil, não era difícil, mas acho, tenho a impressão, que funcionava. Dava muito trabalho claro, uma trabalheira louca. [GF] - A ti. Pois. [AM] - Sim. Mas eu também não era manso e trabalhava. Vinha pela rua fora e os gajos a correr atrás de mim para me entregar uma folhinha A4. Trabalhavam que se fartavam também. E eu acho que funcionou. / Depois a ligação do projeto, de construção com o projeto, para mim era essencial. Eu nunca concordei com a… [GF] - Estiveste talvez uns 35 anos a dar construção. [AM] - Foi, com duas… [GF] - E foi sempre essa lógica. Ou consegues enumerar assim fases, no ensino da Construção da Faculdade em geral, ao longo desses 35 anos? Já disseste que ganhou prestígio com determinadas pessoas, antecedentes. E que nos anos 80 já estava... [AM] - Foi quando começou. / Depois também participei um bocado nisso. Quer dizer, a Construção a certa altura passou a ser uma coisa importante. [GF] - Passou a ser entendido como uma disciplina importante. Que colegas é que tu salientas? O Gigante filho depois passou por aqui. [AM] - O Gigante esteve. Eu quase não trabalhei com ele, mas era um tipo muito interessante. Eu gostava do Gigante. [GF] - Do pai diziam que era muito afável, como o filho. O pai não conheci. [AM] - O pai era uma jóia. / Mas eu não me dava bem com o Teles. / Eu não, nunca entrei no esquema da casa do século XIX. [GF] - Mas hoje para a reabilitação... Esta década é o que toda a gente vai fazer. [AM] - Sim. Está bem. / Mas isso para o fim do curso, não é para o princípio do curso. [GF] - Embora através daqueles exercícios históricos também se perceba a lógica. [AM] - Naturalmente. [GF] - Penso que era por isso que ele o fazia. [AM] - Tenho dúvidas. / Depois aquilo cansava muito sabes? / O que é que acontecia? Acontecia que eu, por exemplo, quando tinha aqueles exercícios em folhas A4, tinha o cuidado de fazer os exercícios estarem sempre a mudar. E não repetia muito os exercícios. A casa do século XIX, eu encontrei a mesma casa para aí dez vezes ao longo dos anos. [GF] - Estiveste sempre no 3º ano? [AM] - Não, houve uma altura que estive no 4º ano. Mas nunca mais! [GF] - O Teles esteve no 2º ano, acho que muito tempo. Quem foram os outros colegas que recordas, durante este tempo todo? Não sei se vocês estavam articulados e se falavam uns com os outros, em termos de trabalhos. [AM] - O meu problema é que quando eu estava no 3º ano, só um ano é que eu tive um colega comigo. Foi o Domingos Tavares. De resto eu estive sempre sozinho. [GF] - Agora para o fim eras apoiado por monitores, ou assistentes. [AM] - Tive assistentes. Tive o Eliseu, que era o meu braço direito, e a Aninhas. / Era boa gente, dava-me bem com eles, trabalhavam bem, eram porreiros. Mas de resto... era com eles que discutia, nunca fui discutir com gajos do 4º ano. [GF] - Eu estou aqui a tirar, mas se calhar a Ana e o Eliseu já lá estão há mais de 20 anos. [AM] - Pois estão, há uma porrada de anos. [GF] - E no 4º ano? [AM] - No 4º ano é um bocado complicado. Eu fui uma vez professor de Construção do 4º ano, e mandei dizer que se fossem…, que nunca mais. [GF] - O Lacerda ainda não estava. O Lacerda ainda estava no Projeto. [AM] - O problema do 4º ano é que a disciplina de Construção, pelo menos naquele ano em que eu estive, não tinha importância nenhuma e apoio nenhum. / Sistematicamente, faziam o seguinte. Eu tinha aulas de Construção à sexta-feira à tarde. Isso desde logo é suicídio, não é? Mas pronto, à sexta-feira à tarde. E, sistematicamente, os meus colegas de Projeto marcavam visitas de estudo à sexta-feira. Eu tinha as aulas praticamente vazias, sistematicamente. [GF] - Na altura em que estudei no 4º ano, acho que tínhamos já muita preocupação com Construção. [AM] - Talvez na tua altura. [GF] - Aliás, tive a preocupação de ir para o mundo das coisas e aproveitar. [AM] - Mas não. Este ano que experimentei foi terrível, e eu não quis. “Não quero mais 4º ano, não dá”. / Eu já não me consigo lembrar, ao longo desses 35 anos quem eram os professores de construção do 4º ano, por acaso não me consigo lembrar. [GF] - A Clara Vale, deve ter entrado pela altura do Eliseu. [AM] - Não, a Clara Vale entrou antes do Eliseu. É mais velha do que o Eliseu, e foi lá metida pelo Vítor Abrantes. [GF] - Penso que fez estudos na Faculdade de Engenharia. [AM] - Fez uma coisa qualquer na Faculdade de Engenharia, não sei se uma disciplina ou duas disciplinas, e não sei quê. E o Vítor Abrantes achou que ela era bem para ali e entrou para ali. / Mas de resto não era muito mais gente. O Gigante esteve também no 4º ano, uma vez ou duas, não sei. / Fundamentalmente era a Clara. [GF] - Outras das pessoas mais novas. O Valentim, também foi a engenharia fazer estudos, que até decorrem na legislação que estão a fazer para reabilitação. / É interessante essas pessoas também fazerem essa relação com a engenharia. [AM] - Olha, vamos lá ver. Porque nós nunca tivemos um laboratório, não temos hipótese nenhuma de quantificar o que quer que seja dos fenómenos que tratamos. E é por isso que neste momento, qualquer engenheiro, sabe mais que nós. Aliás, qualquer construtor civil sabe mais que nós. Mas qualquer engenheiro chega ao poder, mesmo em áreas específicas da Arquitectura. / Vai ver quantos arquitetos é que estão no poder, e quantos engenheiros é que estão ou estiveram. [GF] - Tu estiveste ligado ao CEFA, sítio onde se fazia projetos ali na Faculdade? Falámos aqui do ensino da Construção. / Uma instituição não se faz de direções, mas... / Tal permite uma periodização. Falámos já num período do Távora. / Depois referiste-te ao período desde a instalação de 1984, em que já estavas na Faculdade. Passados anos e as instalações prosseguiram durante o período de direção do Alexandre Alves Costa. [AM] - Sim. [GF] - Portanto o período desde 1984 até aos anos 80/90. Problemas, personalidades, personagens novas, etc. [AM] - Lembro-me, por exemplo houve um ano em que, creio que por sair o Zé Grade, o Conselho Diretivo ficou com uma peça a menos. E o Alexandre e o resto do Conselho, convidaram-me para alinhar com eles, nesse ano em que ia faltar, no Conselho Diretivo. E eu entrei. [GF] - Pensei que tinha estado só como vice-presidente, depois do Domingos Tavares mais tarde. [AM] - Não. Eu entrei e estive nesse Concelho. E creio que... [GF] - Como Vogal. [AM] - Sim, era no lugar do Zé Grade. Creio que nas eleições seguintes, ainda há alguém... Mas depois, mais tarde entrei como... [GF] - E o Sérgio Fernandez também fazia parte. [AM] - Sim, o Sérgio fazia. [GF] - Era mais quem? [AM] - Creio que o Manuel Botelho também era. Não tenho a certeza. Penso que o Manuel Botelho fez parte também de um ou dois Conselhos comigo. Não sei se foi nesse. Eram os alunos também, professores, e havia um funcionário também. [GF] - Quem eram? [AM] - Já não me lembro. [GF] - Isso já era depois da Comissão Instaladora. Portanto, já estava a fazer aqui o edifício. Já estava tudo estabilizado. [AM] - Sim, sim. Já estava completamente estabilizado o poder lá. Não havia problemas, estava tudo. [GF] - Ainda havia aulas nas Belas Artes do 1º ano, ou já não? [AM] - Sim, há 25 anos, houve um 1º ou 2º ano nas Belas Artes. Está agora (um regente), a tentar regimentar, fazer churrasco na Faculdade em julho. Comemorativo dos 25 anos. [GF] - Sim. Enquanto os pavilhões não estiveram todos prontos, havia um problema complicado de gestão do espaço. [AM] - Era, chegámos a ter aulas, por exemplo... [GF] - Na Casa da Cultura. [AM] - Ali em baixo. / Eu ainda dei aulas nas Belas Artes, isso com certeza, antes do edifício estar pronto. Foi em 1985 que vim aqui para a Faculdade, com o 5º ano. Salvo erro, o 5º ano, daquela malta. [GF] - Que era o João Pedro Xavier, o Lacerda, etc., como alunos. [AM] - Como alunos, exatamente. [GF] - As aulas eram na Casa cor-de-rosa./ As de construção também? [AM] - Tudo, e foi um ano muito interessante. [GF] - Mais para a frente também houve o pólo de Viseu, que constituiu uma experiência própria. [AM] - Bastante mais para a frente. O pólo de Viseu foi também uma experiência porreira, e muito interessante. [GF] - Mas estiveste lá? [AM] - Estive lá. Estive lá 3 anos. [GF] - O António Quadros vivia lá em Viseu. [AM] - Lá perto. E o Quadros tinha feito uma experiência aqui, que esta rapaziada que foi estudante há 25 anos está constantemente a lembrar. Tinha feito uma coisa absolutamente fantástica, que foi convencer os colegas todos a dar-lhe uma semana limpinha para ele, e pôs os alunos... [GF] - Fez uma semana a desenhar. [AM] - Os gajos ficaram completamente desvairados, loucos. Ainda agora falam disso. [GF] - Foi nas Belas Artes, que até bodypainting fizeram. [AM] - Era nas Belas Artes. As aulas eram nas Belas Artes. / E, depois, ele fez isso também em Viseu. Não foi fácil convencer os colegas. Eu que estava lá, fiz guerra logo a favor dele. Mas foi um bocado complicado convencer os colegas a dar-lhe uma semana. Era tão importante aquela semana como não sei quê... / E Quadros fez maravilhas, fazia maravilhas realmente. Era um professor fantástico. / E vê-se ainda pelas reações que os alunos fazem, quando se lembram dessas aventuras. Em Viseu foi fantástico também. Também era com ele. / E com o Sérgio Fernandez, que também estava em Viseu, também ia lá dar aulas. Eu dava aulas aqui e lá. [GF] - Eram só os primeiros anos. [AM] - Eram dois anos, era o 1º e o 2º ano. [GF] - Os docentes seriam meia dúzia de colegas. [AM] - Era muito pouca gente. Era a Beatriz comigo, etc. / Ela estava em história, ou outra coisa qualquer. / Era o Zé Maria Cabral Ferreira, na sociologia, ou lá como isso se chamava. [GF] - “Antropologia do Espaço”. [AM] - Isso. Era a professora de geografia. Coitada... [GF] - A professora Lurdes? [AM] - Sim, a Lurdes. Também não teve sorte nenhuma na casa, enfim. Foi bastante maltratada. / Foi trucidada principalmente pelo gajo de... E ela foi corrida, foi-se embora. [GF] - Foi metido…? [AM] - Claro. [GF] - A gente tem boa memória. O Cabral Ferreira. Era um registo, assim um bocado ao lado, mas criava empatia com as pessoas. [AM] - Era muito inteligente, muito culto e com um senso de humor fantástico. E pronto era o suficiente para ser bem aceite por muito ao lado que fosse. [GF] - Vocês iam de carro todos juntos ou ficavam lá? [AM] - Não. Íamos de carro. Das últimas vezes a ir para Viseu estampei-me e desfiz o carro. Fomos de frente contra um camião. Ele e a Beatriz safaram-se, e eu também me safei. / O carro ficou desfeito, completamente desfeito. Quando o carro veio para o Porto fui lá vê-lo, e tentei sentar-me ao volante e não conseguia entrar, não cabia. Pronto. / O Zé Maria, provavelmente por causa do esticão do cinto de segurança, teve uma síncope respiratória. E eu abanei-o. / Porque eu levantara-me logo, saí do carro, não sei como é que saí, mas consegui sair. Não havia incêndio, não havia problema. Abanei-o e tal, mexi-lhe. / Passado um bocado, estava eu com a máquina fotográfica a fotografar o carro, o camião e aquela merda toda. / Depois, o Zé Maria e a Beatriz vieram para baixo numa ambulância. Foram para o hospital e eu fiquei ainda a tirar fotografias. Entretanto veio a polícia. [GF] - Mas para que é que estavas a tirar fotografias? [AM] - Porque tinha a máquina. [GF] - Queria aproveitar, que a máquina era das boas? (Risos)/ Era para desanuviar da situação. [AM] - Podia ser para slides. (Risos) / Mas não, não era, não deu para nada. / E depois veio a polícia, e tomaram conta da ocorrência, como eles dizem. E a certa altura, eu disse ao bófia: “Você desculpe lá, você tem rádio?”. E ele: “Tenho, tenho”. / E eu: “Não se importa de chamar uma ambulância que eu já estou cheio de dores aqui e não me aguento”. E ele: “Ah, com certeza”. / Então, aí, vem uma ambulância. O gajo da ambulância disse: “Se calhar era melhor irmos para Águeda. Está aqui mais perto da Águeda”. E depois ia o gajo a dizer: “O Sr. Doutor teve sorte sabe, eu naquele sítio já vim buscar sete mortos”. E foi uma boa notícia, “É uma boa notícia toda”. / E então, chego ao hospital de Águeda. E o médico esteve a ver, muito simpático, e disse-me: “Olhe desculpe, mas eu aqui não tenho raio X, não tenho nada. Eu tenho muito respeito por si, mas não posso fazer nada por si”. Só o melhor. [GF] - Mandaram vir um táxi para ir a outro sítio. (Risos) [AM] - “O Senhor chama um táxi e vá para casa, porque no Porto com certeza que é melhor tratado que aqui”. E vim-me embora. / Pronto. E depois fui, falei com meu médico, levou-me para o hospital estivemos a ver. Eu estava todo preto deste lado. Foi uma bordoada do caraças. / E depois, ao fim da tarde, fui à casa dos jesuítas. Ali da Nossa Senhora de Fátima, a ver como estava o Cabral Ferreira. E o gajo dizia: “Ó António!” [GF] - E a tua irmã, foste vê-la quando? (Risos) [AM] - A Beatriz já estava, não tinha nada especial, foi para casa. / E o José Maria disse: “Ó António, olha que nós podíamos estar os dois lá em cima a esta hora!” E eu disse: “Oh caraças, tu entravas e eu estava à porta a meter recursos administrativos e os gajos não me deixavam entrar”. (Risos) / Ele diz: “Não, não. Eu metia uma cunha por ti. Entravas, entravas que eu metia uma cunha por ti”. Era mesmo um gajo porreiro. [GF] - Ele faleceu para aí há anos? [AM] - Cinco anos. Já passou algum tempo. Morreu em Lisboa. / Ele já estava bastante... [GF] - Eu ainda estive com ele ali na Direção Regional uma vez. Para além da Faup ele ainda andou noutras coboiadas. [AM] - Ele era muito porreiro, e tão engraçado. [GF] - Estiveram em Viseu os 3 anos. Coincidiu com a história do incêndio? [AM] - Houve três anos. Eu no primeiro ano não estive. Estive no segundo ano com um 1º ano e o 2º ano de quem tinha lá estado primeiro. E depois ainda estive num segundo ano e acabou. / Acabou não foi por causa do incêndio. / O incêndio foi um argumento. Acabou porque aquilo politicamente não dava prestígio. Não dava nada. [GF] - Foi porque se quis, digamos assim. [AM] - Aquilo foi negociado. Foi negociado pela malta da Faculdade com o Ministro, que era o João Dias Pinheiro, e com o Reitor. [GF] - O reitor e o Távora acharam bem ter um pólo no centro do país. [AM] - O reitor achou bem a ideia de ter um pólo ali. O Távora também pressionou e o Alexandre, etc., e o Quadros também apareceu por lá. / E o presidente da Câmara chamava-se Engrácia Carrilho, e era pai do Manuel Maria Carrilho, que foi Ministro da Cultura. O Engrácia Carrilho, não só era presidente da Câmara, como era mesário da Misericórdia, presidente da mesa da Misericórdia. / E então determinou que a Igreja da Misericórdia, as instalações da sacristia, etc., davam para a Faculdade. E a Câmara participava nas despesas com isto e aquilo. E nós íamos para lá. / Só que o Engrácia Carrilho morreu. E houve uma revolução na Câmara porque o PPD ganhou. E o novo presidente, que ainda anda por aí, acho que agora é deputado no parlamento europeu (é um gajo chamado de Rua), achou que aquilo não tinha interesse nenhum ter ali um curso de arquitetura. E tinha razão. Porque o argumento do Ministro e do Carrilho... [GF] - Pouco depois abriu o curso de Coimbra. [AM] - Depois abriu o de Coimbra. Mas havia outra questão. [GF] - A ideia era trazer a Universidade para o centro do país. [AM] - Para a zona deprimida do centro, que não tem nada. Só que isto não era constitucional. Porque uma Universidade não pode abrir para um grupo, de qualquer natureza. Nem para aqueles alunos, por serem de não sei de onde, verdes ou amarelos. / Tem que abrir e concorrer quem concorrer. Portanto, aquilo praticamente não deu. Isso é da Lei. A Lei é assim e acabou, não havia volta a dar. / E, portanto, o que é que aconteceu é que aquilo não tinha muita malta da região. Tinhas gente de Lisboa, do Porto e que concorria para a Faculdade e conseguiam um lugarzito lá. Portanto, a nova Câmara decidiu cortar a coleta, não valia a pena. E aquilo não avançou. / O incêndio foi um incêndio provocado involuntariamente... A parede era parede meia com o órgão da Igreja da Misericórdia. / As chamas subiram pelos tubos do órgão e aquela merda ardeu. / E eu estava lá. [GF] - Que consequências é que houve? [AM] - Nenhumas, foi tudo... [GF] - Ou seja… não se sabe o que é que aconteceu? [AM] - Não. Mas fumar, pronto, fumava-se nas aulas, portanto. [GF] - Pois, já na minha altura até, se fumava. [AM] - Portanto, não era por aí. / … E eu estive lá com um engenheiro, comandante dos bombeiros de Coimbra. Que é um gajo que ainda durou muitos anos, ainda estive com ele mais vezes noutras coisas. / Que era um tipo muito bom, era militar, era do meu tempo de engenharia militar, e ele é muito bom na análise de incêndios. Eu estive lá com ele, e ele esteve a mostrar exatamente o percurso todo do fogo. Como é que foi. E que ainda por cima se agravou de uma forma absolutamente exponencial quando alguém abriu a porta. Viu o fumo a passar, abriu a porta de repente. Aquilo estava com um ar muito viciado lá dentro, não tinha oxigénio para as chamas. Abriu a porta, entrou o oxigénio e aquela merda saltou toda. Recordo que o engenheiro se chamava Bernardo ao tempo era, suponho o inspector de incêndios de Coimbra Até me explicou tudo, exatamente os pontos todos, tudo marcadinho. Era muito engraçado o gajo. Mas pronto, fez o relatório, e pronto, aquilo caiu. [GF] - Depois voltaste para aqui. O edifício continua a ser construído. [AM] - Sim, aqui já estava pronto. [GF] - Já estava pronto? [AM] - Acho que sim. [GF] - Eu estou a dizer em 1992. E quando comecei o curso em 1993 ainda não se tinha aulas nas torres. [AM] - Pode ser. [GF] - Viste o edifício a crescer. Tu andaste sempre a fotografá-lo. [AM] - Sim, sim. Vi aquilo tudo a crescer. [GF] - Era o Adalberto Dias que acompanhava. [AM] - O Adalberto acompanhava a obra, sim. [GF] - Alguns especialistas dizem que é o edifício mais caro por metro quadrado de ensino em Portugal. [AM] - Não sei. Alguém fez essas contas? Não faço nem tenho ideia. [GF] - Reproduz uma tipologia de ateliers nas torres. As turmas não contactam muito umas com as outras. Tem essa lógica, o espaço da Faculdade. [AM] - Eu lembro-me que a grande crítica que lhe era feita pelo Nuno Portas e outros era por serem vários edifícios. [GF] - Inicialmente até era para dividir os anos. [AM] - Sim. [GF] - O que dificulta o contacto com as pessoas. Ainda que o contato fosse ao nível de baixo, pela galeria e pelo bar. E pelo Pátio. / Na vossa altura de estudantes, contactavam com alunos de outros anos. Quiçá se trabalhavam... [AM] - Mas eramos só 15 gajos. Há uma grande diferença. O meu 1º ano eram 15 gajos, não eram 120 como vês aqui. A vida agora é outra, não é? / Mas a crítica era feita por serem edifícios, em que a relação perímetro exterior-área é fortemente desfavorável. Como o mais caro na construção é o perímetro exterior, ser o mesmo volume, ou sendo muitos volumes, é muito diferente os coeficientes de eficácia. Era a grande crítica que se fazia. [GF] - Depois houve um período, de direção também pelo Manuel Correia Fernandes. [AM] - Houve, é verdade. [GF] - Também se conta a história de que em determinado momento, todos da escola, estavam do mesmo lado do balcão e que depois a partir de determinado momento, começa a haver uma equipa de cada lado do balcão. Essa coisa das carreiras. / A história da Faup do período do Alves Costa e depois do Manuel Correia Fernandes, em que se segue o período em que estás com o Domingos Tavares. / A transformação do ambiente, como disseste, 1º ano que tange a alunos, foi de aumento exponencial. Houve novas instalações. E entre os professores? [AM] - Entre professores. / Vamos lá ver. Enquanto eu estive não houve grandes movimentações ao nível de concursos, promoções ou coisa que o valha. Não houve. Vamos lá ver. Havia poucos doutorados. Evidentemente que só os doutorados é que podiam concorrer ao que quer que fosse. E o caso assim mais era o do Rui Póvoas. Que era professor e rapidamente a seu tempo se tornou catedrático, porque também era o único. [GF] - Ah. [AM] - Depois começou a pressão sobre os doutorandos. Naturalmente que aí começa a haver… [GF] - Antes já tinha havido uma crise. Os concursos e as pessoas todas como o Domingos Tavares, o Ricardo Figueiredo. E o Portas, o Alves Costa, e o Domingos Tavares eram todos catedráticos. [AM] - Muito tarde. / Houve uma coisa. Atenção, para a gente perceber uma coisa. [GF] - A coisa do Jacinto Rodrigues é no final dos anos 80, inícios dos anos 90, não é? [AM] - Pela Lei, os tipos que tinham feito concurso para professor na Escola de Belas Artes passavam para a Universidade como professores. Não tinham, nem precisavam para nada de ter doutoramentos, nem coisa nenhuma. Eram professores. / O que não é uma coisa inédita, porque por exemplo, o engenheiro Edgar Cardoso é professor catedrático do Técnico. Nunca tinha feito doutoramento nenhum, nem fez. / O professor arquiteto e engenheiro cá do Porto, Barbosa de Abreu, tinha concorrido ao Instituto Superior Técnico como professor e foi aprovado. Portanto, passou a ser professor e veio para a Faculdade de Engenharia como professor, sem se doutorar. Não precisava de se doutorar se era professor. / Depois começa a haver pressão sobre os doutoramentos. Se reparares bem, nem o Domingos, nem o Ricardo Figueiredo, nem o Alexandre, nem o Sérgio Fernandez, fizeram doutoramento. [GF] - Nem todos chegaram a catedrático. [AM] - Pode não ter sido catedrático, mas isso também era uma questão de oportunidade, de haver uma vaga ou não haver. / Eu não me apercebi, eu apercebi-me mais de algum mal-estar provocado… / Aí assim, apercebi-me de que havia coisas chatas. A gente não... / [GF] - O Nuno Portas entrou por convite pelo Távora. [AM] - Entra em 1983, estava eu em Macau nessa altura. [GF] - Mas o que estavas a fazer Macau? [AM] - Estive a trabalhar lá com o Távora, o qual fazia o plano da zona central. Vivi lá um ano. [GF] - Interessante, foste a Angola integrado na Guerra, no Barredo, da Sr.ª Maria Padeira, em novo. Tiveste em África e foste à Ásia. [AM] - Olha, no Barredo havia a Rosa Padeira e havia uma outra figura. Uma mulher que era fantástica. Era uma mulher importantíssima na terra, mas essa era simpatiquíssima e não era nada vigarista. Era a que se encarregava dos grandes eventos. Por exemplo, funerais, batizados, casamentos e não sei quê, passava tudo por ela. E um dia houve uma reunião lá na Comissariado do Barredo e chamou-se gente. / Ela apareceu e apresentou-se: “Boa noite, eu sou a Emília Pissuda”. Pronto, ficou. Uma mulher do caraças. [GF] - Falta-nos a referência à entidade do Nuno Portas, em 1983. O Távora estava a fazer o Plano de Urbanização de Guimarães (não havia na altura planos diretores, nem plano de urbanização). Era o Távora e o Alfredo Matos Ferreira. [AM] - O Távora convidou-me para participar com ele no inquérito físico do concelho. E então eu andava com um Land Rover emprestado, pelo Alfredo Matos Ferreira. Fotografei e fiz o inquérito do território todo. Qualidade das construções, propriedade, localização, fotografias, tudo para o Plano de Urbanização. Foi um trabalho grande e foi porreiro. / Trabalhou comigo nesse trabalho a Paula Silva. [GF] - Que mais tarde se tornou esposa do Adalberto Dias, diretora geral, etc. [AM] - … Trabalhou comigo nisso. E depois, a certa altura, com o avanço do Plano de Urbanização, o Távora pensou arranjar uma estratégia diferente para o plano. [GF] - Diferente do que era costume. / O que era costume... Se bem que ainda agora é, é haver um plano geral que define políticas, critérios, as mais diversas coisas. E depois disso estar tudo aprovado, então, fazem-se Planos de Pormenor. [AM] - Em que se passa à realidade física e isso põe aquilo em termos físicos. O Távora disse: “Isto é um disparate. Importante era o Plano de Urbanização já estar acompanhado pelos Planos de Pormenor. Vamos fazer isso”. / A Câmara aceitou, eu fui contratado para fazer o Plano do… [GF] - O Nuno Portas era consultor nisso. [AM] - Não era nada. / Vinha eu fazer um plano, o Pedro Ramalho fazia outro e mais não sei quem fazia outro. / Havia uma série de planos estratégicos para o Plano de Urbanização, que estavam a ser tratados ao mesmo tempo. Portanto, o plano quando fosse aprovado tinha uma sólida base física, que eram os Planos de Pormenor. Bom, não está mal. Bom, entretanto aparece o Nuno Portas, PS está na berra, o Portas aparece no Porto e é consultor de Câmaras. [GF] - Consultor de Gaia, consultor da Trofa, é consultor de Guimarães. [AM] - Então faz uma reunião aberta, com toda a gente e não sei quê, nós estávamos e diz esta coisa lamentável: “Nós estamos a viver na altura de crise, não tem sentido nenhum, numa altura de crise fazerem-se planos. A única coisa que faz sentido numa altura da crise é gerir-se a crise”. / “Portanto vamos acabar com os planos”. [GF] - Não há planos. Não servem para nada porque os planos estão sempre a prever alguma coisa que nós não sabemos o que é. Estamos em crise, portanto não podemos prever nada. [AM] - Fim da linha. [GF] - Mas estávamos em crise, havia uma crise financeira. [AM] - Havia uma crise importante. Porque estávamos em crise sempre, e não deixámos de estar. Ainda não tínhamos entrado... [GF] - Não tínhamos acedido ainda na comunidade europeia? Que foi depois em 1986. [AM] - A coisa foi em 1982/1983. O Nuno Portas tinha estado em Espanha, tinha estado em Paris, tinha estado em não sei quê. E, depois, tentou entrar para a Faculdade de Arquitetura de Lisboa, e os gajos… Depois, ele tentou entrar de novo. / E tentou entrar no Laboratório de Engenharia Civil, e foi a mesma coisa. E o Távora disse: “Queres vir lá para o Porto?” E o gajo agarrou logo. Quando estávamos em Macau, o Távora contou-me isso. E eu disse: “Você vai meter aquele gajo, ele vai torcer e virar tudo do avesso. Todo o trabalhinho que se fez até agora... E o Távora, ingénuo, foi a única vez que eu o vi ingénuo, disse: “Epá. Não vai nada. Este gajo nunca foi capaz de estar muito tempo no mesmo sítio, ele em dois anos vai-se embora”. [GF] - Ele na altura era um popstar, muitos sentiram que era porreiro vir trabalhar connosco, dele ter reputação. [AM] - Pois, a reputação fodeu tudo. Quantas alterações é que ele fez no plano geral do curso de arquitetura? [GF] - Só acompanhei discussões, mas tal, insistentemente sobre o peso de urbanismo relativamente ao Plano de Estudos. [AM] - Pois é, dessem o peso que quisessem! / Como é que ele entra no Científico? Porque ele era professor. [GF] - Foi sempre nesse órgão do Científico que ele esteve. Portanto as pessoas que ele poderia influenciar era no Científico. [AM] - Mas não era só. Ele nunca foi, não era homem de influenciar nos Concelhos. Era homem de influenciar na gente que se movimentava à volta dele… [GF] - O Alves Costa influencia pela sedução? [AM] - O Alves Costa nunca alinhou com o Nuno Portas. Conheciam-se muito bem e tal, mas não alinhavam muito. [GF] - Há bocado falava-se do Filgueiras e do Távora. Depois, durante este período que estamos a falar, não foi o Portas e o Alves Costa? [AM] - Não. O Portas nunca teve. Por exemplo, ao nível dos alunos... A não ser dos alunos, provavelmente, os últimos do fim do concurso, ele nunca teve assim um grande prestígio, não é? Nunca teve. O que tinha era uma capacidade enorme de se movimentar no meio daquela malta e pôr aquela malta a movimentar-se, etc. / Eu lembro-me por exemplo a eleição do Conselho Diretivo do… [GF] - No do Domingos eu estava lá. Terá sido ele que empurrou. [AM] - Eu lembro-me que ele empurrou foi o Manuel Correia Fernandes. [GF] - Como é que se passa para o período do Correia Fernandes? [AM] - Claro, o Manuel Correia Fernandes não tinha um único voto. Porque toda a gente sabia que o Fernandes não fazia… Toda a gente sabia, não fazia... E não se ouviu dele. / Fui eu que substituí. [GF] - Penso ter coincidido a entrada do Portas na Faculdade com o Plano da zona histórica pelo Távora. / Depois daquelas casas dele, entra na fase nova da carreira dele que, se calhar, é das mais interessantes. A dos patrimónios. / E depois, a última fase tem menos interesse projetualmente, fora com exclusão de projetos como em Coimbra, ou a derradeira Casa dos 24. Mas esses, quando ele depois de Aveiro começa a estar muito interessado e preocupado com aquilo de Guimarães, a história então é das coisas de lá. [AM] - Sim, sim. A fase final dele foi muito interessante. / A do meio também gosto. O Távora sempre teve uma característica que eu achei sempre notável. [GF] - Eu referia-me aos anos 80, a meio dos anos 90. [AM] - Isso é mais para diante. Eu estava em anos 60 a 70. [GF] - Ponte de Lima e essas coisas. [AM] - Sim, eu gosto. É muito bom. / E o que fizemos em Macau foi porreiro. Foi um plano mesmo, não fizemos obras. / Eu fiz uma obra lá. Ou pelo menos fiz um projeto e eles fizeram uma obra. Como diria o Alvar Aalto: “O edifício está lá, mas a arquitetura não”. Aquilo tudo... Mas pronto. / Mas o plano era porreiro, e bem feito. / Tanto era que resistiu até agora. Resistiu sempre. [GF] - O centro histórico de Macau ainda é o que fizeram. [AM] - Com muitas notificações, muitas alterações e coisas. Mas ainda é muito o que nós tínhamos. [GF] - Como é que é percepcionas o período da passagem para a direção do Correia Fernandes? [AM] - Não sei. Eu afastei-me um bocado dessas questões. [GF] - Estiveste ali num Conselho Diretivo, a convite, quando o Grade saiu. Depois quando entrou a direção do Manuel Correia Fernandes afastaste-te? [AM] - Não, eu já estava afastado. / Eu saí da direção, dessa coisa toda. / Voltei mais tarde. [GF] - Passado 8 anos. [AM] - E nesses oito anos, eu estive bem, muito obrigado. [GF] - Mas que transformações é que aconteceram na Escola? Começou-se a usar as torres, e... [AM] - Sim. Aquilo começou a encher e a funcionar mesmo. / Houve umas trapalhadas, algumas coisas, mas foi funcionando. / Depois já com o Domingos houve uma jogada que o Domingos fez. / [GF] - Em termos pedagógicos não houve alteração durante estes 8 anos? / Foi sendo gerida? [AM] - Em 1985, também se passou outra coisa. [GF] - Criaram-se três opções para acabar o curso. A renovação de edifícios, arquitetura e planeamento urbano, ou análise do território. / A renovação de edifícios tinha dois professores de Construção que era o Jorge Gigante e tu, e tinha um professor de arquitetura. [AM] - As aulas eram a mesma coisa. Construção, ou Arquitetura, que era o Álvaro Siza. E o nosso curso tinha 8 alunos e os outros somados tinham 7 alunos. 3 a 7 alunos. Portanto havia no total 15 alunos para ali, oito para nós e... [GF] - Em 1985, o ano de acabar o curso eram 15 alunos? [AM] - Foram. [GF] - Na altura já entravam mais, mas no fim do curso eram menos, claro. [AM] - Era o João Pedro Xavier, o Lacerda, etc. Era uma malta porreira, gajos interessantes, trabalhavam que se fartavam. Eram bestiais e esse ano foi muito bom. Eu também estava entusiasmado, estava cheio de gosto, e trabalhei que me fartei com os gajos. Trabalhámos como o caraças, e foi mesmo um ano muita bom. [GF] - Mas o Siza já estava a começar com uma carreira que... [AM] - O gajo vinha muito pouco. Mas o Siza sempre teve uma qualidade característica e espantosa, que os alunos percebiam logo. O gajo chegava, olhava para os trabalhos, e dizia aquilo que era essencial para os gajos ouvirem naquela altura. / Tinha essa característica que eu nunca consegui ter. O Gajo dizia meia dúzia de coisas, mas eram coisas completamente dirigidas ao trabalho da pessoa. “As características neste momento do trabalho são estas, tal, tal e tal”. [GF] - Vinha pouco mas era operativo. [AM] - Era do caraças e nas avaliações, quê. [GF] - Qualquer comentário que ele fazia era acertado. [AM] - Dominava aquilo tudo e com uma limpeza do caraças. Foi muito bom esse ano. Tão bom que no ano seguinte, quando avançam para se inscrever nos cursos, o nosso curso tinha praticamente todos os gajos e os outros que eram resíduos, virtualmente resíduos. [GF] - Por um primeiro ano ter corrido muito bem. [AM] - Porque ficou bom. E porque era o Siza, porque era o Gigante e não sei quê. Ora bem, sendo assim, o Portas alterou o esquema. E então passa ele a ser o professor das três opções, o Siza vai corrido para dar aulas de Teoria de Arquitetura não sei onde. Eu passo a ser assistente do Portas na renovação de edifícios, o Gigante também muda para não sei quê... E o resto muda tudo e o gajo fode completamente o curso. [GF] - Ele percebeu que aquilo funcionava bem no 5º ano. [AM] - No quinto. [GF] - Fica ele a dominar o 5º ano, as três vertentes. [AM] - Mas espera aí. [GF] - Mas isso tem a ver com a saída do Siza? [AM] - O Nuno Portas, … o Siza… / Tinha-lhe um pó. [GF] - Nessa altura? [AM] - Atravessou várias frases. Nessa altura com certeza, já tinha tido antes, depois. Sempre teve uma dor… terrível. / E então, o que acontece, é que a guerra ia ser comigo. / Esta guerra ia ser comigo e eu fiquei lixado. Porque realmente era estragar o que estava feito e o que íamos fazer. / Mas aí a escola toda alinhou. O Domingos alinhou, toda a gente achou bem, pronto vamos mudar isto. E eu dizia: “Espera aí, mas vocês vão mudar isto porquê?”, e eles: “Para ficar melhor, pá, para ficar melhor”. E eu: “Mas porra, que garantias é que temos que vai ficar melhor?”, “Vai ficar melhor, já se ensaiou, viu-se o que tinha que ser diferente”. / Bom não valia a pena discutir. E então eu fiquei à espera. / Uma noite toca o telefone, era o Portas: “Olha pá, tu não tens aparecido na Faculdade”. E eu disse: “Olha pá, também ninguém me tem chamado”. “Estás a brincar pá? É preciso preparares o ano, para começarmos o ano. Tens que preparar isso”. E eu: “O quê? Nem pensar. O professor é que tem que preparar o ano e o assistente assiste. Pronto, isto é clássico, é o que está no estatuto da carreira docente, pá. Convém ler essas coisas e conhecemos a lei”. E ele: “Epá, isso que estás a fazer é gravíssimo, isso é uma indisciplina, isto tem que ser discutido, e tal”. Bom, e marca uma reunião, presidida pelo Távora, provavelmente por ser Conselho Científico ou coisa que o valha. [GF] - Seria o diretor do Científico ainda, o Távora, se calhar. [AM] - Mais uma data de cabeçudos. E ponho a questão: “Pá, não pode ser assim”. / E ele: “Porque o Madureira recusa-se a fazer o que lhe compete porque não sei quê”. E eu disse-lhe: “Desculpe, não é assim. O Madureira fará rigorosamente o que lhe compete. O estatuto da carreira docente diz exatamente quais são as funções do assistente e são essas que eu vou ter. Tu és o professor”. E ele: “Não, não, mas eu faço uma coordenação suave”. Eu disse: “Epá, não vamos pôr adjetivos nesta jornada. És o professor da cadeira, tu é que preparas a cadeira”. E estivemos ali. / E o Távora disse: “Bem, epá, estamos numa situação… e não sei como é que isto vai ser, como é que se pode resolver isto”. / E eu fiquei à espera. A certa altura, abre-se a porta e entra o Nuno Tasso de Sousa, que era professor de arquitetura, com o Matos Ferreira, nessas opções. Vinha fodido porque tinham-no posto a dar aulas nas Belas Artes. Ora ele tinha acabado de ter escritório aqui perto, e era porreiro ter aulas aqui. “O escritório aqui e agora vou-me por do outro lado da cidade?” Berrou que se fez uma cena do caraças. E eu tive um lampejo e disse: “Ó Nuno, espera aí, mas também tu queres ficar aqui?”, “Quero, claro que quero”. E eu: “Olha, então dás-me o teu lugar?”. E ele: “Claro que dou”. E eu disse aos gajos: “Pronto, tenho o problema resolvido e vou para as Belas Artes e fico com o 1º ano”. E assim foi. [GF] - Mas de Projeto? [AM] - Na área de projeto claro, que era o que havia. [GF] - E depois ficaste lá quanto tempo? [AM] - Dois anos. Foi por isso que, mais tarde, estive também em Viseu. [GF] - Então quando começamos dizes: “Só na construção”. Não é bem assim, há aqui variantes. [AM] - Não. Esse dois anos foi de variante claro. Mas estive sempre ligado à Construção. [GF] - Depois acho que não acabaste a História. Então o Portas entra por causa de Guimarães. Dizias que não tinha assim essa capacidade de influência, porque havia sempre ali dois pólos. Então a sucessão, a Escola do Alves Costa, até politicamente são coisas diferentes. A escola do Alves Costa e do Correia Fernandes. [AM] - Repara, o Correia Fernandes era um bom aliado do e para o Portas. Era um gajo que não ia fazer nada e ia manter as coisas como estavam. / O Alexandre... [GF] - Isso prolongou-se até ao Domingos Tavares. [AM] - O Fernandes só esteve um mandato acho eu. / Não é capaz, o gajo não fazia... Depois, mais tarde, acho que ele teve outro, mas não tenho a certeza. Já mais em cima dos anos 90, não sei se pode ter sido. / 90 já passados. [GF] - O Távora depois começa a envelhecer. Naqueles últimos anos, já a escola está com estas pessoas. E nessa geração, o Ricardo Figueiredo não terá assim brilhado? [AM] - O Ricardo Figueiredo era conhecido pelos alunos pelo homem invisível. [GF] - Mas olha que ele era porreiro, e o trabalho que fez no fim da carreira é interessante. [AM] - Eu conheço o Ricardo Figueiredo. Fomos colegas da primária. Foi meu braço direito em Angola na guerra e tudo. Conheço-o muito bem. / Mas o Ricardo Figueiredo tem umas características verdadeiramente tranquilizante que é a seguinte. / Se é para dar chatice? Não vou. E não vai. / Se vai dar uma aula, e vê que os alunos não ligam à aula e não dá mais aulas, acabou. .... / Sempre foi assim. No liceu foi assim, nós éramos sócios no liceu a fazer malandrice. Sempre me dei muito bem com ele. / Depois para o fim já não era possível porque ele já estava completamente roto. Mas pronto, ele nunca… [GF] - Isso tinha a ver com esquerdas diferentes também? / Ele depois esteve na Câmara também. Não foi pelo PSD? [AM] - Não. O Ricardo foi membro do Partido Comunista. E esteve, não na Câmara. [GF] - Eras tu e o Domingos Tavares, e o Siza aparece nas listas de apoio. [AM] - É apoiante, mas não é comunista, nunca foi. / O Ricardo foi para a Assembleia Municipal como eleito do partido e, a certa altura, roeu a acorda… / Ele conhecia o Fernando Gomes de catraios, tinham ambos casa em Vila do Conde, ou coisa que o valha… Só que naquela altura, o Partido Comunista estava numa situação em que, para combater um certo tipo de atitudes, tinha que apoiar o Gomes devagarinho, aqui e ali. E o Ricardo nunca aceitou isso e então passou-se tranquilamente para o PPD, para o PSD, porque este é a única força ali que podia atacar… E passou-se. E no mandato seguinte era vereador do PSD. / É vida, mas é assim, é verdade. [GF] - Ainda, e o Domingos Tavares, como é que é desde o início? / Recuando, quando estiveste como vice-diretor da escola. Primeiro mandato, como é que era. / Ele diz que entrara porque ia a subir as escadas e o Távora disse: “Oh pá, não queres dar aqui umas aulas?”. Vinha de ovar e era bom aluno. [AM] - Foi o Távora que o propôs. O Távora apoiou-o sempre. / E foi ele que me propôs a mim, foi ele que um dia me mandou um recado. [GF] - O Domingos Tavares ou o Távora? [AM] - O Domingos Tavares. Mandou-me um recado que ia abrir concurso, e que, se eu concorresse, teria fortes hipóteses. [GF] - Ele difere um par de anos de ti. [AM] - Não. Ele é mais velho do que eu em idade, mas era mais novo na escola. / Porque ele entrou na escola mais velho do que o resto da malta. Ele era pouco mais velho que eu. Um ou dois, ou mais mesmo, não sei. [GF] - Tu reformas-te depois dele. [AM] - Não sei. [GF] - Ele era mais velho. [AM] - Era mais velho, e ele entrou na escola mais velho do que todos nós. [GF] - Está explicado. Então ele não foi teu professor. [AM] - Não foi. E ele teve pouco tempo na escola como aluno, que depois foi para Lisboa e acabou o curso em Lisboa. [GF] - Mas agora, tu ingressaste no ensino em 80. Ele já era da Comissão Instaladora. [AM] - Pois ele já era um tipo prestigiadíssimo. [GF] - Porquê? [AM] - Porque sim. O Távora apoiava-o fortemente e ele apoiava o Távora. O Távora nunca tomou o poder todo. O poder todo que tinha, tinha-o de facto, mas nunca o usou. Trabalhou sempre em contacto com os outros, ele trabalhou sempre em participação com os outros. Sempre. [GF] - Conta-se que em conflitos… que as pessoas espicaçavam-no para que ele... E ele disse: “Não, eu não faço dessas coisas”. [AM] - Não, não faz essas coisas. / O Távora tinha relativamente na vida uma posição, como aliás eu disse há bocado, mais perto da minha. “O quê?... Não, ele vai cair de maduro, não vale a pena. Ele vai cair por ele, não vale a pena a gente estar agora a meter-se nisso”. É esse tipo de atitude percebes? Era assim. / Mas então, ele queria que o Domingos fosse para a Comissão Instaladora naturalmente. Mas o Távora não dizia a ninguém. E eu a certa altura disse: “Bom, então deixem-me fazer uma proposta. Que seja o...”, e disse o nome de um gajo que sabia de certeza que ninguém estava para aturar. Era um gajo bom, mas não servia para nada. / Os gajos tiveram um arrepio e Távora disse... [GF] - E olharam para o mais capaz ao lado. “O Domingos, pronto”. [AM] - E o Távora disse: “Bom, sendo assim eu não me importava nada de trabalhar com o Alves Costa e com o Domingos Tavares, pronto”. E ficou. [GF] - Passadas décadas, acabaram por ser duas, como é que percecionas? Porque são duas fações diferentes. [AM] - Na escola? [GF] - Sim, nunca houve? Foi até ao fim. [AM] - Politicamente com certeza, mas não estavam virados para aí. [GF] - Mantinham-se mais juntos do que com o Correia Fernandes? [AM] - Sim, Isso claramente. O Domingos como diretor. / E eu tive alguma experiência, tive dois mandatos. Tinha uma característica. [GF] - O Domingos escolhe-te depois de ter estado o Rui Braz. Ele no fim do mandato, para o segundo, tem a caraterística de te escolher e optar por ti. [AM] - Perguntou-me se eu queria: “Alinhas?” e eu disse que sim. / O que é que aconteceu? Pronto, eu alinhei, e rapidamente me apercebi de uma coisa. Aquilo não era um Conselho Diretivo, não era uma um grupo que tivesse ideias do caraças para fazer coisas, não era. Não íamos fazer grandes propostas. Algumas coisas fizeram-se, mas tudo calminhas. O que tínhamos, era uma outra caraterística, que eu achei interessante. Que era, apoiávamos tudo quanto aparecesse como proposta. [GF] - Pois era, até dos alunos. Eu era um jovem assistente e organizava tudo o que me apetecesse. Quase. [AM] - A malta apoiava todas… [GF] - Ele costumava dizer: “Dinheiro não tenho, só os meios e funcionários da Faculdade”. [AM] - Pronto, isso foi sempre. [GF] - Mas dinheiro até tinha. [AM] - Não tinha muito. [GF] - E na altura lembro-me, por exemplo, sei lá, da promoção de um colóquio./ Também não se organizavam tantas coisas como hoje em dia. [AM] - Pois, agora está sempre a andar. Naquela altura não. Essa, digamos essa filosofia do Conselho Diretivo, para mim foi importante, percebi e gostei. A malta apoiava as propostas de trabalho. [GF] - E quem é que trabalhava mais nesse executivo? [AM] - Sei lá. Houve uma altura que era uma funcionária, que era a irmã do Correia Fernandes, que era a da biblioteca. Ela sempre a… a cabeça e eu dei-lhe sempre para trás. [GF] - Mas era tudo muito pragmático. O Domingos Tavares assinava despachos no bar e não sei o quê. [AM] - Sim. Mas as coisas eram todas discutidas. Sem dúvida, se fosse preciso, se não fosse preciso, a gente percebia e estava a andar. [GF] - Houve ali uma coisa qualquer no Plano de Estudos, que... Acho que foi nessa altura, no 6º ano, que mudou ali um Plano de Estudos... Passou ao 6º ano, isso depois deu umas confusões com os estudantes simplesmente durante uns meses... E lembro-me de vir a televisão, e o Domingos Tavares foi lá falar e explicar. [AM] - Não, mas houve uma altura em que ele fez uma jogada arriscadíssima. Mas que foi a maneira de resolver um problema delicadíssimo da falta de instalações. Foi a jogada em que se transformou o 5º ano no ano de estágio. Portanto, malta no 5º ano vai toda estagiar. E alivou-nos a casa. Os alunos acharam porreiro e tal, que bom que é fazer um estágio. Mas houve uma data de professores, que pensaram: “Filho da…”. Põe estes gajos daqui para fora, resolve o problema, não diz nada a ninguém. Impecável, foi só um ano, mas funcionou. / Mas realmente o Domingos é muito esperto, muito inteligente, mas deve estar cansado o velhote, mas continua a produzir lá aquelas coisas na editora. [GF] - E depois disso vem uma geração nova. Do Francisco Barata e assim. [AM] - Foi um desastre. Depois houve o Carlos Guimarães. [GF] - Mas era uma pessoa que gostava, e se entregava emocionalmente à escola, com a preocupação de não a prejudicar. [AM] - O Carlos Guimarães funcionava…. O Chico Barata não fazia... / O Ministro da Educação, que era aquele gajo, era professor e investigador, era um gajo porreiro. Era amigo do Alexandre Alves Costa. / E quando foi a história de Bolonha, houve a ideia e a tentativa, de não alinhar com Bolonha. E o Alexandre falou ao ministro e o disse: “Está bem pá, vocês não são obrigados a alinhar com Bolonha”. [GF] - Ah, então isso tinha cobertura. É que a gente nas reuniões era tipo: “Epá, toda a gente está a alinhar, menos nós? Até à última?” / Então isso tinha cobertura. [AM] - “Vocês podem e não sei quê. Podem, mas garanto uma coisa. Se não alinharem com Bolonha, não há orçamento de estado para vocês, vocês arranjem o dinheiro que precisarem”. / Bolonha foi uma das razões que fez com que eu me viesse embora. Ainda agora não percebo, não é? Eu acho que agora não era capaz de dar aulas. [GF] - Em que sentido? Porque é que dizes ter sido assim tão? [AM] - Olha, eu tinha aulas teóricas e práticas de quatro horas. Passei a ter aulas práticas de três horas. 25% do tempo foi ao ar. [GF] - Tinha aulas teóricas de duas horas e passaram a ser hora e meia, 25% do tempo foi ao ar. [AM] - Portanto, fiquei com 75%. O curso de arquitetura tinha 6 anos. [GF] - Passou a ter 5 anos. [AM] - Portanto, foi uma porrada da ordem e 20% do tempo foi ao ar. Desde 75%, 20%. Ficou praticamente metade do tempo disponível para os alunos, para acabarem o curso. A pergunta que eu fiz é: “Sim senhor, então onde é que eu vou reduzir? É no grau de exigência, não vejo outro nível. Temos que exigir menos”. [GF] - Foi o que muita a gente fez. [AM] - Oh pá, só eu... Já não sabia, já não tinha aprendido isso.

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