6/23/23

Escola do Porto: Notas dispersas V (por Gonçalo Furtado)

2.4 - Sobre Domingos Tavares (Director da Escola do Porto entre 1998 e 2006). / “Domingos Tavares: A escola do Porto na transição para o século XXI”. Gonçalo Furtado, Escola do Porto, 4 de Abril de 2020 / i, Este texto de sugestão de leituras poder-se-ia chamar “informalidade da (ou na) Escola do Porto: Escritas sobre teorias de projecto e outras arquitecturas”. Seria quiçá mais consonante com a informalidade do autor em causa ou do seu foco de interesse, mas quero querer que poderia confundir aqueles que, por desatenção ou inveja, confundissem uma genuína e generosa informalidade com a inteligência, vastidão de conhecimento e grande eloquência que está por detrás do autor/professor. / ii. Domingos Manuel Campelo Tavares (n.1939), nascido em Ovar, contou-me que era dos que “vieram de fora para o Porto” com o intuito de estudar arquitectura, e como depois ingressou na escola mal terminou o curso (1973), a convite endereçado por Fernando Távora “no meio das escadas, para dar umas aulas”.[1] Entregou-se arquitectónica e politicamente á escola e á cidade, participando numa das duas “listas” por altura das “Bases gerais”, numa das brigadas do “SAAL” centrais do Porto com Siza (1974-76), na comissão instaladora da FAUP (1979-1984) e subsequente na comissão de acompanhamento do programa e projecto das instalações da Faculdade (1980s-90s). Na transição do século, assumiu a direcção da escola pré-Bolonha (1998-2006) recordo-me que por sugestão/pedido de Nuno Portas, por altura de uma reunião na casa cor de rosa que integrei como aluno. Num primeiro mandato, teve Rui Braz ao seu lado, depois um problema de saúde que disfarçou entre idas ao bar e á fisioterapia, e depois o Madureira. Generosamente, contribuiu ainda para a criação de outros filhos da escola do porto, os cursos públicos de arquitectura da Universidade de Coimbra e da Universidade do Minho. / Se no ensino da escola do porto, sempre parece ter assumido especial centralidade a área denominada por “Arquitectura” (que inclui as sub-áreas do Projecto, Teoria e História), podemos sumariar que ao longo da sua carreira lecionou em todas essas. Pessoalmente recordo-me das suas aulas de Teoria do 3º ano (1995-96). Outros ex-alunos, colegas e funcionários o recordarão de outras formas, em comum retendo a memória de alguém humano, afável e pragmático, mas acutilantemente inteligente e institucionalmente tão informal quanto rigoroso. Fernando Lisboa, que por esse professor fora orientado em provas de licenciatura e doutoramento (dois documentos ímpares), tinha-lhe o maior respeito intelectual e pessoal, contando que, incluso, este tivera o cuidado de o procurar quando se 'exilou' no Egipto. De uma geração intermédia, também Nuno Brandão, contava-me há dias como esse professor marcara o seu percurso formativo e de como entrou para a escola para ser, não professor de projecto, mas assistente do professor Domingos Tavares. Como concordámos, na escola do Porto, em todos as preditas colunas, ensina-se tão só arquitectura, mediante metodologias semelhantes, usufruindo do conhecimento os regentes vão sendo capazes de sedimentar e imprimir às várias matérias. / ii. Domingos Tavares focou-se no ensino da Teoria e História, quando necessário, dando o exemplo de contenção (ao assumir o ensino praticamente sem assistentes), gerando um programa que constitui um legado da escola do porto que José Miguel Rodrigues reproduz. Domingos Tavares esteve também, conjuntamente com Alves Costa, José Miguel e Rui Ramos, na génese do 3º ciclo da FAUP (PDA de 2008). Com honra, acedi sempre ao seu convite para o acompanhar nas apresentações que ocorriam na disciplina de Projecto de tese que conduzia. / Exemplar, também, é a sua obra escrita ao longo de mais de quatro décadas. Obra que não podia ser humanamente mais extensa do que se tem tornado, e que envolveu, sobretudo desde 2003, uma intensa investigação, em locais distantes que vão da sua terra-natal à University College of London onde me recordo da sua visita à procura de um qualquer livro difícil de aceder (2005- 2006). Obra caracterizada pela diversidade, títulos apelativos, clareza de exposição e cuidado gráfico, que vai das suas provas académicas, a aulas de história da arquitectura moderna, até temas algo exóticos (tipo casa dos brasileiros, engenheiros, arquitectos-municipais e afins) que questionam - como se espera de uma esquerda bondosa - um certo elitismo arquitectónico que é frequentemente promovido pela escola. Também essa ideia defendeu na aula aberta que deu há um par de anos aos alunos de Teoria 1. Um alerta sábio. As preditas provas académicas incluem “Da Rua formosa à Firmesa” (edição de autor, reeditada pela ESBAP em 1985) e "Miguel Ângelo: A aprendizagem da Arquitectura" (FAUPpublicações, 2002). As sebentas de história incluem mais de vinte aulas, a estudar: “Filippo Brunelleschi: O arquitecto” (Dafne, 2003), “Balthasar Neumann: O último arquitecto barroco” (Dafne, 2003), “Leon Battista Alberti: Teoria da arquitectura” (Dafne, 2004), “Francesco Borromini: Dinâmicas da arquitectura” (Dafne, 2004), “Philibert Delorme: Profissão de arquitecto” (Dafne, 2004), “Inigo Jones: Classicismo inglês” (Dafne, 2005); “Juan de Herrera: Disciplina na arquitectura” (Dafne, 2005), “António Francisco Lisboa: Classicismo no Novo Mundo” (Dafne, 2006), “António Rodrigues: Renascimento em Portugal” (com colaboração do João Pedro Xavier, Dafne, 2007), “Bernardo Rosselino: Desenho urbano” (Dafne, 2007), “Donato Bramante: Arquitectura da ilusão” (Dafne, 2007), “Louis Le Vau: A dimensão do infinito” (Dafne, 2008), “Andrea Palladio: A grande Roma” (Dafne, 2008), “Pietro Lombardo: Renascimento no Norte” (Dafne, 2009), “Biagio Rossetti: Urbanismo renascentista” (Dafne, 2009), “Guarino Guarini:Geometrias arquitectónicas” (Dafne, 2010), “John Nash: Arquitectura urbana” (Dafne, 2010), “Claude-Nicolas Ledoux: Formas do iluminismo” (Dafne, 2011), “Jan Van Eyck:Representação do espaço real” (Dafne, 2011), “Michelangelo: Aprendizagem da arquitectura” (Dafne, 2012), “Giulio Romano: A terceira maneira” (Dafne, 2012), “Sebastião Serlio: Tratadismo normativo” (2013), “António Averlino Filarete: A cidade ideal” (Dafne, 2014). Já as demais interpelações sobre a prática profissional incluem: “Francisco Farinhas: Realismo moderno” (Dafne, 2007), “Palacete Marques Gomes” (Dafne, 2015), “Casas de Brasileiro: Erudito e popular na arquitectura dos torna-viagem” (Dafne, 2015), “António Correia da Silva: Arquitecto municipal” (Dafne, 2016), “Transformações na Arquitectura Portuense: O caso António da Silva” (2017),“Casas na Duna: O Chalé do Matos e os palheiros do Furadouro” (2018), “Casa São Roque: O Gestor e o Arquitecto” (em co-autoria, 2019) ou “André Soares: Arquitecto tardo-barroco” (2020). / iii. Da sua prática profissional salientam-se obras como habitações em Ovar (1967-77), o Lar de Santiago em Viana do Castelo ((1977-82), o conjunto habitacional em Esmoriz (1989-92), a Biblioteca da Escola de Engenharia no Instituto Politécnico de Coimbra, o lote habitacional que possui na Rua do Breyner e uma casa de banho que fez (sabendo que não devia) para uma senhora de idade algures. Em co-autoria e no âmbito do CEAU, projectou ainda a Faculdade de medicina dentária da Universidade do Porto (1997). / iv O professor Domingos Tavares, jubilou-se em 2010, dando uma “última” aula intitulada "Alma perdida”, que acabou obviamente por não ser a última atendendo que a título gracioso e voluntário continuou sempre a contribuir com a sua presença na pós-graduação da escola. Ou na aula referida aula aberta de Teoria 1 muito recentemente. Hoje, Domingos Tavares continua a dar a muitos o privilégio de nos receber em sua casa, com a mesma informalidade com que o via por casa há 25 anos quando escrevia o manifesto da Unidade 5 com o seu filho André, como quando no final dos anos 90 me permitiu na qualidade de co-supervisor de estágio (Bolsa Prodep) abandonar o escritório de Carrilho da Graça para poder ser monitor na escola, ou como conversava comigo e com o meu irmão sobre a “Histórias da cidade do Porto” na Universidade Aberta (2004?). A meu ver, Domingos Tavares olhou sempre a Arquitectura e sua historicidade de forma prospectiva, como revela as palavras que, de uma penada (literalmente em 10 minutos), escreveu para prefácio de um policopiado intitulado “arquitectura prótese do corpo”: / “O progresso e a descoberta resultam da inquietude constante do homem e a inquietude é fruto do desejo de melhor compreender não só o que nos rodeia mas o que, de entre o que nos rodeia, constitui suporte para melhor viver, para dar mais sentido ao nosso fazer, para criar convicção quanto ao sentido da construção da vida colectiva. A Arquitectura também se constrói no espírito dos arquitectos, cuja ambição é entender a utilidade do seu trabalho na configuração do mundo quotidiano, atendendo aos instrumentos disponíveis que melhor servem esses objectivos. E é particularmente este um tempo propicio à criação de um conjunto de ferramentas para o pensar e para ao agir que, quiçá, contribuirão para a mudança e para uma vida mais à medida dos nossos desejos. (…) Desenham-se à nossa frente novos instrumentos saídos do avanço do pensamento, da ciência e da técnica e que, a qualquer momento, podem estar na origem de mais um salto metodológico que confira à arquitectura uma outra capacidade e dimensão que seja capaz de melhorar o mundo. Não o podemos afirmar hoje, não sabemos se temos entre mãos um desses momentos mágicos. Nem é importante que o saibamos. Mas é nossa responsabilidade cumprir as tarefas da atenção e do interesse e por tudo o que é ensaio, reflexão e proposta, com o sentido critico e lucidez que formos capazes de possuir para que se consuma o progresso”. (2000) / Tais palavras ressoam num momento em que a escola experimenta, pela primeira vez, o inevitável desafio de assegurar o ensino à distância aos arquitectos de amanhã. Em 2003, Domingos Tavares e (o padrinho) Siza Viera, haviam estado presentes na atribuição do Doutoramento Honoris Causa a Vitorrio Gregotti pela UP, figura incontornável para a divulgação internacional da nossa escola do Porto. Como anunciado pelo André no Publico há dias, tratou-se da primeira vítima notável “arquitectónica” do Covid 19.[2] Um alerta para o quão efémera é a vida nestes nosso corpos frágeis, mas quão belos são as palavras dos pais da escola do Porto, cuja pujança é nossa responsabilidade assegurar. Palavras e aulas que Domingos Tavares tem, arduamente, desde 2003, querido nos deixar registadas, nunca se acomodando, e que prosseguem em volumes produzidos paulatinamente, um após o outro, desde a sua “última aula” há já uma década. Impedindo-nos de ousar sentir saudade. Aproveitemos agora nós, excolegas e alunos, para, também desde nossas casa, as ler. O tempo da quarentena decerto não chegará para terminarmos a aprendizagem destes ensinamentos que nos faz através do livros que humildemente acima vos sugeri. / Referências: [1] Conversa gravada, Porto, 2020. [2] André Tavares, …, in: Público, 15 ou 16 de Março de 2020, p. /

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