writings on architecture, design and cultural studies (incl. oporto school, portuguese architecture, critical project, drawings and photografphy, cedric price, gordon pask, and other stuff...)
9/9/25
CONVERSAS SOBRE A ESCOLA DO PORTO, Nº46 _ Helder Casal Ribeiro (com Gonçalo Furtado)
CONVERSA SOBRE ARQUITETURA E ESCOLA DO PORTO _ FEVEREIRO 2020
(Helder Casal Ribeiro, com Gonçalo Furtado)
I.
[Gonçalo Furtado] - Propunha conversarmos sobre as tua passagem pela escola do Porto./
Nasceste em 1964, e frequentaste a escola desde 1984, terminando o curso em 1991. Tal corresponde a grande transformação da escola. Sendo que, depois, em 1999, regressaste à mesma como professor. Portanto ainda apanhaste a passagem da diplomatura a licenciatura….
[Helder Casal Ribeiro] - Sim, os momentos são esses. Quando entro, em 1984, ainda recebo o cartão de estudante da ESBAP e, em 1985, passo a ter cartão de estudante da FAUP o que significa que participo na transição do curso de Arquitectura de diploma para licenciatura.
[GF] - Estava-se a construir o edifício da FAUP.
[HCR] - Sim, recordo-me que, em 1991, estavam em construção os novos edifícios da FAUP, enquanto a Casa Cor-de-Rosa e as cavalariças estavam recuperadas e o Pavilhão Carlos Ramos construído.
[GF] - Mas nos anos iniciais ainda tiveste aulas no edifício da ESBAP.
[HCR] - Até ao 2º ano do curso, as minhas aulas foram na Escola Superior de Belas Artes, nos Pavilhões de Arquitectura, um deles da autoria do pai do Manuel Fernandes de Sá. O 3º e o 4º ano foram no novíssimo Pavilhão Carlos Ramos, com a biblioteca, secretaria, bar (na cozinha) e as aulas teóricas na Casa Cor-de-Rosa. O 5º ano foi nas Cavalariças, com a sala Cubo, também para as teóricas. No ano a seguir saímos para estágio.
[GF] - O 4º ano era no piso térreo, e o 3º ano no piso superior do Pavilhão Carlos Ramos. Sendo poucos, cada ano cabia num único piso. Sendo que as cavalariças acolhiam o 5º ano.
[HCR] - Sim, é isso. O número de estudantes no curso era bastante reduzido.
[GF] - Em 1991 decorria a construção do edifício das torres.
[HCR] - A ideia que tenho é que, em 1991/92, a Faculdade ainda está em betão, ainda não está na fase de acabamentos.
[GF] - Terminas a prova final do curso, em 1991/92.
[HCR] - Eu entreguei a Prova Final em setembro de 1991 e defendi em janeiro de 1992, pelo que o meu diploma de Arquiteto tem a data de 1992, embora o meu ano de conclusão do curso seja 1991. Há que dizer que o procedimento administrativo associado às Provas Finais era diferente do que é hoje.
[GF] - Para a prova de então era constituído um júri - de 3 elementos (como agora) -, sendo que a mesma ainda decorria na Casa cor-de-rosa./
A Casa cor-de-rosa acolhia a secretaria, a biblioteca e o bar no piso de baixo. Por cima era a aula teórica.
[HCR] - Eu defendi a minha Prova Final na Casa cor-de-Rosa, na sala do lado direito no primeiro piso – um espaço com enorme dignidade, para que também contribuía, em muito, o fogão de sala
[GF] - Em baixo, à direita estava a Biblioteca. E à esquerda era a cozinha… que, na realidade, era o nosso bar.
[HCR] - Sim, no bar, bebíamos café e fazíamos refeições. No Verão, o bar estendia-se para o exterior, até à fonte. O bar estava equipado com as cadeiras mais pequenas desenhadas pelo Siza, com a dimensão de uma cadeira de costura, talvez, a evocar a escala da Casa cor-de-Rosa.
[GF] - Eu entrei em 1993/94, altura em que o edifício estaria mesmo em acabamentos e talvez já pintado de branco. O meu 1º ano foi ainda muito no Pavilhão Carlos Ramos e Casa cor de rosa, mas o 2º ano já foi numa torre. Os arranjos exteriores concluíram-se no decorrer da segunda metade dos anos 90…./
Tu virias a retornar à escola, como docente, no final dessa década./
Em determinado momento, finalmente ficou completo…./
e a questão das instalações deixou de ser a questão.
[HCR] - Em 1999, quando regressei à FAUP como docente, as obras estavam totalmente concluídas. A FAUP estava como a conhecemos.
[GF] - Penso que em meados da década o edifício da faculdade já está completamente feito…./
E em determinada altura estiveram ali uns muros a construir... sendo que, m determinada altura, o Jacinto Rodrigues ainda plantou com apoio de estudantes umas árvores no pátio.
[HCR] - A memória que tenho das fases de construção das novas valências da FAUP, ou seja, da construção dos edifícios e dos arranjos exteriores, entre 1992 e 1999, não tem grande precisão. Lembro-me que o processo não foi linear….
[GF] - Em 1999 começaste a lecionar na torre.
[HCR] - Eu comecei na FAUP como elemento da equipa docente de Projeto 2 (2º ano), com as aulas na torre H. No ano seguinte, Projeto 2 passou para o Pavilhão Carlos Ramos, o que significou uma mudança significativa na didática e na relação entre os alunos das diversas turmas.
[GF] - Porque o Pavilhão Carlos Ramos convoca um pouco a ideia que havia nas Belas Artes, e da sala do 1º ano, não é?
[HCR] - Tu chegaste a conhecer?
[GF] - No Pavilhão de pintura?
[HCR] - É possível. Sim, era um espaço singular para começar o curso.
[GF] - Era tudo um “open space”, em que o pessoal trabalhava todo em contacto e partilha....
[HCR] - Sim, no Pavilhão Carlos Ramos recuperava-se um sentido mais coletivo da prática/ensino da Arquitetura, em que os alunos dialogavam muito entre si e migravam entre turmas (e entre professores) com grande facilidade.
[GF] - No início do restauro e posterior projecto para a Quinta da Póvoa (pelo Álvaro Siza), houve uma comissão de instalação./
Sendo que inicialmente era isso que, conceptualmente, se pretendia para o projeto, não é?/
Inicialmente pensou-se num espaço único… o qual, depois, foi fragmentado em torres e pisos.
[HCR] - O estudo do processo de projeto da FAUP pode ser muito esclarecedor neste sentido. Contava-se que Álvaro Siza acreditava que as turmas (de Projeto) deveriam ter um número máximo de alunos (tenho ideia de 16 estudantes, mas é provável que esteja errado) e que havia organizado as salas para o efeito, com os estiradores aparafusados ao chão. Dizia-se que a subversão deste princípio de dimensionamento das turmas era entendida pelo Siza como uma traição à ideia inicial da organização do espaço.
[GF] - Cada sala tinha baixo número de estiradores com posicionamento predefinido.
[HCR] - Sim. Acredito que o Siza procurava uma relação direta entre espaço e didática arquitetónica. Com as opções arquitetónicas a orientar o sentido de uma didática.
[GF] - Que assegurasse, no fundo, uma forma de ensinar.
[HCR] - A didática em que acreditava, implicava um número reduzido de alunos num espaço relativamente desafogado (que permitisse respirar). Por contraposição, o relacionamento entre alunos e professores dentro deste espaço procurava-se informal, com extensão ao bar, como acontecia na cantina das Belas Artes.
[GF] - Uma “learning street”….
[HCR] - São muitos os arquitetos e professores da FAUP indelevelmente associados à sua construção: o Fernando Távora, o Alexandre Alves Costa e o Domingos Tavares, como Comissão Instaladora, mas também, o Alberto Carneiro, o Manuel Correia Fernandes e o Octávio Lixa Filgueiras, entre outros.
[GF] - Que assegurar uma forma de ver e entender a arquitetura.../
Esta ideia de salas de aula e número de alunos, alude a uma ideia de atelier e de relação entre arquiteto e aprendiz, não é?/
Terá sido algo que ele considerou relevante….
[HCR] - Julgo que sim.
[GF] - Mas como é que tu vês isto?
[HCR] - Agora, tudo se alterou, temos o dobro dos alunos previstos e o espaço é limitado. Como regente de Projeto 1, nos últimos anos, tenho apoiado o princípio de um máximo de 24 estudantes por sala, o que corresponde ao número máximo de estiradores que uma sala comporta (já em esforço). Defendo que é melhor do que ter duas salas por turma, para ganhar espaço, ou seja, dividir a turma, como chegou a acontecer no 2º ano, na torre H, mas com grande prejuízo didático…./
Considero importante manter todas as turmas na mesma torre, como matriz unitária do ano – para a união do ano.
[GF] - A organização das salas do Pavilhão Carlos Ramos ainda proporcionava esse contacto entre turmas./
A meados dos “anos 90”, alterou-se ainda outra coisa…./
Nos anos 90 encontra-se em curso tanto o aumento da quantidade de alunos, bem como o reconhecimento e internacionalização da Escola.
[HCR] - Sim, quando regresso à FAUP como docente, no final dos anos 90, a realidade é bastante diferente daquela que a caraterizava quando concluí o curso, no início da década. Por exemplo, uma oportunidade que se havia perdido era a de trabalhar em escritórios durante o curso, experimentando a prática da Arquitetura de uma forma direta com uma aprendizagem singular. Aconteceu comigo. No final do 3º ano, o Francisco Barata, que era meu professor de Projeto, convidou-me para colaborar com ele e o Manuel Fernandes de Sá.
[GF] - No projecto para a Cooperativa de habitação de Massarelos.
[HCR] - Sim, o Manuel Fernandes de Sá e o Francisco Barata tinham sobre a mesa a fase inicial do projeto da Cooperativa de Habitação de Massarelos.
[GF] - Eles tinham então ainda os escritório juntos?
[HCR] - No final dos anos 80, o Francisco Barata e o Manuel Fernandes de Sá trabalharam juntos, primeiro num espaço junto da Praça do Marquês e depois numa bela casa desenhada pelo pai do Manuel na rua Vasco de Lobeira. Depois, separaram-se.
[GF] - Também prenderia acabar o seu doutoramento.
[HCR] - Sim, e depois o Francisco Barata montou o seu próprio escritório.
[GF] - Em 1988 ainda estavam juntos. Sendo que Massarelos constituiu trabalho âncora, e início dessa parceria.
[HCR] - Mas recuperando o que estava a dizer antes, um dos aspetos determinantes do curso à data que o frequentei era a oportunidade da experiência em escritório muito cedo na formação do arquiteto, completando a formação escolar. No final do 3º ano, o Francisco Barata convida-me para trabalhar no escritório sobre o projeto de Massarelos. Trabalho durante as férias de Verão com entusiasmo e resulta bastante bem. A seguir, o Francisco Barata pergunta-me se quero continuar e experimentar colaborar noutros trabalhos. Obviamente, aceitei.
[GF] - Mas continuaste sempre a colaborar com eles…, frequentando o curso e a trabalhando num escritório.
[HCR] - Sim, como se fazia nos anos da ESBAP. Fico com a ideia de que a passagem para o curriculum da FAUP, condicionou essa oportunidade, ou mesmo, a eliminou. Penso, que o meu ano foi um dos últimos, se não o último, a tentar perseguir esta dupla formação....
[GF] - No meu ano já era raro... Alguns como eu, iam tendo tais experiências no período de férias, e depois nos últimos anos do curso. Sendo que a maioria se dedicava exclusivamente a 100% às aulas.
O curso impunha-se, e a sua frequência não deixava praticamente nenhum tempo livre.
[HCR] - Era como um tirocínio. A partir do final do 3º ano, no verão de 1988, e ao longo do 4º e do 5º ano da FAUP, trabalhei em ambiente de escritório, em vários projetos. No 6º ano, fiz o meu Relatório de Estágio sobre dois deles.
[GF] - No 6º ano, a apresentação consistia ainda num relatório de estágio (ainda não dissertação)… mas tal já era obrigatório.
[HCR] - A estrutura do curso da FAUP era distinta. O curso de Arquitetura era concluído com a apresentação de um Relatório de Estágio, obrigatório, e que apesar de nomeado de “relatório”, implicava, mais do que relatar, estudar aprofundadamente e debater sobre o(s) tema(s) escolhido(s). Eu propus trabalhar sobre os dois projetos mais significativos em que havia colaborado no escritório – a Habitação económica da Cooperativa de Habitação de Massarelos e a Reabilitação do Castelo de Santa Maria da Feira.
[GF] - O projecto para a reabilitação do Castelo da Feira inicia-se na transição dos anos 80/90 prolonga-se até ao presente século.
[HCR] - O Francisco Barata ocupa-se durante muito tempo do Castelo de Santa Maria da Feira. O projeto tem muitas fases, várias interrupções, encara diferentes problemas e desenvolve-os em diversas versões. De memória, diria que o projeto começa no final dos anos 80 e que se prolonga até 2006. Da minha experiência, o projeto do Castelo de Santa Maria da Feira, pela sua duração, é capaz de explicar a forma como o Francisco Barata se aproximava dos problemas e os resolvia através de um desenho informado, sempre, com recurso à dúvida metódica.
[GF] - Para além desses dois, Francisco Barata desenvolveu muitos outros projectos, que integraram a exposição recentemente acolhida na FAUP…./
O Francisco Barata estava muito enraizado no Fernando Távora.
[HCR] - O Francisco Barata convocava muitas vezes o Fernando Távora, mas, ao contrário do que se pode pensar, não numa dimensão puramente teórica, numa dimensão prática de projeto, no sentido de como, qual o caminho para resolver um problema. E, mais do que evocar um projeto específico, convocava o sentido / o espírito das suas opções.
[GF] - O espírito com que Fernando Távora pensava e problematizava, algo humanista.
[HCR] - Sim, mas para além disso, tal como Fernando Távora, o Francisco Barata acreditava e colocava em prática o cruzamento da dimensão oficinal da Arquitetura com a sua dimensão teórica. E, do que me recordo, era um dos poucos a cultivá-lo, num momento em que o tempo era mais lento nos escritórios, do que atualmente, e a elasticidade da Faculdade maior para acomodar a prática profissional da Arquitetura.
[GF] - Como foi referido no início da conversa, tu ainda tiveste aulas nas Belas Artes no 1º e no 2º ano.
[HCR] - Sim, o meu 1º e 2º ano são integralmente na Escola Superior de Belas Artes e a partir do 3º ano vimos para a FAUP no Campo Alegre.
[GF] - E eras do ano do Nuno Brandão ou do ano do Jorge Figueira?
[HCR] - O Nuno Brandão é bastante mais novo. Eu sou do mesmo ano de curso que o Jorge Figueira e o Pedro Pacheco. Somos um ano depois do João Pedro Serôdio e do Francisco Vieira de Campos, etc.
[GF] - Coincide com o período em que se constitui a primeira Associação de estudantes?
[HCR] - Exatamente, a Associação em que se envolvem, se a minha memória não me atraiçoa, o Jorge Figueira, o Nuno Lourenço, o Nuno Grande, e muitos outros.
[GF] - Houve festas, pinturas dos muros, revistas pelo departamento de...?
[HCR] - A Associação daquele tempo não corresponde ao que agora é a Associação.
[GF] - Uma história oral tem de ter cruzamentos.…
[HCR] - Esta primeira Associação de Estudantes, decorre da ideia de um conjunto de pessoas que partilhavam uma certa militância e inquietação sobre a Escola, como potencial para a mudança.
[GF] - A Escola tinha de ampliar-se naquele tempo.
[HCR] - Esta Associação criou, por exemplo, a revista “Unidade” e basta ver os seus diferentes números para se perceber o partido por que optava. Do meu ponto de vista, a vontade era sempre a de criticar o espírito da Escola, mas, ao mesmo tempo, a de cultivar os heróis dessa mesma Escola (por exemplo, o Fernando Távora, o Alberto Carneiro, o Nuno Portas, o Alexandre Alves Costa, ou mesmo, o Francisco Barata).
[GF] - Eram essas personagens… e meia centena alunos em alguns anos.
[HCR] - Sim. Quando eu era estudante, penso que eramos cerca de 75 estudantes no 3º e no 4º ano (três turmas).
[GF] - A Escola era essa, com metade da dimensão de hoje.
[HCR] - É verdade. Mas penso que já eramos cerca de 120 estudantes no primeiro ano e, na altura, alguns professores já entendiam que a Escola era grande demais. Curiosamente, agora, o 1º ano tem cerca de 200 estudantes e pensamos o mesmo. Contudo, da minha experiência, nomeadamente, comparados com outras escolas, por exemplo o Politécnico de Milão, nós ainda somos uma Escola de dimensão reduzida.
[GF] - Olha, e o Pedro Gadanho entrou depois? Ele tinha estado em Design?
[HCR] - O Pedro Gadanho entra na FAUP um ou dois anos depois de mim, o que significa que quando eu estou no 3º ano, nas novas instalações da FAUP no Campo Alegre, ele está no 1º ou no 2º ano, nas antigas instalações da Escola de Belas Artes, em São Lázaro./
A minha memória não é a mais clara relativamente aos estudantes mais novos, especialmente a partir do meu 3º ano./
Por um lado, como eu tinha a oportunidade de estar a trabalhar, abdicava de participar ativamente na vida social da FAUP e aproveitava todos os momentos sem aulas para estar no escritório, onde convivia com jovens arquitetos da FAUP, como o João Lucas.
Por outro, na FAUP, convivia sobretudo com os estudantes mais velhos (do 4º e do 5º ano), que tal como eu tinham aulas no Campo Alegre, como o Daniel Oliveira, o Nuno Lacerda, com o qual partilhei um atelier de escola em Espinho, o Pedro Alarcão e o José Carlos Cruz, entre outros.
II.
[GF] - Ao contrário do que ainda aconteceu no teu caso…. Realmente, já não era generalizado os alunos trabalharem simultaneamente à sua frequência do curso. Transitava-se de um para outro modo modelo formativo…./
Dizíamos que, em tal altura, o Francisco Barata está a fazer Massarelos... bem como a reabilitação do castelo de Santa Maria da Feira. Ambos os trabalhos me impressionaram na sua recente exposição./
Por outro lado, há aqui um período em que professores que integravam o então corpo docente, teve de realizar provas e coisas./
Aludíamos a essa circunstância que constituiu um momento específico, por exemplo para o Francisco Barata… com quem mantiveste contacto ao longo de tais décadas....
[HCR] - Eu conheci o Francisco Barata em 1988 e ele faleceu em 2018, pelo que convivemos durante 30 anos.
[GF] - Não escreveu tanto como podia…./
Possuía uma posição definida relativamente à escola, sendo incontestável que era um dos seus grande defensores./
Bem, como da teoria e do pensamento acerca da disciplina.
[HCR] - Se considerarmos a produção escrita do Francisco Barata hoje, talvez, a tendência seja pensar que não escreveu muito - adivinho, dois a três textos por ano. Mas, se a enquadrarmos nos anos 90, parece-me que podemos considerar que pertence ao conjunto dos professores da FAUP que mais escrevia.
[GF] - Estamos a referir um período, que usufruiu de direções distintas./
Nos anos 80 coincidiu com a direcção do Alexandre Alves Costa, etc./
Depois, nos anos 2000, a direcção seria assegurada pelo Francisco Barata.
[HCR] - Eu frequento o 3º ano, em 1988. Na passagem do primeiro para o segundo semestre o meu professor de Projeto, José Pulido Valente, abandona a FAUP e os estudantes da turma são divididos pelas demais. Contudo, como a saída do professor havia sido inesperada, a FAUP permitiu aos estudantes escolher a turma a integrar e eu escolhi a do Francisco Barata.
[GF] - E consideraste o Francisco Barata para ser teu professor no 3º ano.
[HCR] - Eu considerava o Francisco Barata um dos professores mais interessantes. Era reconhecido como uma figura de ação. Diziam que era exigente e com forte vínculo não só à prática, mas também à teoria. Criava em seu torno “massa crítica”. Prova do seu impacto entre a comunidade académica são as várias vezes em que é referência na revista “Unidade”.
[GF] - Era uma pessoa que, já na altura, respirava este sentido de Escola.
[HCR] - Sim, concordo e julgo que tal decorria da sua relação com o Fernando Távora. Tanto quanto sei, para o Fernando Távora o quotidiano / o dia-a-dia da Escola era muito importante e o Francisco Barata pertenceu ao seu círculo próximo.
[GF] - Há uma publicação - alemã? - sobre a Escola do Porto, e que como ilustração tem um frontão com vários protagonistas da escola, entre os quais figura o Francisco Barata no canto.
[HCR] - Não sei exatamente a que ilustração te referes, mas quando eu era aluno existiam muitas conferências sobre aqueles anos da Escola (cerca de 1974), que referiam sempre um grupo que incluía o Carlos Prata, o Carlos Guimarães, o Francisco Barata e o José Gigante.
[GF] - Fala-se deles como muito ativos.
[HCR] - Sim, há imensos registos de crítica ou sátira sobre a Escola ou o momento que se vivia. O José Gigante é a melhor pessoa para enquadrar e informar sobre essas ações…
[GF] - Ele teve uma influência na Escola, e era uma pessoa que acho os alunos sempre respeitaram.
[HCR] - Sim, respeitávamos imenso o Francisco Barata. Quando fui trabalhar com ele a empatia cresceu, tornamo-nos amigos e, posteriormente sócios. Éramos “amigos de casa”, que estavam sempre a discutir temas de Arquitetura, Arte, ou da vida em geral. Uma grande amizade, que se estendeu ao Alberto Carneiro./
Numa das últimas sessões que recordaram o Francisco Barata, no Auditório Fernando Távora, partilhei o seguinte: “Aqui, hoje, interessa-me convocar a ideia que investigar, para o Francisco Barata, foi sempre uma ação de Projeto, como esta fotografia de 1988/89 começa por testemunhar”.
[GF] - E projectaste uma foto da época, em que estavam a falar sobre uma maquete que fizeras.
[HCR] - Nessa fotografia estou eu, com cerca de 24 anos, e o Francisco Barata, com 38 anos, à volta de uma maqueta da Cooperativa de Habitação de Massarelos.
E eu continuei: “Esta ação do Projeto, sempre significou que se desenha com a escrita, como se escreve com o desenho. Logo, a grande lição para mim será sempre: a melhor forma de problematizar não será entre os livros ou no estirador, mas no sofá com um bom whisky malte na mão, na companhia de uma bela composição de jazz”.
[GF] - Era esta lição de vida, de arquitetura, humanista./
Ele conseguia estar com o copo de whisky e estar sempre a falar de cinema, de música... Mas sobretudo a falar das suas referências arquitectónicas italianas, ou de um qualquer livro com que constara e logo se discutia.
[HCR] - É isso, quando perguntaste sobre a influência do Francisco Barata, pelo menos para mim, é essa: a Arquitetura é como a Vida, mas uma vida culta.
[GF] - Há ideia de que o Francisco Barata tomava muito tempo para decidir. E algumas pessoas confundem isso com alguma insegurança, por não compreenderem essa postura./
Como sócio do escritório, como vês isso?
[HCR] - A hesitação no processo criativo derivava do evocar a “dúvida metódica” como ferramenta para apurar e aprofundar as soluções preconizadas. O tempo era visto como um aliado da conquista da qualidade e nunca representou dificuldade em resolver ou qualquer tipo de insegurança. Pelo contrário, é necessário confiança intelectual para questionar ou aferir as opções tomamos, ou seja, ir para além da afirmação do grande gesto ou solução fotogénica.
[GF] - O Francisco Barata integrava o grupo activo que referimos, mas assume a direção antes do Carlos Guimarães. Como é que tu vês esse período de gestão da Escola?
[HCR] - Sempre conversamos sobre a Escola. Para ele, dirigir a Escola não se tratava apenas de estabelecer as metas, implicava o acompanhamento diário, a permanência. Por isso, um dia disse-me que queria conquistar mais tempo para estar na Escola e que precisávamos de encontrar uma solução para que o escritório continuasse com tranquilidade.
[GF] - Um dos seus entendimentos no que concerne a Escola, era a permanência dos seus docentes, e alunos. Era o quotidiano da escola....
[HCR] - No meu entender, para o Francisco Barata a Escola era o quotidiano, essa permanência. Os assuntos resolviam-se “nos corredores, no bar”, ou seja, no contacto direto e pessoal com os intervenientes. No fundo, penso, que acreditava na continuação da Escola do Domingos Tavares, Alexandre Alves Costa e, talvez, também da Escola do Manuel Correia Fernandes.
[GF] - Certamente ele conseguiu ampliar o espaço da arquitectura junto da reitoria e da Universidade do Porto.
[HCR] - Sem dúvida, conseguiu conquistar um espaço na UP para a Escola. Isto é, penso que, até à Direção do Francisco Barata, a Escola havia sido sempre vista como outsider no conjunto das faculdades da UP – com uma agenda própria, com o seu próprio ritmo. O Francisco Barata, para o mal e para o bem, procurou estabelecer um equilíbrio nesta relação – colocar a faculdade de corpo inteiro na Universidade, mas sem perder autonomia, talvez, como inicialmente Fernando Távora pretendia.
[GF] - Penso que foi a partir da sua direcção da Escola, que se começou a ver o reitor ou similar na abertura das aulas.
[HCR] - Exato, não sei se já tinha vindo a uma sessão solene.
[GF] - Seguira-se direcções pelo Carlos Guimarães e pelo João Pedro Xavier./
A Escola não devia ser um corpo estranho na Universidade, mas antes participar nessa mantendo, ainda que salvaguardando alguma./
Recordo-me que o Francisco Barata saia muito tarde da faculdade… e de como gostava disto….
[HCR] - Para mim, outro aspeto interessante da direção do Francisco Barata é, num primeiro momento, ter procurado reunir-se de pessoas de diferentes sensibilidades, que não eram necessariamente do seu círculo mais próximo.
[GF] - As três pessoas que o acompanhavam não eram amigas íntimas dele, digamos. Eram pessoas operativas que podiam responder a diferentes sensibilidades da própria Escola.
[HCR] - O Francisco Barata entendia que ao incluir pessoas de quadrantes ou sensibilidades diferentes na Direção e ao promover a ideia de diálogo aberto, a Direção seria mais representativa de um coletivo, no sentido de um espírito de Escola aberto mas coeso.
[GF] - Mas havia esta intenção.
[HCR] - Como já fui dizendo, penso que a ideia do Francisco Barata era a de que o projeto de Escola assentava num quotidiano qualificado, isto significava fazer com que as pessoas voltassem a acreditar nesta Escola, nos alicerces e nas paredes do edifício da FAUP. No fundo, fazer com que as pessoas voltassem a acreditar num projeto coletivo, onde a arquitetura surgia naturalmente do dia-a-dia militante e propositivo, mas inquieto.
[GF] - É, no fundo, a lição do Távora./
O Távora era sobretudo este homem entre os homens, não é?
[HCR] - Como ele regista, aliás, no “Da Organização do Espaço”.
[GF] - Participou em diversos momentos decisivos. Dizem que era um homem de bom senso, De saber pôr as partes todas a dialogar?
[HCR] - Acredito que o Fernando Távora exercia a sua influência no sentido de fazer as diferentes partes ou sensibilidades perceberem a importância e sentido da Escola.
[GF[ - Seria natural haver assimetrias, mas tem de se saber potencializar e trabalhar com as diferenças.
[HCR] - É a ideia que tenho, a partir dos vários testemunhos que fui ouvindo e das histórias que se contavam. Sempre considerei que o papel do Fernando Távora, no Conselho Científico foi o de “homem de consensos”.
[GF] - Pois./
O Francisco Barata também tem aqui uma diferença em relação a outros arquitectos que também actuaram como directores./
De alguma forma, investiu bastante numa “especialização”.... uma pós-graduação relacionada com a intervenção em património. O que também terá a ver com trabalhos que então desenvolviam no escritório.
[HCR] - Fico com a ideia que o Francisco Barata avançou para a Direção da Escola, também, na sequência de uma certa insistência do Alexandre Alves Costa e do Sérgio Fernandez, entre outros.
[GF] - Achavam que nesse momento devia ser ele.
[HCR] - Sim, ainda que pudesse não ser evidente. Hoje, parece-me claro que existia uma forte empatia de pensamento sobre a “ideia de Escola” entre eles.
[GF] - Ah.
[HCR] - No entanto, havia alguma divergência, em relação à criação de um curso sobre intervenção no património. Havia o receio de introduzir uma especialização na FAUP, mas nunca foi essa a ideia ou a intenção do Francisco Barata.
Aliás, os trabalhos do escritório permitiam aprofundar diversos modos de intervir no património construído, sempre muito próximos da “lição das constantes” de Fernando Távora.
[GF] - Tiveram conversas sobre a constituição de um espaço orientado para o património?
[HCR] - Era claro para todos que não existia espaço para abordar estas temáticas nos cinco anos do MIARQ, tendo em conta a cadência das matérias para cada ano. O desejo do Francisco Barata era criar um tempo próprio para o seu estudo sustentado e aprofundado, com um corpo docente específico e convidados. Acredito que ele verificava a sua potencial relevância a partir dos desafios dos trabalhos do escritório. Contudo, para além destas conversas esporádicas, em rigor, não acompanhei o processo de criação do curso de Estudos Avançados.
[GF] - A cadência de Projeto: no 1º introdução, no 2º ano intervenção em malha consolidada, no 3º ano habitação em zona de transição, e depois no 4º ano o equipamento para área de expansão, e no 5º ano projecto urbano.
[HCR] - Sim, acredito que esta coordenação vertical e transversal do curso com Projeto como âncora, como espaço de síntese dos temas e das matérias, é fundamental para o ADN da nossa Escola./
Cinco momentos claros em termos temáticos e de complexidade programática, com Projeto 1, introdução ao habitar e o desígnio do lugar, Projeto 2, equipamento em malha consolidada, Projeto 3, habitação plurifamiliar em zona urbana de transição, no 4º ano, equipamento em área de expansão, onde a proposta impõe-se como catalisador de uma nova urbanidade e no 5º ano, pensar a cidade a partir do projeto urbano.
[GF[ - Ah.
[HCR] - Tenho a ideia que a pós-graduação surge exatamente para conquistar um espaço próprio para pôr os alunos a questionar o significado do tempo nos edifícios.
[GF] - Que é o maior problema do património, o tempo nos edifícios./
A interpretação que o Francisco Barata faz das pré-existências é mais uma vez uma coisa muito ligada a Fernando Távora, não é? A consciência de vários tempos em arquitectura.
[HCR] - Exatamente. O que interessava ao Francisco Barata era a apreensão dos vários tempos de tudo o que nos rodeia, de modo complementar, sequencial ou mesmo contínuo.
[GF] - Esta ideia de que o lugar vai para além dos seus elementos físicos.
[HCR] - Sim, todos os lugares estão imbuídos de uma dimensão simbólica e sensorial. Compreender o significado da atmosfera da sombra de uma árvore sobre uma topografia ou reconhecer as características de um convento, poderá ser igualmente importante para a estratégia do projeto. O Francisco Barata defendia que o fundamental seria operar com esta consciência culta e, por isso, havia que aprender/ensinar a construí-la.
[GF] - Gostava de levar as pessoas a perceber o que era um edifício… um organismo vivo, com o tempo da vida.
[HCR] - No escritório, nós discutíamos os problemas a partir desta ideia: quando chegamos a um lugar, independentemente da sua esfera de valor, temos de saber descodificar a sua natureza e identidade. Julgo que este entendimento também se relaciona com o modo como o Francisco Barata estruturou o Curso de Estudos Avançados.
[GF] - Incorporar essa ideia no Projeto.
[HCR] - Pelo inverso, se chegarmos a um lugar e verificarmos que ele já perdeu a sua identidade, o projeto deve saber reinterpretá-la, mas com autoria. Isto também é intervir no Património Arquitetónico e colocávamo-lo em prática no escritório.
[GF] - Ok.
[HCR] - No escritório, a discussão nunca se iniciava com o pressuposto de que intervir sobre edificado classificado correspondia somente a restaurar ou reabilitar. A discussão sobre qualquer trabalho, fosse ele um edifício ou uma paisagem, partia sempre de uma leitura à priori do(s) seu(s) tempo(s), no sentido de descodificar a sua natureza e identidade.
[GF] - Antes aludiste à organização da coluna vertical da disciplina de Projeto, na Faculdade. E proposta da pós-graduação não deixa de o ecoar?
[HCR] - O Francisco Barata entendia que na estrutura vertical das Unidades Curriculares de Projeto era fundamental a leitura da cidade na progressão da malha consolidada à malha por consolidar, também para o reconhecimento da identidade do objeto de estudo na sua relação com o seu contexto.
[GF] - Ferramentas que tu convocas para resolver um problema.
[HCR] - Eu gosto particularmente da palavra espanhola “mirada” – o olhar culto. O Francisco Barata afirmava sempre que um olhar informado, culto, era fundamental para uma ação propositiva de projeto. Penso que com o Curso de Estudos Avançados procurou simplesmente conquistar espaço e tempo para a exploração desse olhar de modo aprofundado no tempo.
[GF] - Esse olhar tem que ser um olhar culto e humanista.
[HCR] - Exatamente, o Francisco Barata continuava a acreditar no olhar do Homem Vitruviano, culto e humanista, tão defendido por Fernando Távora. No escritório, somávamos-lhe, depois, o desenho como pensamento culto, para resolver o problema que havíamos identificado. Existiam ocasiões em que a mão era “leve”, quando a identidade da preexistência era clara, e outras em que a mão era “mais pesada”, interventiva, de modo a vincar, sublinhar ou complementar o carácter do preexistente.
[GF] - Quando não tinha identidade….
[HCR] - Aí o Francisco Barata considerava que existia espaço para o projeto propor com autonomia, mas sobretudo com autoria.
[GF] - Ou recriar, porque pretende construir um novo tempo. Ou recriar porque se deseja recuperar memórias… da memória coletiva, ou da própria história da arquitetura.
[HCR] - Claro. No meu entender, ao Francisco Barata interessava sempre uma obra no limite, uma obra que, independentemente do tipo de intervenção que preconizava, era sempre capaz de reportar à contemporaneidade. É preciso lembrar que para o Francisco Barata as referências associadas à cultura italiana eram fundamentais, como o Ezio Bonfanti, sobretudo o texto “Città, museo e architettura” sobre a prática do grupo BBPR, o próprio Ernesto N. Rogers e obviamente o Aldo Rossi e o Giorgio Grassi, entre outros.
[GF] - Temos de fazer os dois ao mesmo tempo. Temos de saber, perante o problema, qual das teorias temos de convocar.
[HCR] - Se estivermos de espírito aberto, percebemos que para o Francisco Barata o Curso de Estudos Avançados em Património Arquitetónico não surgiu como proposta de especialização. Tratou-se do desafio de convocar arquitetos humanistas e dirigir o seu olhar sobre o Património Arquitetónico em redor, no sentido de identificar a sua identidade e o valor de cada um dos caracteres que a determinam. O escritório havia experimentado fazê-lo, por exemplo, para a intervenção no Castelo de Santa Maria da Feira. Reconheciam-se elementos com valor patrimonial e outros com valor plástico, a conservar, mas também se reconheciam elementos sem valor para a identidade do monumento e que poderiam abrir espaço à entrada de um novo tempo, de novas intervenções.
[GF] - E a Igreja do Vimioso?
[HCR] - Sim, a intervenção na Igreja do Vimioso parte deste mesmo princípio de intervenção. Ao estudarmos o conjunto da Igreja, reconhecemos que lhe havia sido somada uma sacristia em tempo posterior, à qual não se reconhecia especial valor arquitetónico ou plástico e que estabelecia um diálogo difícil com a Igreja. Consequentemente, a nossa proposta foi demolir a sacristia construída no tempo do Estado Novo e construir uma sacristia do nosso tempo, abrindo um diálogo franco e genuíno com a Igreja.
[GF] - Trata-se de um entendimento um bocadinho exagerado, quando se menciona “especialização”.
[HCR] - É verdade, mas sei que não era o que o Francisco Barata defendia. Para ele e como experimentávamos no escritório, operar sobre Património Arquitetónico não significava deixar de entender a Arquitetura como os arquitetos que operam sobre outros objetos. Significa apenas diversificar/apurar o olhar. O Francisco Barata sempre abraçou em simultâneo trabalho sobre todos os temas e a todas as escalas./
III.
[GF] - Sobre a Teoria, a que tu fizeste referência há bocado./
Mencionaste leituras, livros, autores, bem como eram os encontros e conversas com ele./
Pessoalmente, recordo-me como me abordou para ir lecionar Teoria em 2007/2008.… E sei da sua defesa da teoria no curso. em prole dessa velha Escola em que se pensa o pensamento, o projecto prospectivo, o património…/
De pensamento reflexivo, abstrato ou sobre o próprio projeto… de aproximação disciplinar humanista./ ´
Um pensamento Teórico também por vezes incluso independente da história…./
Ele era um defensores da teoria possuir e diferenciar-se do ensino da História. Como algo específico…. e imprescindível no contexto atual./
São conhecidas as leituras que eram marcantes para ele…. Chegou incluso a lecionar Teoria….
[HCR] - Eu partilho com o Francisco Barata a ideia da essencialidade e da especificidade das disciplinas de Teoria e de História. Parece-me facilitismo pensar que a disciplina de Projeto pode substituí-las. Na minha experiência de docência, o Projeto deve fazer a síntese das matérias, ou seja, procurar problematizar sobre a matéria do projeto, o que é muito difícil sem o conteúdo específico das disciplinas de Teoria e História.
[GF] - O que podemos discutir é qual é a matéria que se devia dar dentro dessas disciplinas.
[HCR] - Concordo, o que deveria estar em discussão não era a integração das disciplinas de Teoria e História no curso, mas sim o seu programa, os seus conteúdos. Por exemplo, hoje, penso que seria importante articular momentos de contacto entre as disciplinas, partilhando temas e, quando possível, tempos de exercício, calibrando cruzamentos programados assentes na opção por tempo curto ou tempo longo na ministração de uma dada matéria(s).
[GF] - Não era só em tempo curto ou longo….
[HCR] - Esta ideia de tempo curto encontra coincidência na ideia de “Escola italiana”, baseada na noção de “Escola de tendência” e na possibilidade da sua aplicação à FAUP, enquanto instituição fundada, antes de mais, num sentido coletivo de Escola. Posso afirmar que, ainda hoje, a apresentação da FAUP como uma “Escola de tendência” é muito apreciada entre as faculdades de arquitetura estrangeiras, nomeadamente as italianas que perderam esta dimensão e que a lembram com saudade.
[GF] - É um espírito de ser.
[HCR] - Não tenho qualquer dúvida que para o Francisco Barata a ideia da FAUP como uma “Escola de tendência”, fundada num sentido coletivo de Escola, era algo a defender seriamente. Eu partilho-a e considero que para esta “Escola de tendência” as disciplinas de Teoria e História são fundamentais.
[GF] - Tem havido muita discussão…/
Interessa perceber uma espécie de humanismo que existe na Escola, e que a diferencia até de outras. Neste momento, incluso relativamente à de Coimbra e do Minho…. Acho que seremos dos últimos Planos de estudos que....
[HCR] - Mantenho a minha opinião, nos dias de hoje, é fundamental à Arquitetura intelectualizar do pensamento. O projeto é percecionado, não só como uma resposta técnica e programática mas sobretudo como uma “ideia construída” com um discurso e poética própria.
[GF] - É o pensamento sobre....
[HCR] - Para mim, é fundamental propor aos estudantes que pensem e problematizem as questões, ao invés de construírem respostas diretas, caminhando no sentido oposto à ordem domesticada pelas ferramentas no mercado.
[GF] - Transcender o problema.
[HCR] - Sim, para mim é fundamental fazer com que o estudante descubra que é capaz de transcender um problema. Os arquitetos que mais aprecio procuram fazê-lo. Por exemplo, o Jacques Herzog revelou-o na conferência em Serralves, em 2019.
No meu entendimento, quando apresentou a Adega Dominus, um projeto dos anos 90 para a Califórnia, como uma das suas obras mais equilibradas, por coincidir com o espírito de inquietação do escritório, deu a ver a constante problematização da sua prática.
[GF] - Há um equilíbrio....
[HCR] - Acredito que a intelectualização da Arquitetura é fundamental e cada vez mais relevante. Não se trata de retirar o mistério à Arquitetura. Trata-se, antes, de construir uma lógica capaz de orientar todas as decisões, inclusive sobre as ferramentas a utilizar, e de montar a história longa da obra. Por exemplo, para mim, a história do Museu Kolumba, do Peter Zumthor, em Colónia, começa com o Alvar Aalto e com a simples ideia de que não existem dois puxadores iguais.
[GF] - Os puxadores são diferentes, porque quando se pega na porta, tal acto possui significado.
[HCR] - Sim, ao estudarmos o Museu Kolumba percebemos que cada puxador tem um significado, por isso a construção de um implica o ferro, outro convoca o couro, outro a crina do cavalo e por aí em diante. E, se confrontarmos o Museu com outras obras do Zumthor, percebemos que não é indiferente a repetição de um puxador de uma obra para a outra. No meu entender, a FAUP está ao lado desta arquitetura sensorial e intuitiva e não somente ao lado da dita “arquitetura abstrata e branca”.
[GF] - Não é? Não é por nada que nós temos dois Pritzkers, o Álvaro Siza Vieira e o Eduardo Souto Moura. O seu fazer da arquitetura tem muito em comum e vem do mesmo sítio... mas também reflecte muitas diferenças.
[HCR] - No contexto em que estamos a conversar, parece-me especialmente interessante pensar que o sentido de Escola, uma pequena “Escola de tendência” portuguesa, formou dois arquitetos que o prémio Pritzker veio laurear. Admitir a hipótese de que este sentido de Escola possa continuar a formar “Pritzkers”, não me parece descabido./
IV.
[GF] - Recuando… em relação às memórias de Teoria na Escola….
[HCR] - O que eu guardo na memória é o impacto das aulas com um orador capaz de me entusiasmar, capaz de me fazer ir além do desenho – o Távora. Sempre que assistia a uma conferência dele, lembrava-me do meu 1º ano, ou seja, de Teoria Geral da Organização do Espaço.
[GF] - TGOE, Teoria Geral da Organização do Espaço.
[HCR] - No 1º ano, o Távora foi o meu professor de Teoria Geral da Organização do Espaço. Todas as aulas teóricas foram dadas por ele.
[GF] - Quem era o assistente, lembras-te?
[HCR] - Os assistentes eram o Rui Tavares e a Anni Günther.
[GF] - No meu tempo era a Beatriz Madureira.
[HCR] - Recordo-me que o Távora chegava e dava as suas aulas e o Rui Tavares e a Anni Günther assistiam, tal como nós. Não me recordo da Beatriz Madureira estar presente nestas aulas, penso que será mais tarde, mas admito não estar correto.
[GF] - Eram com poucas fotografias?
[HCR] - A minha memória guarda a ideia de que as aulas do Távora eram cheias de imagens e que, muitas vezes ou sobretudo, desenhava. Agora, não tenho a certeza se o Távora projetar imagens é uma construção minha. Eu recordo-me dele enfatizar a cor do mar da Grécia, de se referir àquele azul-turquesa. Agora, não sei se projetou uma imagem ou se sou eu que a construo a partir do entusiasmo da sua descrição.
[GF] - Nessas aulas ele desenhava e usava imagens./
[GF] - O Manuel Correia Fernandes também deu aulas de teoria./
No 2º ano lembras-te que professor tiveste?
[HCR] - No 2º ano, não me lembro, talvez tenha sido o Manuel Correia Fernandes. No 3º ano, recordo-me que foi o José Quintão na Teoria e o Manuel Correia Fernandes como regente de Projeto 3.
[GF] - O programa?
[HCR] - Existiam certamente programas, mas a sensação que guardo é a de que, à exceção do Távora, os demais professores de Teoria estavam ainda à procura do seu caminho.
[GF] - Fernando Távora lecionava há muito tempo, mas recordas o programa dos outros?
[HCR] - No 4º ano, o meu professor foi o Manuel Mendes. Foi ele que orientou o meu grupo, com o Pedro Pacheco e o José Adrião, a fazer um trabalho sobre o Fernando Távora. O grupo queria estudar um moderno como o Arménio Losa ou o João Andresen, mas ele insistiu que estudássemos o Távora. Coincidiu com um momento em que o Távora já não dava entrevistas há alguns anos e nós conseguimos que nos concedesse uma entrevista – fomos conversar com ele pessoalmente, com toda a nossa energia.
Outro professor de que me recordo é o Alexandre Alves Costa. Sei que foi na disciplina de História, mas para mim a sua História era também Teoria.
[GF] - Porquê que dizes que era História, mas para ti era também Teoria?
[HCR] - Porque para mim, o Alexandre Alves Costa associava a problematização à História, ou melhor, problematizava a própria história, com a lente de arquiteto, interpretava as fontes históricas e revelava-te os fundamentos de cada tempo da História, o que, no fundo, também pode ser Teoria.
[GF] - Se bem dada....
[HCR] - Exatamente, porque o autor está a interpretar as suas fontes. E o Alexandre Alves Costa interpretava as suas fontes de modo singular.
[GF] - Percebes o esqueleto dessa mesma história. O que está por trás, a matriz…./
Dar-te história de uma forma interpretativa, em que tu percebes os princípios sobre cada um dos tempos. Que para mim é a teoria e….
[HR] – Sim, problematizava a própria História. A Marta Oliveira na altura era assistente do Alexandre e dava apoio aos trabalhos práticos.
[GF] - A teoria não e´ mera transmissão de informação ou saber. Comporta também reflexão critica, problematização e produção de saber.
[HCR] - Eu julgo que era essa condição que distanciava o Távora do meu 1º ano, dos professores de Teoria do meu 2º e 3º ano. O Távora reinventava a Teoria a partir de uma experiência pessoal de estudo e de viagem.
[GF] - Ele estava a interpretar a própria….
[HCR] - Sim, a sensação que guardo é que o Távora quase reinventava a Teoria, reconstruía-a à luz do seu olhar, mas também das suas paixões.
[GF] - Ele sabia dos conceitos e problemáticas que era suposto abordar, a partir daí construía o seu discurso visando tal.
[HCR] - Eu hoje percebo que os professores que mais me cativaram foram aqueles que ultrapassaram a simples transmissão da informação e apresentaram uma síntese pessoal sobre o seu estudo (uma nova perspetiva). Procuro fazer o mesmo na minha prática docente.
[GF] - Tentas proporcionar uma síntese, uma interpretação de toda a informação com que te foste cruzando.
[HCR] - Para o bem e para o mal, consciente de que a minha prática docente poderá não ser consensual, procuro transmitir aos alunos a minha leitura, informada pelos diferentes autores, sobre os diversos problemas que discutimos e aguardo que saiam de uma situação de conforto e que se posicionem, aceitando ou recusando a minha perspetiva./
Admito que esta prática também pode corresponder a “fazer” Teoria e, consequentemente, que com o propósito do Projeto, também conseguimos “fazer” Teoria de projeto.
[GF] - Se houver espaço/tempo para isso.
[HCR] - Eu acredito com convicção que o Távora quando era responsável pela disciplina de Projeto, em simultâneo com Projeto, “dava” também História e Teoria, pela forma como problematizava os temas que abordava. Todas as suas aulas constituíam uma síntese, construída com a matéria das várias disciplinas sobre uma determinada pedagogia.
[GF] - Então... achas. Os professores de Projeto são sempre abertos a essa discussão, a essa intelectualização da arquitetura que falas?
[HCR] - Não acontece sempre, nem com todos os professores, mas acredito, como disse antes, que a intelectualização da Arquitetura é cada vez mais fundamental e necessária para compreender a arquitetura contemporânea.
[GF] - E´ uma postura e maneira de estar humanista, como dizia.
[HCR] - Concordo contigo. O modo como o Távora ensinava decorre da sua dimensão humanista e influenciou, potencialmente, o modo de ensinar daqueles que com ele conviviam, como o Francisco Barata. Provavelmente, também fui influenciado.
[GF] - Foram personalidades como essas que impulsionaram a coluna da Teoria, porque eles perceberam que se devia fazer assim.
[HCR] - O que me parece fundamental neste momento é perceber se as práticas pedagógicas estão adaptadas ao tempo presente ou quais os acertos que a sua atualização implica.
Continuo a afirmar que a disciplina de Teoria no curso de Arquitetura da FAUP é fundamental, mas pergunto-me se o modo como o curso a integra é o mais operativo. Por exemplo, às vezes faço o exercício de pensar se a disciplina de Teoria poderia ser semestral, aparecer e desaparecer em momentos chave, de um modo muito operativo.
[GF] - Às vezes as alterações no processo de ensino-aprendizagem podem ter a ver até com coisas mais simples. Por exemplo…. Em que tipo de espaço é que se tratam as matérias? Qual é a quantidade nos grupos com que se trabalha a matéria? Que tipo de trabalhos são passiveis de empreender com as condições que existentes?
[HCR] - Certamente, com o número de estudantes que a disciplina acolhe, mas também com o perfil desses estudantes, que é muito variável no tempo.
[GF] - Não deixa de também ter a ver com ter mais, ou menos tempo. Portanto, com os ECTS que estão atribuídos…. Mas algumas disciplinas são bastante absorventes, o que implica uma adequação e por vezes disponibilidade entre colegas.
[HCR] - Deixa-me acrescentar o seguinte. A experiência em sala de aula mostra-me que o estudante tipo hoje na FAUP tem de estar previamente interessado na matéria para absorver o que lhe procuramos explicar. Isto é, o estudante só se vai preocupar com a borracha, quando precisar de apagar uma linha; enquanto o estudante não tiver de apagar, não lhe interessa qualquer explicação sobre a borracha ou sua utilização.
[GF] - Mas ensinar, por exemplo, projetando no tempo prático… Quer dizer....
[HCR] - Posso estar enganado, mas penso que não será por aí.
[GF] - Obviamente que era óptimo estar a… Ou a trabalhar em conjunto com professores de Projeto, tentando ensinar tudo ao mesmo tempo. Mas....
[HCR] - Uma coisa é construir cruzamentos, outra é as matérias estarem diretamente associadas ou ligadas. Esta segunda, para mim, não faz sentido. História e Teoria têm de ter espaço próprio, autonomia e o aluno também. Aliás, quem deve encontrar ou construir estes cruzamentos são os estudantes, pontualmente, com a nossa ajuda. Nós temos é de dar condições para que essa autonomia seja conquistada.
[GF] - E óbvio que eventualmente se poderia experimentar usar mais o desenho e experimentar concretizações projectuais, etc. Mas…./
Mas, não se pode estar a subcarregar os alunos, e pô-los a projetar para aprender Teoria.
[HCR] - Na minha opinião, hoje, essa é uma prática ou um caminho pouco interessante, porque reduz a autonomia do estudante, o que não faz sentido.
[GF] - Tem de se lecionar matéria do programa… e em discussões de projeto ser possível que os professores conversem com os alunos, interessando-os…./
Às vezes, ter-se a capacidade de despoletar mais discussões…. Para tal, tem de lecionar-se toda uma base de conceitos, referências e vocabulário mínimo, etc.
[HCR] - Exatamente, concordo em pleno.
[GF] - Não é um problema explicar a borracha quando ele precisa. Isso se calhar é secundário, é usar o pretexto da borracha, para falar de outras coisas muito mais importantes que a borracha. O aluno, naturalmente, por ter este problema inicial, vai estar disponível para desenvolver a sua problematização, e a conversa vai informá-lo.
[HCR] - Eu hoje percebo que estar sempre a bombardear os estudantes com informação é inútil. Os estudantes têm um ritmo próprio, que temos de respeitar.
[GF] - Numa aula de 1,5h, há 40 minutos em que estão concentrados.
[HCR] - A capacidade de concentração dos estudantes é mínima, o que significa que o estudante apreende quando o problema está sobre a mesa e que é relevante capacitá-lo para que consiga pensar sobre o problema e munir-se de informação relevante.
[GF] - Material para sobrepor, até aos colegas e seu trabalho.
[HCR] - Para mim, a História tem a capacidade de nos fazer antecipar os problemas e a Teoria de os enquadrar, compreender, isto é, ambas as disciplinas fornecem chaves de leitura para os vários problemas que vão ser exigidos ao arquiteto resolver. Este potencial da História e da Teoria só será claro para os estudantes, quando nos momentos de síntese este possível cruzamento ou contaminação for tornado evidente, nomeadamente na prática de projeto.
Bem, temos de ir…
[GF] - Obrigado pela conversa.
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