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9/7/25
Excerto de "Introdução: Silva Carvalho, escrever no presente" - para reedição de "Memória do Presente" de António Silva Carvalho
INTRODUÇÃO: SILVA CARVALHO, ESCREVER NO PRESENTE
Gonçalo Furtado/
i.
A “Memória do presente” é um livro com autoria de Silva Carvalho, composto e impresso em 1978 pela Brasília editora, e que permanece disponível online a qualquer leitor interessado - (vd. inéditos, no website)./
No entanto, salienta-se que o conteúdo do livro remete para várias vicissitudes representativas do período em que foi escrito - 1967/1968 Isto é, tempos compreendidos entre o ano de 67 - i. e. durante ou pouco antes de ir para Coimbra e o período Póvoa de Varzim-Coimbra - antecedendo a partida para exilio em França ocorrida a 9 de Abril de 1969.
[...]/
Ora, este livro de 67, cujo prelo se prevê ocorre no ano de 2026, está - na minha humilde opinião - entre os mais significativos da obra deste escritor, e chega no momento do agora presente com 41 poemas.
vi./
Não por acaso, o livro inicia-se com um excerto de ele Plaisir du Texte do estruturalista francês Roland Barthes, cujo impacto no autor foi já antes mencionado.
Alertou-nos o autor que, artista tido destruir a “arte, comprometida, histórica e socialmente”, pela sua “critica”, por “dedicar-se á escrevinhadela (…), tornar-se intelectual; ou deixar de escrever”… Uma descrição inadequada, porque ou cumina no “exterior” ou assunção dialética pela “vanguarda” em que há concordância estrutural entre as formas contestantes e contestadas”. Pelo que, “inversamente entendo por subversão subtil aquela que não se interessa pela destruição, procura um outro termo (…) inaudito”. /
Nesta redição livro “Memória do Presente”, recordamo-nos como em 1967/68, já se registava características de Siva Carvalho na iminência da partida para o exilio em tai país de frança, Senão veja-se a seguinte sequência de passagens que captam a atenção e abaixo partilho;/
No poema 26 confidencia – “Esta necessidade incoercível (…) de buscar um sentido (…) que proteja a vida do nada (…) depois do alvoroto de uma esperança vulpina abre-se um desânimo das horas insignificantes, a descoberta pungente de eu tudo fora inútil: de nada serve o conhecimento de outro homem (…)“;/
No poema 34 – “A vida exauriu-me em estático, estagnou a minha raiva de ser! Devia possuir o poder ingente de estancar o tempo para fazer um inventário do existente plausível, do pretérito conducente á minha dúbia perquisição, do actual, fautor de um mascavado e precário futuro”;/
No poema 27 – “Se pudesse fugir ao que me consome e dói, levar comigo todos os complexos indizíveis (…) Sim, era isso,, gostaria de poder ser uma utopia, e andar de mente em mente sucessivas gerações!”;/
No poema 30 – “(,,,( a educação foi um dever da família: o transformar do homem num cordeiro andróide”;/
Do poema 21 – escrito na pequena cidade universitária de Coimbra, antro diria também de covis por entre a certas áreas profissionais - “Eu. O avezado às orgias averdungadas da imaginação, estremeço diante do inexorável falar dos números: cabe-me hoje a primeira representação do tirocínio. Visto o meu traje de luzes, enfrento uma estrelante noite de frio; chego pressuroso à República em festa: uns jovens homens ajaezados á praxe, uns copos pejados de icores fesceninos– “trago comigo esta ensoadíssima solidão e sofro o contágio tentacular da euforia apertado numa exígua sala de risos metálicos (…) Recebo o esmagar de palavras chave estereótipos. Auto-gestão, liberdade, problemática“, status quo (,,,( enquanto sibilina pirose avança implacavelmente, e o mefítico cheiro dos vómitos prandiais e outros se insinua na minha hiperestesia de sensações. Levantem-se os jovens, despedem-se os jovens, acabou a primeira das minhas representações”;/
No poema 16 – “Discute-se o mesquinho problema cm o fervor de uma defesa da vida, abre-se polémicas sobre a acção e teoria de um irmão na morte, escrevem-se dúcteis palavras sobre os eventos efémeros, acusa-se, louva-se, concorda-se, discute-se, invectiva-se, e eu todos os dias espanto-me com a realidade circundante, com as frágeis eventualidades em que nos escoramos, com o ciclo inevitável da estação, da época, do estado, com o tudo que permanecerá incorrupto depois do nada”;/
No poema 22 – “(…) Para poder mijar toda a minha dor? (…) prisioneiro do ambíguo tirocínio (…) à procura da melhor maneira de ser (…). Não me venhas dizer que a comunicação não existe (…) Se sou o que sou, deixai-me sê-lo intensamente (…). Eu basto-me”;/
No poema 24 – “Eu, neste preciso momento, revivendo lúcido, o enquistado pela leitura de pilhas de livros”;/
No poema 25 – 2ª senescência de um mundo tábido, será eu a minha poesia a não denúncia? (…) as horas estandartizadas pelo hábito conservador?”;/
No poema 31 – “Hoje aconteceu o facto mais importante de toda a vida geográfica do meu corpo: cerceei a minha dionisíaca barba até á novidade, sendo apenas magnânimo com o indefeso bigode (...) Senão fossem os pêlos implantados no rosto, o que seria de mim sem tão benéfico auxilio? (,,,) Hoje sou a pintura suave e verde de Modigliani, trago o bigode vincado na aridez do meu fáceis, duas rugas côncavas a estiolar a harmonia da cor, uns lábios belfos e vermelhos fesceninos de dor, uns olhos garços tauxiados na placidez do rosto. No coração sobressai o amarelo obeso de van Gogh, o sexo é um magento osso Daliano em convulsões, as pernas são devaneios matizados de Kandisnky, os braços dois cones azuis aplainados de Picasso”;/
No poema 33 – “Tenho nas paredes do meu quarto, para disfarçar a nudez do branco, dez minúsculas reproduções baratas de seis pintores amados e magníficos. Quanto mais a fixo, mais me parecem diáfanas, pontos de partida para a linha imaginação: un nu verde de Modigliani a fazer amor travertino com um hórrido verme jenolim de Kandisnky; uma paisagem lútea de van Gogh a disfarçar a irritação de um Braque; o grotesco rosto da morte de um Goya a iluminar a amargura bordélica de um Lautrec”;/
No poema 41 – “Amo o branco (…); o engulho alopécico da pop-art fosforescente no lado ígneo de um construtivismo danado (…) O hierático simplismo do fauvismo (segundo o critico)”;/
No poema 28 – “a estridência verruma-me os sentidos embotados, o chiar dos pneus causa-me uma espécie de vertigem , o roncar dos eléctricos excita-me até à confusão. Correntes humanas roçam o meu corpo, o meu hálito, eu trago o olhar no último andar do maior prédio prospectando a subtileza que a aproximidade escamoteia. As vitrines reflectem uma grandeza que me amesquinha, por vezes a antecalva eu ameaça a minha fealdade, ou um corpo maciço de enxúndia e inépcia arfante”;/
No poema 12 – “Não há países nem fronteiras: apenas a viagem, todos os dias, do norte ao sul, da alta à baixa, pelas mesmas ruas estáticas e suadas da cidade, ou, para variar por outras ruas diferentes (…). Mas a cidade que vivo tem tão poucas ruas para a sede de aventura diferente dos outros dias (…)”;/
No poema 6 – “Que bom! Não ter absolutamente nada para dizer! As amorfas tardes deste café provinciano são maravilhosas para a digestão do enfado (…). Ah hei-de escrever um poema ao quotidiano, um poema todo indo, amaneirado (…) com tão faustoso, tão desnecessário (…). As aventuras são raras, excepcionais, (( nos meus insuportáveis tédios (…)”;/
No poema 36 – “Adoro acalmia, o sossego brando, (…) o repasto da memória, o aboletar da infância, o suspiro do presente. É preciso dizer, convicto, as pequenas e as grandes coisas, porque são necessárias palavras (…). É preciso dizer todas as coisas, a amargura do sofrimento, a leveza da alegria, o mussitar da nostalgia, a ânsia de um futuro. Falar dos recentes homens, dos problemas, das ambições, das ilusões que vivem o mundo. Tendo receio de não saber tudo, de não puder ajudar dos homens… (…) Estou só, completamente só, é inverno á fora, nas ruas desoladas da cidade, é calor suado nestas paredes protectoras. (…). Depois, é tudo o que conheces: os dias acorrentados aos dias, pequenas rímulas de alegria, silentes momentos de tristura. (…) Não importa! É preciso dizer as coisas com a ajuda das palavras (…). É preciso, sobretudo, a coragem de dizer as coisas: elas fazem parte do que eu sou”;/
No poema 15 – “O homem (…) compreendeu que tinha de destruir todo o léxico moral exaurido e, a partir da realidade que o coarcta até ao paroxismo, inventar novos valores fundados na vida hodierna do quotidiano, sofrendo um árduo avantar para uma possível sobrevivência”;/
E, atenda-se, que logo no consciente poema 1 - “Não sei como poetizar a vida, transfigurar o real em algo paradisíaco”;/
No poema 18 – “(…) viver a fazer amor com as palavras inexauríveis, a morigerar a realidade eivada de lúrido obsoleto, a circundar as ideias que se avolumam no meu cérebro (…), a esgaçar preconceitos com a tesoura do pensamento, a curtir o espaço e o tempo (…) intensamente, até ao cerne vivo da minha essência”;/
No poema 37 – “Como vês, tudo é mais fácil quando temos o resíduo da vida nos bolsos uteis, basta só dispô-lo no gume mágico de uma frase dispersa. (…) Tudo é acessível á poesia, desde que se encontre a palavra exacta (…). É preciso recriar, escorar no verdadeiro o futuro dos mundos”;/
No poema 38 – “Trago o vilipêndio do eu fui vinculado ao vergão do meu tempo, agora sou eu quem usufrui a alegria de um breve momento”;/
No poema 20 – “Também a tua saúde te provoca o mito da morte (…)“;/
No poema 32 – “Daqui a um asso momento, a uma feérica hora intrusa, já nem sei se existirei! Condição humana! (…) Merda à fatídica decisão do tempo!”;/
Bem como, num poema 8 - “A morte deveria ser a decomposição (,,,( para que o homem se pudesse habituar á ideia plena da morte e do morrer (,,,( Parece-me tão inútil e sóbrio (…) como dizer muito simplesmente eu vivi Mas talvez tudo seja mais fácil (…). Ou eu gostaria de ser o último dos últimos, de ficar só na guerra, para poder dizer. Vi tudo e tudo foi pouco para a ânsia de ver!”/
Assim é Silva Carvalho, um “escrever no presente”./
Chega a si, senhor leitor, experiência da existência do “escrevinhador” porético./
(Agosto-Setembro de 2025, GF).
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